O massacre de indígenas e o silêncio do governador de Mato Grosso do Sul
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- Paulo Marcos Esselin e Jorge Eremites de Oliveira
- 03/08/2016
Em fins do primeiro semestre de 2016, a secretária que responde pela pasta de políticas públicas para mulheres no governo de Mato Grosso do Sul, Luciana Azambuja, em entrevista a um jornal local, afirmou que esta é a segunda unidade federativa com o maior número de estupros (notificados) no país. Além deste índice vergonhoso, o estado também ocupa outra classificação de destaque no cenário nacional e internacional: disputa a primeira colocação entre os lugares onde são promovidos o maior número de assassinatos de indígenas. Indicadores desse tipo não trazem motivo de orgulho à grande maioria da população sul-mato-grossense, pelo contrário.
Exemplo da situação apontada reside no fato de que Mato Grosso do Sul começou o mês de junho do corrente ano com mais uma tragédia anunciada. No domingo do dia 13, no município de Caarapó, em torno de 600 indígenas Guarani e Kaiowá, os quais retomaram uma área que comprovadamente é terra indígena, foram atacados pelo agrobanditismo local. Trata-se da comunidade da Terra Indígena Tey’i Juçu. Como a referida área ainda não foi regularizada pelo Estado Brasileiro, fazendeiros continuam a ocupar grande parte de sua extensão. A demora neste processo vem de longa data, inclusive durante o governo da presidente afastada, o que favorece a criação das condições para a violência e os massacres que sistematicamente ocorrem na região.
Conforme tem sido noticiado nas redes sociais e na mídia em geral, inclusive por parte de instituições nacionais e internacionais ligadas à defesa dos direitos humanos, no dia 14/06/2016 fazendeiros e jagunços armados invadiram o lugar e assassinaram a tiros Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, Kaiowá, 26 anos, e feriram outros tantos, inclusive uma criança. A prática de promover violência armada contra indígenas é uma marca indelével na história de Mato Grosso do Sul. Ocorre desde longa data, dos tempos em que região fazia parte de Mato Grosso e é conhecida como a “Lei do 44”, o calibre da arma de fogo com que se fazia justiça antigamente. Por isso, quando ocorrem jogos de bingo no estado, a pedra de número 44 é cantada como “Justiça de Mato Grosso”.
Neste sentido, faz-se necessário relembrar que no longínquo 1874 Joaquim Barbosa Marques narra que o seu filho, Emílio Garcia Barbosa, foi autorizado pelo governo da então província de Mato Grosso a “arredar os índios de qualquer modo e tomar conta de suas posses e garantir a família”. Dito de outra maneira, no século 19 autoridades governamentais respaldavam os fazendeiros a tomarem posse de territórios que não lhes pertenciam e, sendo necessário, que promovessem o extermínio dos povos originários.
Ações desse tipo eram feitas em nome da família, do Estado e da propriedade privada e, com efeito, qualquer semelhança com os massacres de indígenas no tempo presente não é mera coincidência. Além disso, esses fazendeiros são glorificados por memorialistas locais como “pioneiros audaciosos”, “desbravadores do sertão” e fundadores do próprio estado, espécie de bandeirantes dos séculos 19 e 20.
No começo do século 20, Cândido Mariano da Silva Rondon, posteriormente conhecido como Marechal Rondon, à frente da Comissão de Linhas Telegráficas do Estado de Mato Grosso, registrou vários ataques que latifundiários desferiam contra comunidades indígenas. Segundo escreveu, muitos fazendeiros estavam contaminados com a falsa noção de que o índio era um entrave ao progresso e, portanto, “deveria ser tratado e exterminado como uma fera contra a qual devem fazer convergir todas as suas armas de guerra”. Nesses embates, eles literalmente “trucidavam homens, mulheres e crianças” e aprisionavam “os que não haviam logrado fugir”.
O próprio militar, à medida que recebia informações sobre expedições organizadas para exterminar e prear indígenas, procurou contatar certos fazendeiros para evitar novas chacinas. Naqueles tempos, a violência contra comunidades Guarani, Kaiowá, Terena e outras era tamanha e tão notória que, somando-se a outras questões, motivou a criação do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), instituído com outra sigla pelo governo federal em 1910. Além de evitar o extermínio dos povos originários, a agência indigenista oficial pretendia punir os crimes praticados contra eles, bem como fiscalizar o modo como eram tratados nas “colônias” (nome dado às reservas indígenas da época) e estabelecimentos particulares.
Buscava, assim, evitar que os índios continuassem vítimas de várias formas de violência: usurpação de territórios, massacres de comunidades, trabalho escravo em fazendas, estupro de mulheres etc. Depois de mais de um século da criação do SPI, órgão que antecedeu a atual FUNAI (Fundação Nacional do Índio), criada em 1967, os fazendeiros não depuseram suas armas e a matança continua como se estivéssemos em um Estado sem leis. Ocorre que em Mato Grosso do Sul, unidade da Federação criada em 1977 e implantada em 1979, durante o regime militar (1964-1985), o Estado Democrático de Direito não é para todos. O que vigora nesta parte do Brasil profundo, o Brasil com menos visibilidade e desconhecido pela maioria da população nacional, ao menos para os povos e comunidades tradicionais, é um verdadeiro Estado de exceção.
Recentemente, em 2013, os fazendeiros se reuniram na ACRISSUL (Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul) para organizarem um leilão de bovinos, com o objetivo explícito de angariar fundos contra as retomadas de terras indígenas. O evento, ironicamente chamado de “Leilão da Resistência”, contou com a presença de importantes autoridades do Estado, inclusive a do atual governador, Reinaldo Azambuja, ex-prefeito de Maracaju. A partir de então, os massacres passaram a ocorrer com maior frequência. A partir daí, fazendeiros organizados em torno do movimento ruralista se sentiram ainda mais fortalecidos.
Consequentemente, sentiram-se respaldados a armarem suas milícias, ou contratarem empresas de segurança que atuam como tal, e promoverem violência contra comunidades indígenas, especialmente em relação aos Guarani e Kaiowá. O movimento indígena e apoiadores, por sua vez, têm denunciado as constantes ações do agrobanditismo, mas seus reclamos não ecoam devidamente nos poderes constituídos na República.
Por incrível que possa parecer, massacres acontecem à luz do dia, muitas vezes diante da presença de forças policiais, sendo devidamente registrados com filmagens, fotografias e outras provas, como o recolhimento de cápsulas de projéteis. Por vezes, os responsáveis pelas chacinas e seus capangas sequer são oficialmente identificados, julgados e punidos. A certeza da impunidade tem alimentado a violência praticada corriqueiramente naquela parte da região platina. Por isso, torna-se imperioso que o Estado Brasileiro passe a investigar com rigor todos os assassinatos de indígenas ocorridos nas últimas décadas, bem como identificar as autoridades e outras pessoas que apoiam esses crimes e tomar as devidas providências.
Forças policiais que constitucionalmente teriam o compromisso de defender as pessoas, independentemente de sua origem etnicorracial, têm cumprido à risca os preceitos legais quando se trata de defender os proprietários rurais, sobremaneira durante os mandatos de reintegração de posse. Ocorre que o direito brasileiro privilegia, em demasiado, a defesa da propriedade privada e é interpretado de maneira a desconsiderar a origem viciada de títulos de imóveis rurais em muitas regiões do país. No caso do citado conflito ocorrido em Caarapó, após o assassinato do indígena, a polícia invadiu a área retomada com a justificativa de tomar supostas armas que estavam na posse dos Guarani e Kaiowá. Ora, o fato seria cômico se não fosse trágico! Quem atirou e tirou a vida de um cidadão de bem foram os fazendeiros, aqueles que portavam armas de fogo. Logo, se a polícia pretendesse desarmar alguém, teria a obrigação de ir às fazendas e não às terras indígenas retomadas nos últimos anos. Ademais, caberia uma investigação apurada para saber a origem das armas e munições usadas nesses massacres.
Autoridades do estado, a exemplo do próprio governador Reinaldo Azambuja, insistem em atribuir a responsabilidade pela solução do problema apenas ao governo federal. Reafirmam que os conflitos somente serão resolvidos quando a União pagar pelas áreas identificadas e delimitadas como terras indígenas. Se cabe ao Estado Brasileiro indenizar à altura os proprietários, cabe também a ele indenizar de igual forma as comunidades indígenas pelas mazelas sofridas durante décadas (perdas humanas, desmatamento etc.), pois a União é a principal culpada pelos conflitos que ali prosseguem.
Como exercício de memória, para lembrar o que muitos querem esquecer, sabe-se que a partir de 1891 as chamadas “terras devolutas” passaram para o domínio dos estados. Anteriormente estavam sob domínio do governo central, conforme consta na Lei Imperial nº. 601, de 1850, conhecida como “Lei de Terras”. Esta decisão se deu por força da constituição republicana, promulgada naquele ano.
Dessa forma, quem mais distribuiu terras indígenas a seus aliados preteridos foram os presidentes de província e governadores de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e não, bem entendido, o governo federal. A distribuição de terras pelos governadores foi largamente utilizada para atrair aliados a seus projetos de poder, o que envolvia vários esquemas de corrupção. Para dirimir dúvidas sobre esta afirmativa, basta consultar a íntegra do Relatório Figueiredo, documento elaborado por parlamentares federais nos anos 1960, durante o regime militar. Quem mais permitiu que terceiros se apropriassem ilegalmente de territórios indígenas foram, que se faça bem entendido, as próprias autoridades locais. Atribuir apenas ao governo federal todas as (ir)responsabilidades para a solução da questão fundiária é, na melhor das hipóteses, um exercício de sofisma, hipocrisia e insensatez.
Outrossim, pergunta-se se governantes de plantão reconhecerão os direitos de todos aqueles que exibem escrituras particulares de compra e venda de imóveis rurais, desde que comprovada a posse mansa e pacífica decorrente de ocupação primária? A resposta de momento é “não”. Isso porque não foi difícil a muitos fazendeiros reunir toda essa documentação. Para tanto, contaram com o apoio de agentes do Estado, parentes, compadres, irmãos de confraria etc. Isso tudo sem contar com os incêndios “acidentais” que assolaram certos cartórios, como ocorreu em cidades localizadas na fronteira com o Paraguai e em outras partes do estado.
Portanto, entendemos que o governador de Mato Grosso do Sul tem, sim, a obrigação de trabalhar no sentido de resolver a questão fundiária relacionada à violência promovida pelo agrobanditismo local. Contudo, esperar uma atitude dessas de quem foi um dos protagonistas do “Leilão da Resistência” seria uma grande ingenuidade.
Em suma, a pergunta que não se cala é a seguinte: até quando esta situação perdurará em Mato Grosso do Sul?
Paulo Marcos Esselin é professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Jorge Eremites de Oliveira é professor da Universidade Federal de Pelotas.