Um grande delegado de polícia
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- Antonio Visconti
- 08/11/2016
Ali pelos 60, um preso inteligentíssimo do Instituto Penal Agrícola de Itapetininga, o espanhol Modesto Moreno, dizia, posto que com exagero, serem as grandes armas da investigação policial o “Santo Acaso e o São Cacete”; a sorte e a tortura para arrancar confissões, quase sempre de ladrões (assaltos eram raríssimos nesses tempos tranquilos e estelionatários jactavam-se de não apanhar para revelar suas façanhas quando caíam nas malhas da lei).
Mas havia delinquência mais sofisticada, cuja investigação exigia melhores conhecimentos jurídicos e extrajurídicos, além de técnica refinada de investigação, porque os autores tinham meios para contratar bons advogados – não raro inescrupulosos. E não eram evidentemente abordáveis, pela truculência de métodos costumeiros para obter confissões, amplamente aceitos por juízes, promotores e até advogados.
Somente no júri os defensores bradavam contra essas formas medievais de arrancar confissões, posto que na apuração de homicídios a prática fosse bem menos comum – o saudoso e notável criminalista Raymundo Paschoal Barbosa costumava dizer que a tortura era corriqueira no cotidiano policial e somente quando alcançou figuras do patriciado, envolvidas na contestação violenta à ordem ditatorial, em maior parte jovens, causou indignação, repugnância e foi objeto de vigorosa denúncia.
Fraudes de maior tomo, servidas por falsificações materiais e ideológicas, lesando grande número de vítimas ou causando grandes prejuízos a algumas destas, só podiam ser comprovadas para compor inquérito que possibilitasse futuros processos exitosos, a exigir o trabalho de policiais mais qualificados – delegados, investigadores, peritos, escrivães – e capazes de esclarecer crimes partindo do fato para chegar ao autor, cuja confissão se fazia então dispensável.
Expedito Marques Pereira sempre integrou esse rol de Delegados de Polícia. Estudioso das questões jurídicas, enfronhado nas praxes cartorárias, com invulgar capacidade de trabalho e gosto por conduzir investigações altamente complexas, além do exercício escrupuloso das muitas atribuições de seu cargo, desmantelou numerosas quadrilhas de estelionatários de grande tomo, dentre os quais se destacavam os “grileiros” de terras, forjadores de títulos falsos de posse e propriedade, dispostos a lesar incautos.
A apuração dos crimes destes delinquentes travestidos de honestos negociantes de imóveis era extremamente complexa, porque requeria muita paciência e determinação, notadamente no escrutínio dos títulos utilizados, até se puxar o fio da meada. Sempre sob constante bombardeio dos criminosos, ligados a advogados tarimbados em toda a sorte de alicantinas, na busca de impedir o sucesso da atividade policial (certa feita, um deles cercou um perito com tamanho aparato de chicanas que acabou por desintegrá-lo psiquicamente, levando-o à internação psiquiátrica).
Logo granjeou justa reputação de competência e integridade, tanto na sua corporação como no foro, o lhe permitia enfrentar tais adversidades com sobranceria e serenidade. Já no topo da carreira passou a comandar a apuração de sequestros, que em dado momento atormentaram pessoas de maiores posses e grande notoriedade, realizados por temíveis facínoras, que se requintavam em expedientes que apavorassem a família da vítima, com vistas a submetê-las a suas torpes exigências.
Tinham dinheiro para investir na longa e sofisticada elaboração do crime, a fim de se assenhorear de hábitos da vítima, preparar seu cativeiro, estabelecer o roteiro da entrega das enormes quantias exigidas; ao policial cabia acompanhar todos esses lances com argúcia e paciência, controlando a ansiedade dos parentes, a fim de encontrar a forma e a hora de desferir o golpe certeiro que levasse à prisão dos sicários.
Tão espinhosa missão não trazia, porém, imunidade a sofrimentos, incompreensões e decepções. Num episódio de sequestro, foi acusado de abuso de autoridade. Expediente comum quando atingidos os grandes delinquentes. Conhecido repórter, de muito prestígio, noticiou a denúncia, num respeitado veículo da grande imprensa, sob o sugestivo título “Expedito Marques Pereira Já Não é Homem Acima de Qualquer Suspeita”, numa insinuação malévola e caluniosa de corrupção, lançada contra um policial que naquela altura já passara algumas décadas em honrado e proficiente exercício de sua profissão.
Evidentemente, a insinuação não aparecia no corpo da notícia e o jornalista depois negava responsabilidade pelo título, pretextando apenas apresentar o texto, enquanto a manchete seria de alguém na Redação.
Todavia, além de excelente policial, era homem de muita fé e as cicatrizes que foi acumulando ao longo de sua bela trajetória profissional jamais lhe quebrantaram o ânimo e a dedicação a seu ofício.
Trabalhou com exemplar dignidade e competência até a aposentadoria compulsória em 1982 e teve sempre o merecido reconhecimento de todos quantos lhe acompanharam a extraordinária carreira na polícia paulista, onde foi, indiscutivelmente, figura exponencial. Faleceu em 20 de outubro último. No dia de seu sepultamento pude afirmar, certo de não incorrer em exagero algum, que a ele se podia aplicar aquele belíssimo fecho da epístola paulina: combateu o bom combate, terminou a carreira, guardou a fé.
Antonio Visconti é procurador de justiça aposentado e membro do Movimento do Ministio Público Democrático em São Paulo.