Correio da Cidadania

Overdose de meritocracia

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Meio difícil acreditar que só "se tratava de dívida", expressa numa carta de adeus, a motivação para o sujeito matar os filhos e a mulher antes de tirar a própria vida. Mas tem uma coisinha convincente: era um morador da Barra da Tijuca.

 

Tenho menos de dois anos morando no Rio de Janeiro e pude ouvir, ler e perceber com meus próprios olhos o tipo de sujeito que habita aquela região da cidade.

 

Veja bem, nem todo morador do "planeta Barra" se encaixa no que digo/dizem, mas é meio sintomático o que se passou. Vou citar até fonte bibliográfica.

 

Dia desses, um dos talentosos cronistas facebookers do cotidiano do subúrbio carioca, Anderson França, que fez um longo perfil sobre seus ex-vizinhos que chiavam da possibilidade de o metrô chegar até a Barra. E levar um monte de pobre para as praias daquele mundinho particular.

 

O cronista falava como esse típico novo-rico-nem-tão-rico morador da Barra raciocinava. Um self-made man, que "cresceu na vida" e a todo custo precisava provar, na carcaça, que saltou a cerca do subúrbio.

 

Todo mundo já conheceu o sujeito que morava de aluguel num quarto-sala, mas passeava de Corolla novinho e parava na frente de boates caras pra botar um uísque algum-label no teto do carro. Todo mundo. A Barra é o maior reduto dessa espécie urbana do Brasil. A Barra, seus condomínios fechados, sua vida em automóveis, seus shopping centers e suas arenas de shows.

 

E aqui não se trata de juízo de valor. Felicidade, ou sua simulação, hoje se compra pra tirar selfie e botar na internet. Quero falar de um buraco mais embaixo.

 

Nenhuma ideia parece ser tão avassaladora e implacável como a tríade "esforço-mérito-sucesso".

 

Esquema de pirâmide, mercado de ações, cursos virtuais, loja de diploma e certificado, supersimples, microempreendedor, livro de autoajuda, revista de negócios, palestra de motivação...

 

Teologia da prosperidade! Até o pastor vai te convencer que o bom você conquista sozinho, e se a merda vier a culpa é toda sua. “Faça o certo e tudo acontecerá”.

 

Tem gente que acredita piamente nisso. E o pai mais comentado do ano, mais um novo-rico-nem-tão-rico morador da Barra, me convenceu ser um desses.

 

Slavoj Zizek já havia comentado como a economia dos dias de hoje havia se tornado um debate quase místico. O mercado financeiro - essa coisa que te faz milionário em um dia e paupérrimo em uma hora - era o maior antro de budistas, hinduístas e outras seitas pela qual tudo podia se explicar no plano espiritual.

 

Porque é assim que a banda quase toca. Salvo os cabeças das agências de risco e poucos bancos privados, todo o resto do "clube de investidores" são os maiores porra-loucas que você pode conhecer e nem sequer saíram da frente do computador.

 

Você acha que seu amigo que foi morar no meio do mato na Chapada é doidão e corajoso? Imagina o cara que tem casa, escola dos filhos, cirurgia da mãe, 320 parcelas do carro, a viagem pela CVC, o iPhone do ano espalhados em cinco cartões de créditos e apostou sua grana toda num investimento que não tinha como dar errado porque ele era esforçado o suficiente para isso.

 

Foi esforçado. Mas descobriu que não é assim que a banda toca. E pra mim essa é a grande doença dos nossos tempos.

 

Matar-se porque perdeu tudo não é tão novo. A crise de 1929 foi recordista em suicídios gerados pelo desespero que é dormir rico e acordar quebrado.

 

O problema mesmo é que tal lógica se estendeu para a base da pirâmide, e ali não tem amigo governador pra dar isenção fiscal, não tem amigo no tribunal de contas pra disfarçar irregularidade, não tem União pra renegociar dívida...

 

É só você. Você, seus rebentos, sua culpa e a ira divina para quem fracassou porque não se esforçou o suficiente. A grande doença dos nossos tempos.

 

 

Irlan Simões é jornalista e editor da Revista Rever.

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