A profanização como método de repressão: história da Boca do Lixo e da “Cracolândia”
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- Regis Mendes Munhoz
- 09/08/2017
Em meu trabalho de conclusão de curso de História ainda na graduação, nos idos de 2009, estudei a história da prostituição no município de São Paulo – no intervalo entre os anos de 1953 e 1973, no espaço da cidade conhecido, na época, como “Boca do Lixo”. Para entender o que se passa na Cracolândia, nos dias atuais, nada mais justo do que recorrer a esta história. Portanto, segue um pormenor do trabalho.
Nos anos de 1950, a maior porção da prostituição em São Paulo se concentrava no bairro do Bom Retiro, próximo da Luz. O bairro, ainda nos anos 50, mostrava-se em rápida transformação e ascensão econômica, tanto que algumas fábricas, como a da Ford, faziam parte da sua paisagem. Os moradores passaram a ser pessoas mais abastadas e uma classe média um tanto quanto mais alta fazia parte desse cenário de residentes. O comércio passa a moldar-se em torno deste tipo de morador. Esses, em sua maioria, carregavam conceitos cristãos e ocidentais, além de serem dotados de uma moralidade incontestável; eram, então, eles os “diferenciados” de sua época. Habitavam o bairro, junto à tal casta de moradores, aquelas que herdaram o resultado do esquecimento do Estado e da sociedade, as “temíveis prostitutas”.
Malvestidas, com as partes expostas a quem quisesse ver, dizendo os palavreados mais baixos, eram elas as “desgraçadas” portadoras de doenças e de tudo que não é sagrado para a mulher. Eram tidas como um mal necessário que levava ao chão e maculava aquele imaginário dos moradores do ilustre bairro. Incomodados, os residentes reivindicam, obviamente, “melhorias” para seu habitat. Em melhorias leia-se: expulsão daquelas moças. Ora, trata-se do conflito do que entendo como o Sagrado e o Profano, aquilo que uma classe média com ares de elite e conservadora, ou que almejava ser uma elite, pensa. Pensamento este moldado por médicos, policiais e jornais, pelo autoritarismo da sociedade brasileira e pela moralidade e sacralidade religiosa, que muitas vezes se voltam contra as pessoas mais necessitadas. É uma contradição que tem como síntese a preponderância do mais forte, a injustiça é o resultado.
Exatamente no ano de 1953, o então governador de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez (*1) sanciona um Decreto, completamente unilateral, proibindo a prostituição no Bom Retiro. Prontamente a serviço do Estado e consequentemente defendendo os interesses dessa classe média, a força policial vai cumprir o seu mais bem conhecido papel, ou seja, expulsar as mulheres de “baixa moral” do bairro. Isso é visível no livro de memórias “A Boca do Lixo”(*2): “Ao se verem agarradas pelos milicianos, travavam em luta de se despojar das poucas vestes que traziam, assim, nuas, aos gritos, as cabeças sangrando pelos golpes recebidos... ” (*3). E não é que parece com mais de um fato recente?
Os acontecimentos somam-se. Uma classe média moralista, cristã e preconceituosa exigindo a limpeza social, um governo conservador e antipopular, uma opinião pública previamente formada por uma mídia tão moralista quanto à população, tudo adicionado a uma polícia, para variar, nada autônoma e que se presta a ser o braço repressivo do Estado Antidemocrático e ao decreto imposto à força. O resultado não poderia ser diferente de um único possível, o caos.
Como decorrência, as mulheres rumaram para as ruas mais próximas. São as ruas que na época ficaram conhecidas com o “quadrilátero do pecado”, composto pelas Ruas Santa Ifigênia, do Triunfo, dos Andradas, Timbiras, Conselheiro Nébias, a Avenida Rio Branco, dentre outras. Ruas que compõem hoje o que se convém chamar de “Cracolândia”. Com o tempo e o desenvolvimento da prostituição, o bairro ocupado pelas mulheres torna-se aquilo tudo que a população menos gostava. Um lugar de desajustados sociais, a Boca do Lixo de São Paulo. Ali brota a criminalidade que passa a crescer ano a ano, o tráfico e venda de drogas, começando pela maconha e passando posteriormente para drogas cada vez mais fortes, os mais odiados e degradados são os moradores daquele lugar. Com o curso dos anos, a Boca perdeu seu status como lugar por excelência da prostituição, mas ela não acaba e a violência e exclusão se mantêm. Até hoje.
Esse texto busca ilustrar que a Cracolândia, como conhecemos hoje, é nada mais do que o resultado de um processo de tensão entre uma elite, junto de sua moral, e as pessoas pobres, trabalhadoras e excluídas, munidas apenas de si para sobreviverem. Tensão que foi remediada pelo governo e não solucionada. Soluções paliativas geram problemas nada paliativos. A “Cracolândia” é o resultado direto desta ação do Estado na figura de Lucas Garcez e seu decreto, somando-se, é claro, a dezenas de outros fatores – afinal, o processo histórico não se dá apenas com um acontecimento, mas sim da decorrência conjunta de vários deles.
O retorno do Profano versus o Sagrado
No ano de 2012 o que fazia o então governo Kassab? Ora, a mesmíssima coisa que Lucas Nogueira Garcez fez em 1953. O projeto Nova Luz visava abertamente favorecer uma série de empresários que demonstraram interesse em se instalar nos prédios daquela região. Havia, portanto, naquele momento não só um interesse moralista de limpeza social, mas também um interesse por parte do capital imobiliário na expulsão daquela população, assim como em relação às prostitutas de outrora. Quem reivindicava ainda era a classe média e a elite, exigindo “limpeza”, “organização”, “ordem” – e quem as atende é o poder público, quem informa a população com uma visão preconceituosa e estereotipada é a imprensa e, por fim, quem expulsa continua sendo a polícia.
Não poderia esquecer-me aqui de lembrar que quem continuou sendo prejudicado foi novamente a população mais carente e menos lembrada. Primeiro como tragédia, depois como farsa. É a repetição da história da forma mais copiosa possível. Do mesmo jeito que as mulheres foram expulsas, os viciados em crack foram expulsos e, assim como as mulheres de 53, os jovens de hoje foram se realocar em algum outro lugar, podendo até ter gerado uma outra “cracolândia”, como apontam os meios de comunicação. Dizer que aquelas pessoas iriam procurar por si só tratamento é um discurso que não entende a materialidade e subjetividade da vida das pessoas. Os “drogados” e “viciados” são os novos indesejáveis, os novos profanadores.
Nos anos que antecedem 2017, algumas políticas sociais um pouco mais humanitárias foram pensadas, mas logo, como veremos, não tiveram sucesso e foram descartadas. O ano agora é 2017, o lugar é o mesmo, os atores sociais se mantêm. Os conceitos históricos permanecem (história é mudança e permanência). A elite ainda deseja o local para desfrutar do lucro da especulação imobiliária, a classe média ainda conta com uma opinião moralista, higienista, cristã-conservadora de domínio dos corpos. A mídia ajuda a formular essa visão deturpada e canaliza a opinião pública para o ódio àqueles moradores. A polícia (chega a ser cômico, para não dizer trágico) mais uma vez, e com requintes de violência, expulsa os moradores daquela região. Tudo a mando de mais um governo que, tanto estadual (o mesmo de 2012) ou municipal, e de caráter antidemocrático, não é capaz de pensar políticas públicas para essas pessoas.
Não é capaz ou não quer? E novamente vemos os moradores e os profanadores.
O resultado, pela terceira vez, não pôde ter sido outro, senão a migração daquelas pessoas para outra região e a expansão da pobreza e das drogas pelo centro da cidade. Os requintes de maldade estão de volta. Derrubam-se casas com pessoas dentro, comerciantes perdem seus negócios, moradores perdem suas casas e a população mais pobre perde ainda mais sua dignidade, pois acaba tratada como sub-humana.
A produção desse artigo tentou mostrar um pouco do que aconteceu nas últimas décadas em São Paulo. A produção histórica tem como fim, também, dar-nos a possibilidade de conhecer o passado, entender o presente e assim tentar transformar o futuro. Saber o que aconteceu nos faz entender a cidade de hoje e nos dá ferramentas para a construção de uma cidade mais justa e democrática, com menos violência, mais saúde e mais igualdade. Nesse caso a construção é inversa e a história transfigurada em um fluxo contínuo sem cabimento. Nossos governantes mostram nada ter aprendido com o nosso passado ou, muito pior, podem nem o conhecer. Infelizmente.
Notas
1. Governador do Estado de 1950 a 1954. Viria a ser nos anos 1970 presidente da ARENA, o partido dos militares dos nos de chumbo.
2. JOANIDES, Hiroito de Moraes. “A Boca do Lixo”, Ed. Edições Populares 1977
3. JOANIDES, Hiroito de Moraes. “A Boca do Lixo”, Ed. Edições Populares 1977, pág25, 26
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Regis Mendes Munhoz é historiador.