Sobre o financiamento eleitoral por empresas
- Detalhes
- Otaviano Helene
- 26/08/2017
A legislação que regulamentava o financiamento eleitoral, em especial a lei 9504 de 1997, previa a possibilidade de empresas financiarem campanhas eleitorais com recursos que podiam chegar até a 2% do faturamento bruto anual. O absurdo dessa legislação, que transformava mandatos eletivos em mercadorias compráveis, foi apontado em alguns artigos (1).
A constitucionalidade dessa legislação foi questionada pela OAB, em ação junto ao STF, em 2011. Em setembro de 2015, aquele tribunal entendeu que, de fato, empresas não podem financiar a política, pois a Constituição não lhes dá esse direito. Depois desse entendimento, no mesmo mês de setembro, uma lei revogou as legislações anteriores e o financiamento por empresas passou a ser proibido.
Entretanto, é necessário lembrar que essa decisão do STF e a lei que dela decorreu poderiam ter acontecido no início de 2014, antes, portanto, da eleição daquele ano. Se isso não ocorreu foi porque o ministro Gilmar Mendes pediu vista ao processo em abril de 2014 e só o devolveu no início de setembro de 2015, quando já estavam eleitos e empossados os legisladores, deputados e senadores, que hoje assombram o país.
Neste momento, uma proposta de reforma eleitoral levanta novamente a questão do financiamento eleitoral. Um procedimento de financiamento realmente democrático, que garanta que todas as pessoas tenham, de fato, os mesmos direitos políticos, ainda está muito longe. Entretanto, o pouco que se conquistou com a proibição de financiamento por empresas corre enormes riscos de ser perdido. O citado ministro do STF, que é hoje também o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), manifesta-se abertamente a favor da volta do financiamento por empresas (2).
Além dele, vários políticos e formadores da opinião pública também têm se manifestado na mesma direção e questionado a proposta de um fundo público para financiar as eleições. Esses são indicadores dos esforços que serão feitos para ressuscitar o financiamento por empresas. Portanto, vale a pena relembrar alguns fatos.
1) Quando o financiamento eleitoral é feito por uma pessoa jurídica, seu custo vai, obviamente, para a planilha de custos da empresa, juntamente com todas as demais despesas, como insumos, salários, impostos, aluguéis, juros etc. Por exemplo, se uma empresa de medicamentos financia um candidato ou um partido, essa despesa irá para sua planilha de custos e para os preços dos medicamentos. Consequentemente, quem pagará a conta é o comprador do remédio. Ou seja, quem pagará as despesas de financiamento eleitoral feitas por empresas será a população toda.
2) Quem paga a conta é a população, mas quem decide o partido e o candidato a serem financiados são os donos e os altos dirigentes das empresas. Nós, os fregueses, consumidores, pacientes, usuários etc., que realmente arcaremos com as despesas, nada poderemos dizer sobre os partidos e candidatos que estamos custeando; nem sequer sabemos quem são eles. Parece pouco democrático, não?
3) Como empresas não são órgãos beneficentes, elas não darão os recursos de forma desinteressada. Empresas fazem negócios. O que tem acontecido e está acontecendo no país deixa mais do que evidente os danos causados pelo financiamento político por empresas.
4) O financiamento por empresas encarece enormemente os custos das campanhas eleitorais e reduz o peso da militância política a quase nada. Pouquíssimos são os candidatos que se elegem com base na luta política real e pelas posições que defendem.
5) Muitos questionam o valor de 3,6 bilhões de reais do fundo público que aparece na proposta de reforma eleitoral ora em discussão. Entretanto, poucos se lembram que a legislação anterior, derrubada em setembro de 2015, permitia que empresas usassem até 2% de seus faturamentos anuais para financiar partidos e candidatos. Dois por cento do faturamento anual das empresas é alguma coisa que se mede na casa das dezenas de bilhões de reais. Ainda que o valor de 3,6 bilhões e a forma como eles serão distribuídos pelos candidatos e partido possam ser questionados, manter a proibição de financiamentos por empresas pode significar, para a população, uma economia muito maior do que aquele valor. Isso, claro, sem considerar os enormes custos indiretos das falcatruas que têm acompanhado o financiamento eleitoral por empresas.
6) O financiamento público da atividade política é, evidentemente, muito mal recebido pela população. Aproveitando-se espertamente desse mal-estar, muitos dos questionamentos que apareceram logo após a divulgação da proposta de financiamento eleitoral com um fundo público defendem, direta ou indiretamente, explicita ou implicitamente, a volta do financiamento por empresas.
7) A enorme maioria dos que vão decidir se o financiamento por empresa voltará ou não é formado exatamente por aquele conjunto de pessoas financiadas por empresas. Evidentemente, seus financiadores querem voltar a poder escolher quem será e quem não será financiado com o nosso dinheiro. Portanto, o ambiente de votação está totalmente contaminado.
Além de discutir os valores e a forma de distribuição dos recursos públicos, bem como limites para as contribuições de pessoas físicas a candidatos e partidos, é fundamental lutar contra a volta do financiamento por empresas. Da mesma forma, é necessário criminalizar o caixa dois, tanto na parte dos doadores como daqueles que receberam os recursos. Um financiamento adequado da atividade política é necessário para a construção da democracia.
Uma espécie de corolário dessa afirmação é o fato que o financiamento por empresas é suficiente para não termos as condições necessárias para a democracia.
Referências
1) "Eleições: O "caixa um" é pior que o "caixa dois"?, por Otaviano Helene, no site de Caros Amigos. Esse artigo foi incluído na bibliografia preparada em 2013 pela secretaria de documentação do STF, para subsidiar aquele tribunal com análises e opiniões sobre o financiamento de campanhas eleitorais. Confira aqui.
2) Veja, por exemplo, www.brasil247.com/pt/247/poder/241359/Gilmar-re%C3%BAne-base-de-Temer-para-criticar-fim-das-doa%C3%A7%C3%B5es-empresariais.htm
Otaviano Helene é professor do Instituto de Física da USP, ex-presidente do Inep e da Adusp e autor, entre outros, dos livros Um diagnóstico da educação brasileira e de seu financiamento e Análise comparativa da educação brasileira: do final do século XX ao início do século XXI.