Correio da Cidadania

O governo Temer e seu congelamento de gastos: o fim do direito à saúde?

0
0
0
s2sdefault

 

 

 

 

A Constituição Federal de 1988 estabelece que “saúde é direito de todos e dever do Estado”, afirmação bastante significativa nos tempos em que tudo é mercadoria. Menos lembrada, mas não menos importante, é a continuação do mesmo artigo: “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (artigo 196 da Constituição, grifo nosso).

 

Em outras palavras: pelo texto constitucional, não somente cabe ao poder público (Estado) garantir o acesso universal e igualitário ao sistema de saúde, mas também promover políticas sociais e econômicas que levem as pessoas a adoecer e sofrer menos.

 

A árdua construção do SUS

 

A Lei Orgânica da Saúde detalha esse ponto ao reconhecer que “os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do país” e apontar alguns dos determinantes e condicionantes da saúde: “a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (Lei Federal 8.080/1990, artigo 3o).

 

Não foi por acaso que os parlamentares incluíram esses pontos na legislação: o reconhecimento do direito à saúde foi uma vitória do Movimento da Reforma Sanitária, como parte da mobilização pelo fim da ditadura. Assim, o povo brasileiro teria conquistado não somente o direito de ser atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas também um suposto “Estado de Bem-Estar Social” que, por meio de direitos sociais, promoveria a saúde de todas as pessoas. Mais ainda: até as políticas econômicas deveriam ser voltadas para o bem-estar da população.

 

As décadas seguintes ao fim da ditadura têm sido duras para o SUS e para o direito à saúde. O suposto Estado de Bem-Estar Social não saiu do papel: boa parte da população brasileira continua sem alimentação adequada, sem moradia digna, sem saneamento básico, com transporte caro, perigoso e ineficaz… Isso só para falar nos quatro primeiros fatores.

 

Desde a criação no SUS, é inegável que foi bastante ampliado o acesso ao sistema de saúde, incluindo a população antes excluída por não ter emprego formal. Houve expansão importante da rede de atendimento e dos serviços não diretamente assistenciais, como os de Vigilância em Saúde (ambiental, epidemiológica e sanitária), que atendem toda a população de alguma forma.

 

No entanto, o sistema nunca teve seu financiamento garantido: o gasto público brasileiro em saúde é muito pequeno para um sistema pretensamente universal, e inferior inclusive ao de países cujos sistemas públicos abrangem apenas uma parcela específica da população (em geral os muito pobres).

 

Nenhum dos governos federais do período pós-ditadura priorizou a verdadeira universalização do SUS em termos orçamentários, e as “conquistas” de recursos foram reiteradamente sucedidas por derrotas que as neutralizaram: entrou a CPMF (1997), mas não aumentou o montante global; veio a Emenda Constitucional 29 (2000), mas não foi garantido o percentual de receita federal; a EC 29 foi regulamentada (2012), mas de forma insuficiente; fixou-se o percentual de receita federal (2015), mas também em valores baixos e com execução obrigatória de emendas parlamentares.

 

A vontade de destruir o SUS

 

Assim que chegou ao poder de forma provisória, o governo Temer já deu sinais de que aprofundaria o ataque aos direitos sociais, entre eles o direito à saúde. Ricardo Barros, ministro da Saúde, mal assumiu o cargo e já afirmou que “o tamanho do SUS precisa ser revisto” – entre outras declarações absurdas, como “os homens trabalham mais que as mulheres, por isso não acham tempo para cuidar da saúde”. O mesmo ministro Barros logo passou a defender a criação de “planos de saúde populares, com cobertura simplificada, para desafogar o SUS”.

 

Porém, como de costume, veio da área econômica do governo Temer o ataque aos direitos sociais que nenhum de seus antecessores ousou propor: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, também chamada de PEC 55 desde que passou a tramitar no Senado Federal. Sob os argumentos do “rombo nas contas públicas” e da “necessidade de contenção de gastos”, a PEC pretende impor ao Brasil um regime inédito de congelamento de despesa pública, que nenhum país no mundo chegou a fazer com tal radicalidade.

 

O chamado Novo Regime Fiscal que a PEC pretende implementar nada mais é que o congelamento dos gastos do governo federal nos valores reais de 2016, que passariam a ser corrigidos somente pela inflação, pelos próximos vinte anos. Ou seja: nem mesmo em tempo de crescimento econômico o governo federal poderia aumentar seus gastos!

 

Os impactos dessa PEC para a Saúde foram estimados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), por meio da Nota Técnica 28, elaborada por Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Pucci de Sá e Benevides. Apresentaremos aqui os pontos dessa análise que consideramos mais importantes, de forma sucinta e procurando evitar o “economês”.

 

A estupidez do congelamento

 

Em termos quantitativos, a perda de recursos federais destinados ao SUS foi estimada em R$ 654 bilhões de reais nesse período de 20 anos, em um cenário conservador (crescimento médio do PIB de 2% ao ano). Ao utilizar uma estimativa de crescimento maior (3% ao ano), a estimativa chega a R$ 1 trilhão. Ou seja: ao comparar a regra da PEC com a atual, quanto mais a economia brasileira crescer nesse período, maior a perda de recursos para a Saúde.

 

Vale lembrar que mesmo a regra atual está longe de garantir recursos suficientes para um sistema de saúde que se pretende universal. Ao contrário do discurso do ministro que acha o SUS “muito grande”, os pesquisadores do IPEA afirmam que o gasto público com saúde no Brasil é muito baixo: US$ 591 per capita em 2013, menor que o de países vizinhos que não têm sistemas universais (Chile, US$ 795; Argentina, US$ 1.167) e muito menor que o de países com sistemas universais (Reino Unido, US$ 2.766; França US$ 3.360).

 

Além disso, embora a Emenda Constitucional 29/2000 tenha provocado um aumento significativo dos gastos de estados e municípios com saúde, o gasto federal permanece estável com relação ao PIB (1,66% em 2000, 1,69% em 2015) e a participação desse gasto no total da despesa primária federal caiu no mesmo período: de 10,5% em 2002 a 8,6% em 2015. Uma aceleração dessa queda não poderá ser compensada por estados e municípios, diante do atual contexto de crise econômica.

 

Os pesquisadores do IPEA ainda chamam a atenção para o fato de que a população de idosos no Brasil deve dobrar entre 2016 e 2036, de 24,9 milhões para 48,9 milhões (12,1% a 21,5% do total). O impacto dessa mudança do perfil demográfico para o SUS é evidente: idosos adoecem mais e procuram mais os serviços de saúde, demandando também mais estrutura e insumos.

 

Em síntese, nas palavras dos autores da Nota Técnica:

 

“Congelar o gasto em valores de 2016, por vinte anos, parte do pressuposto equivocado de que os recursos públicos para a saúde já estão em níveis adequados para a garantia do acesso aos bens e serviços de saúde, e que a melhoria dos serviços se resolveria a partir de ganhos de eficiência na aplicação dos recursos existentes. Ademais, o congelamento não garantirá sequer o mesmo grau de acesso e qualidade dos bens e serviços à população brasileira ao longo desse período, uma vez que a população aumentará e envelhecerá de forma acelerada” (NT 28, Considerações Finais).

 

Trata-se, portanto, de uma “revogação branca” das disposições constitucionais que tratam do direito à saúde e dos demais direitos sociais garantidos pelo Estado. Na prática, é como se o artigo 196 da Constituição Federal passasse a vigorar com as seguintes ressalvas:

 

“¶1o – Até 2036, as políticas e os serviços de que trata este artigo devem funcionar com o orçamento de 2016, sendo vedado qualquer aumento, ainda que a população envelheça ou os insumos fiquem mais caros;

 

¶2o – Diante da restrição orçamentária, o acesso ao SUS deixa de ser universal e integral, ficando restrito à população extremamente pobre e às doenças cujo tratamento for de baixo custo”.

 

Fim de todo o pacto social

 

Como o regime que a PEC pretende implantar não atinge somente a Saúde, é de se esperar que a asfixia financeira afete também as demais políticas públicas, já tão precárias: menos educação, menos assistência social, menos previdência, menos habitação, menos transporte, menos fiscalização do trabalho escravo, menos reforma agrária… Em síntese: teremos uma sociedade ainda mais produtora de adoecimento e de sofrimento, principalmente para os setores mais pobres da classe trabalhadora – e um SUS cada vez menor para dar resposta a essa demanda.

 

Em entrevista recente, o presidente da Câmara dos Deputados (Rodrigo Maia, aliado de Michel Temer) rebateu as críticas à PEC afirmando que, com uma retomada do crescimento em decorrência da aprovação da proposta, as famílias teriam maior renda e assim poderiam “entrar na saúde privada e na educação privada”. Além de aumentar a parcela do orçamento destinada aos juros da dívida pública, é esse o projeto que está por trás da PEC: ampliar o mercado privado, avançando na mercantilização de direitos como saúde e educação.

 

É tarefa de todos que acreditam no SUS originalmente concebido e na concepção ampliada de direito à saúde denunciar publicamente as consequências da PEC e pressionar por sua rejeição pelo Senado. Queremos acreditar que ainda seja possível impedir sua aprovação, com a mobilização que tem tomado principalmente as escolas e universidades nas últimas semanas. Se isso não acontecer, a PEC será promulgada logo após a segunda votação pelos senadores, com efeito já para 2017.

 

Na hipótese infelizmente provável da aprovação, não baixemos as cabeças nem as bandeiras: precisamos nos reorganizar e lutar as próximas batalhas. Nenhuma PEC é irrevogável, e a correlação de forças pode mudar quando as consequências práticas do Novo Regime Fiscal vierem à tona. Vamos à luta!

 

Leia também:


“Temer terá muita dificuldade para concluir seu mandato e o cenário para os próximos anos é sombrio”

 

PEC 241: “Temer deve manter as transformações estruturais fragilizantes dos governos do PT”

 

"Estamos colhendo, exatamente, os frutos dos 13 anos de petismo no governo federal"

 

“Fizeram da ocupação democrática do Estado um negócio privado que legitima a volta do neoliberalismo como solução”

 

“Temer terá muita dificuldade para concluir seu mandato e o cenário para os próximos anos é sombrio”

 

PEC 241 torna inconstitucional o desenvolvimento social e cultural

 

O esgotamento da esquerda institucional: "é preciso reconhecer a derrota sem se sentir derrotado"

 

A crise do Brasil capitalista é maior do que a “guinada à direita”

 

Uma reacionária e ilegítima Constituição está sendo reescrita no país

 

Francisco Mogadouro da Cunha é médico, militante da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde e do PSOL.

Paulo Spina é militante do Fórum Popular de Saúde do Estado de São Paulo e do PSOL.

Comentários   

0 #1 RE: O governo Temer e seu congelamento de gastos: o fim do direito à saúde?Lúcia Maria de Barro 10-11-2016 16:04
Parabéns. Encaminhei a nota com o comentário NÃO ESQUEÇAMOS TAMBÉM DE LUTAR POR UM "DIRETAS JÁ" E DE LUTAR TAMBÉM CONTRA ISENÇÕES FISCAIS
Citar
0
0
0
s2sdefault