Correio da Cidadania

A Clínica Pública de Psicanálise, ou a psicanálise como canteiro aberto (3)

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No período em que este texto foi pensado, redigido, reeditado estávamos às voltas com as formas de organização, estrutura e trabalho na Clínica. Por um compromisso público, de transparência, mas também de compartilhamento dos nossos processos – que, quem sabe, pode instigar outros processos – acho importante explicitá-los aqui. Temos algumas instâncias de trabalho, utilizamos alguns nomes hoje que talvez no futuro possam mudar, de acordo com a variação do trabalho a ser feito. Uma delas é a coordenação, composta por mim e pela Graziela Kunsch.

A função desta coordenação, mais no sentido de coordenadas, de bússola, é de se responsabilizar e sustentar o acordo construído na constituição da Clínica com a Vila Itororó Canteiro Aberto e com os sujeitos políticos com os quais nos comprometemos. Isso significa, mais ou menos, manter os princípios do trabalho, ou o enquadre inicial, dentro do qual os muitos trabalhos no contexto da Clínica podem acontecer. Estes princípios, relacionados com a história do lugar onde estamos e com um desejo político correspondente a nossa trajetória, são mais ou menos os seguintes:

1) ser um espaço para que os ex-moradores e moradoras da Vila Itororó possam elaborar, individual ou coletivamente, a experiência e as consequências cotidianas e afetivas de terem sido saídos de suas casas;

2) ser um espaço para que militantes de movimentos sociais e demais vítimas de violência do Estado e do mercado – que determina quem pode ou não fazer análise nos moldes tradicionais – possam, igualmente, elaborar os efeitos destas violências;

3) ser um espaço aberto para todas as demais pessoas que desejam e necessitam de um processo de análise, de conversa, de escuta, sejam moradores do bairro ou não;

4) ser um espaço onde as noções de cultura e de psicanálise podem ser expandidas, com trabalhos artísticos, terapêuticos, analíticos, expositivos (conversas públicas, exposições, jogos, brincadeiras etc.) por pessoas que não necessariamente façam parte da Clínica Pública de Psicanálise, mas vejam nela um lugar para trabalhar em conjunto;

5) a organização das formas de trabalho clínico, de recepção comprometida e séria com as pessoas que nos procuram, dentro deste enquadre proposto, estão sob a responsabilidade de um núcleo clínico-organizativo;

6) os atendimentos e atividades são gratuitos, ou melhor, são tarifa zero. Acreditamos e defendemos uma forma de constituição de vínculo inconsciente e terapêutico sem a mediação do dinheiro.



O núcleo clínico-organizativo, hoje, é formado pela artista Graziela Kunsch, e os e as psicanalistas Camila Bassi, Daniel Guimarães, Dafne Melo e Frederico Ventura. Reunimo-nos nas manhãs de quinta-feira para conversar sobre o trabalho, que em muitos momentos se trata de coisas conceituais e operacionais, sobre os casos clínicos ou sobre nossa constituição em rede com o bairro ou outros grupos, por exemplo.

Ao redor deste núcleo, há um círculo que pode ser chamado de equipe de apoio, ou equipe ampliada e que conta hoje com as psicanalistas Heidi Tabacof e Maria Silvia Bolguese, que nos ajudam, como supervisoras, a pensar a história das pessoas que atendemos e pensar também as próprias questões do trabalho organizativo. Alguns e algumas novas companheiras psicanalistas e supervisoras, que concordam com os princípios do trabalho, estão em processo de entrar no grupo, e a própria forma de adesão de novos integrantes está sendo debatida pelo núcleo clínico-organizativo, com o suporte das supervisoras.

Após a primeira publicação deste texto, as reuniões das manhãs de quinta-feira passaram a ser quinzenais, revezando com as supervisões com a psicanalista Maria Silvia Bolguese. Estas reuniões são abertas a todos os integrantes do trabalho, inclusive os que chegaram após este texto. Hoje, compõem o trabalho também as psicanalistas Ana Carolina Santos, Camila Kfouri e Fernando Pena, além da psicanalista Maria Marta Azzolini, que vem contribuindo com nosso interesse em trabalhos clínicos grupais, iniciados recentemente. Outros psis estão em processo de entrada, desde que iniciamos um processo para aproximações, que inclui o acordo com os princípios do trabalho, algumas conversas a dois com integrantes do núcleo clínico-organizativo e a participação em algumas supervisões. Assim, tanto o grupo quanto o/a interessado em participar da experiência têm afinidade o suficiente para tal. Os próximos passos serão pensar formas processuais para a entrada no núcleo organizativo e na coordenação. Numa conversa com o Frederico Ventura, ele formulou bem a questão: que as instâncias organizativas não sejam nem inacessíveis, nem automáticas. Os processos, as instâncias e conversa aberta sobre isso nos proporcionam menos insegurança sobre o que estamos fazendo, onde estamos e o que desejamos com este trabalho.

Todos esses termos estão em questão (núcleo, equipe de apoio, supervisão etc.), são apenas referências organizacionais, para não cairmos nas ilusões e perigos da suposta horizontalidade, que esconde estruturas verticais impossíveis de serem anunciadas, denunciadas e democratizadas. Sobre isso recomendo o texto A tirania das organizações sem estrutura, de Jo Freeman. Não é fácil sustentar princípios e renunciar posições em trabalhos de grupo. Mas é importante que exista espaço para que essas coisas sejam ditas, pensadas, trabalhadas, confessadas, inclusive para que integrantes saibam por que estão entrando, onde concordam, onde discordam, e até mesmo por que venham a sair do trabalho.

A própria ideia de ao menos duas supervisoras – quem sabe mais virão... – é também uma forma de nos proteger do pensamento único, de uma relação idealizada e de subalternidade diante da autoridade. Que seria também um peso que as companheiras supervisoras não estão dispostas a carregar. Um escudo contra vínculos maciços. A ideia de convidar integrantes que vêm de formações fora da psicanálise, e de diferentes grupos e escolas dentro da psicanálise, também passa por aí. Somos um grupo multirreferencial, esse é o nosso desafio e, algumas vezes, nosso limite. E estamos abertos a receber novos e novas interessadas em trabalhar nos arranjos propostos e particulares desse trabalho que, por ora, depende do desejo político como forma de sustentação.

No ano passado, quando o trabalho contava com a verba destinada para a artista Graziela Kunsch, havia uma proposta de remunerar os analistas, num valor aproximado ao que seria o de um bilhete mensal de transporte. Esse é um gesto de abertura, pensado pela Grazi, aos analistas, aos deslocamentos pela cidade, além do não pagamento da tarifa para vir efetuar seu trabalho de escuta e presença. Neste ano esta verba já não existe, mas temos o desejo e o acordo de demandar do centro cultural, ou seja, de alguma forma, da prefeitura, que esta remuneração possa ser feita. Mas sobre isso não há garantias. Flutuamos com a conjuntura.

Aqui há uma aposta bastante importante: a ampliação dos deslocamentos pela cidade, a partir de um processo transferencial afetivo, ou seja, um trajeto distinto da hostilidade e obrigação dos não-caminhos casa-trabalho-casa, ou casa-escola-casa, e com uma companhia engajada, pode ter como consequência a ampliação do repertório de representações psíquicas, dos traços de memória, dos cenários do nosso “mundo interno” pelo qual a gente fantasia. Isso pode ser um ato terapêutico e crítico em si, proporcionando ao sujeito e seu psiquismo maiores saídas para situações dilemáticas, difíceis, truncadas. E isso vale para todos e todas nós, analistas e analisandos e artistas e trabalhadores em geral.

Um estudo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Estudo epidemiológico dos transtornos psiquiátricos na região metropolitana de São Paulo: prevalências, fatores de risco e sobrecarga social e econômica, que aproxima as noções de falta de mobilidade e aumento de adoecimentos mentais variados, me dá alguma segurança nesta intuição da dialética entre espaço territorial e espaço psíquico. Por isso chamo este texto de O direito à cidade psíquica. Tomo de empréstimo as noções que Henri Lefebvre e David Harvey pensam do termo “direito à cidade”, não apenas como o direito ao acesso às coisas que a municipalidade oferece, mas o direito em si de construir a cidade, de agir política-terapeuticamente na transformação da cidade que nos forma. Direito ainda hoje negado às classes populares.

Um privilégio do mercado, mais auxiliado do que interditado pelo Estado. Penso a psicanálise como um urbanismo psíquico crítico e democrático das profundezas e superfícies, das ruas, vielas, corredores e, principalmente, das periferias por onde se desloca, ou é inibida, nossa libido em desenvolvimento. Vale lembrar que vivemos numa cidade em que a média de expectativa de vida aumenta ou diminui radicalmente a depender de sua localização. Por exemplo, de acordo com o Mapa da Desigualdade 2016, da Rede Nossa São Paulo, um morador de Alto de Pinheiros vive em média 25 anos mais que um morador da Cidade Tiradentes. Para complementar este ponto, convido a leitura de um texto que escrevi em 2010, para a revista Urbânia 4, chamado Deslocamento é lugar (1).

Infelizmente a nova prefeitura aumentou de R$ 140 para R$ 190 a tarifa do bilhete mensal e provavelmente assim não poderemos mais ter o valor integral do bilhete.



O trabalho de atendimento é organizado a partir da procura de ex-moradores da Vila, do encaminhamento de movimentos sociais, de assistentes sociais que trabalham na região, e, por fim, dos plantões abertos aos sábados. Os atendimentos são gratuitos. Ou melhor, não são cobrados. Há um entendimento na feitura da Clínica a partir da ideia de reparação da violência do Estado (expulsão dos moradores) e do mercado (que impede o acesso à psicanálise “regular”) e sobre a importância de bancar uma posição a favor da redistribuição dos frutos do trabalho coletivo e da coletivização dos cuidados. Alguma coisa próxima ao espírito do “pacto social”, pensado por Helio Pellegrino, co-fundador da Clínica Social de Psicanálise do Rio de Janeiro, como continuação necessária do “pacto edípico” – o acordo simbólico de pertencimento que o novo pequeno integrante estabelece com a comunidade humana que o precedeu.

Forma de sustentação cidadã, comunitária e minimamente justa da vida social. Os sujeitos brasileiros, quando ele publicou o famoso texto Pacto edípico e o pacto social já em 1983, trabalhavam muito e pouco recebiam em troca. Crise econômica na transição (ainda) incompleta da ditadura para a democracia de baixa intensidade, como chama hoje Boaventura de Sousa Santos. Não parecemos ter saído daquela situação que marca a história da vida brasileira. Estamos num momento de forte retrocesso social, do retorno agudo da precarização das condições do trabalho precário desde sempre e de controle autoritário sobre práticas e pensamentos utópicos/ progressistas/ críticos que apontam para outra forma organizativa e de controle dos recursos produzidos socialmente.

A quebra, a frustração deste pacto, onde os sujeitos oferecem sua contribuição, mas não recebem como retorno solidário os suportes de que precisam, para Helio, seria fonte poderosa de consequências antissociais. Isso que será chamado de delinquência, de conduta desviante, como ameaça à sociedade, como se tratassem de sujeitos exteriores a ela. A quebra do pacto social traz consequências graves quando somadas a má recepção da criança neste mundo.

Reforça os motivos para violência, consequência da desigualdade histórica brasileira, fruto do encontro demoníaco entre escravidão e exploração moderna do trabalho, ausência de políticas reparatórias, subjetivação conformada e, no limite, forte repressão cotidiana. Helio via duas saídas: uma mais saudável, na qual o sujeito se reconheceria ao lado de tantos outros em semelhante situação, e se rebelaria contra esta forma de sociedade a favor de uma outra. A outra, autodestrutiva, mais recorrente do que a primeira, a pura violência, ausência de motivos para ligação com o outro, que apenas reforça o mundo que a alimentou.



Como uma breve deriva, cito o psicanalista argentino Enrique Pichon-Rivière, que define o trabalho terapêutico como processo de passagem da alienação, ou adaptação passiva à realidade, para uma progressiva adaptação ativa à realidade. Cito uma passagem inteira de Uma nova problemática para a psiquiatria, de 1963: “Em nossa cultura, o homem sofre a fragmentação e dispersão do objeto de sua tarefa, criando-se então, para ele, uma situação de privação e anomia que lhe torna impossível manter um vínculo com esse objeto, com o qual conserva uma relação fragmentada, transitória e alienada.

Ao fator insegurança diante de sua tarefa vem acrescentar-se a incerteza diante das mudanças políticas, sendo ambas sentimentos que repercutem no contexto familiar, no qual a privação tende a se globalizar. O sujeito vê-se impotente no manejo de seu papel, e isso cria um baixo limite de tolerância às frustrações, em relação com seu nível de aspirações. A vivência de fracasso inicia o processo de enfermidade, configurando uma estrutura depressiva. A alienação do vínculo com sua tarefa desloca-se para vínculos com objetos internos”. Pichon pensa a relação entre as frustrações e/no mundo externo, agora internalizadas e que reativam e aprofundam conflitos muito antigos do sujeito. Como pensar estas instâncias, dentro e fora, social e individual, de forma separada?

O psicanalista francês Christophe Dejours diz que “o sujeito pode transferir esse reconhecimento do trabalho para o registro da construção de sua identidade. E o trabalho se inscreve assim na dinâmica da autorrealização. A identidade constitui a armadura da saúde mental. Não há crise psicopatológica que não tenha em seu núcleo uma crise de identidade. E isto confere à relação com o trabalho sua dimensão propriamente dramática.

Ao não contar com os benefícios do reconhecimento de seu trabalho nem poder aceder ao sentido da relação que vive com esse trabalho, o sujeito se confronta com seu sofrimento e só a ele. Sofrimento absurdo que só produz sofrimento, dentro de um círculo vicioso, e que será desestruturante, capaz de desestabilizar a identidade e a personalidade e causar doenças mentais. Por isso, não há neutralidade no trabalho em relação à saúde mental” (2).

Pensando como Pichon, o sujeito que passa por um processo de transformação em análise causa um impacto novo no seu ambiente, social, familiar, de trabalho. E este ambiente, por sua vez transformado pelo sujeito, continua o transformando, num circuito contínuo de desalienação, se as coisas forem bem. O que acontece quando nos desalienamos, mas ao nosso redor o mundo insistir em repetir sua forma de sempre? Na Clínica Pública nos permitimos escutar esta relação mútua entre o social e os efeitos psíquicos nas pessoas e suas comunidades.



O cotidiano do trabalho na Clínica

As pessoas, que não sabemos se chamamos de pacientes, de usuários, de conversadores, de pessoas que vêm para desabafar, nos procuram por muitos motivos diferentes, como não poderia deixar de ser. Às vezes para ter certeza de que estão ou não com razão sobre determinadas coisas, às vezes pra tentar se localizar na vida e no mundo... De qualquer forma, chegam e encontram uma mesa, onde geralmente está o Peroba. O Peroba trabalha no Canteiro Aberto, sendo o responsável pelas oficinas de capoeira e também como educador da formação de público. Em geral é ele o primeiro rosto da Clínica, a primeira voz e escuta. É ele quem distribui as senhas do plantão, é ele quem faz companhia – enquanto trabalha em outras coisas – para quem está esperando a hora da conversa com o/a analista. É ele que bate um papo para a pessoa que não consegue a senha não sair de lá tão frustrada.

Disse outro dia, e acho que gostou, que ele é integrante da Clínica e seria muito bom se ele quisesse participar das nossas conversas. Do jeito que vejo, todos naquele galpão fazem parte da Clínica, da história clínica das pessoas que nos procuram. As crianças que brincam, os/as trabalhadores/as de limpeza e segurança e assim por diante. Talvez tenhamos muito a aprender com eles e eles conosco. (Nota posterior à primeira publicação do texto: ao lado do Peroba está Bruna Donegá, que também está cada vez mais implicada no trabalho da Clínica. Por coincidência, é filha de psicanalista)





Aos sábados fazemos um plantão no final da manhã e início da tarde. Qualquer pessoa pode ir. Oferecemos ao menos quatro senhas por final de semana. Dependendo da quantidade de analistas, o número aumenta. Distribuímos por ordem de chegada, o que é uma forma democrática e ao mesmo tempo não é, já que as pessoas que vêm de mais longe estão em franca desvantagem. A Vila fica numa região periférica, mas no centro da cidade. E é de longe mesmo que vem uma boa parte de pessoas. Inclusive de cidades da Grande São Paulo.

Isso demonstra que a demanda por cuidados psíquicos é enorme, é popular, e não apenas “coisa de rico” e a oferta de cuidados é muito pequena e centralizada. Uma contradição para lidar e denunciar. Como atenuá-la? Ex-moradores/as da Vila Itororó e militantes de movimentos sociais podem nos procurar, sem passar pelo plantão (Nota: há mais ou menos um mês passamos a realizar também trabalhos terapêuticos em grupo das 11h às 12h30. Não é necessário pegar senha, basta chegar.)

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Há um consultório, que foi montado lá mesmo, em comunhão com os caras do Gamb, um coletivo de marcenaria que trabalhava no Canteiro Aberto. Como tudo no galpão, as paredes e até mesmo o divã são móveis, dobráveis, com rodinhas. Não há teto e situamos as paredes diante de uma janela onde se pode ver a Vila Itororó, ouvir a 23 de maio, ver as catedrais, os prédios pobres, os de classe média e de classe média alta... Enfim, a cidade e todas as suas contradições entram no consultório. Num movimento semelhante com a prática do acompanhamento terapêutico, que leva a clínica para a rua. Mas também atendemos fora do consultório, em muitos móveis interessantes, esquisitos, que se assemelham a divãs, mas virados um de frente para o outro. Ou em pequenas salinhas sem parede. Ou na cozinha dos trabalhadores da obra. Ou lá mesmo no canteiro... E tudo isso vai fazendo a fala e a escuta se transformar. Existem coisas que deixam de ser segredos por serem ditas em espaço aberto. Existe o medo da exposição, o cuidado com a fala, que revela mil coisas depois trabalhadas pelo par... Existe inclusive o aprendizado difícil para os analistas em trabalhar num ambiente que parece tão pouco protegido...


Freud falava sobre os sonhos como uma janela para o inconsciente, aqui se pode pensar a janela para o inconsciente da cidade? Foto de Graziela Kunsch.





Outra questão é o arranjo do trabalho, ou melhor, os arranjos. Há quem procure um tratamento, já com uma certa expectativa. Há quem chegue para desabafar e nunca mais voltar, como poderia fazer em um serviço de escuta nas igrejas, ou em busca de orientação mágica como em encontros com o pai ou mãe de santo. Há quem queira vir algumas vezes apenas, ou vir a cada quinze dias... São muitos arranjos possíveis. Mas optamos por permitir um trabalho baseado na relação transferencial continuada. Quer dizer, não atendemos uma única vez quem nos procura, caso a pessoa queira conversar mais vezes. E a pessoa pode construir esse trabalho com o mesmo analista/ a mesma analista, caso queira e caso o/a analista ainda tenha horários disponíveis.

Além de apontarmos para a dimensão de que as transformações psíquicas acontecem no interior da relação entre analisando e analista, mais do que nas descobertas arqueológicas ou nas interpretações do que se fala (ou melhor, nas descobertas e interpretações no contexto da relação íntima construída), há também, a meu ver, uma posição política de enfrentamento ao momento de esfacelamento das relações continuadas, permanentes, comunitárias – o que nada tem a ver com impedir as aventuras e os novos encontros, menos ainda com um compromisso com as tradições conservadoras. Os “corujões” de atendimentos impessoais, a terceirização dos cuidados, a falta de constituição de laços, tudo isso está em plena sintonia com a necessária precarização das relações para o estabelecimento profundo do neoliberalismo.

Desengajamento, abandono, desamparo. Como poderíamos acompanhar os efeitos das conversas sem esses “retornos”? Se trata de apresentar um número expressivo de consultas realizadas ou de produzir um trabalho de qualidade, na contramão da liquidez das relações de mercado e na desconstrução das redes de atendimento públicas que abrem caminho para os planos particulares e os dr. Consulta, para não dizer as “análises” instantâneas online?

Isso nos coloca um dilema semanal: como conseguir atender novas pessoas ao mesmo tempo em que continuamos o trabalho com as que já acompanhamos? É preciso mais analistas? Sim, e estamos em busca de analistas que concordem com nossos princípios, mesmo que possam atender poucas pessoas. É preciso pensar espaços de trabalho de grupo? Sim, mas não apenas para ampliar a quantidade de atendimentos, e sim a partir da qualidade que um encontro grupal oferece.

Além dos plantões, esses mutirões de conversa onde são realizadas de 10, 12 a 13 conversas, utilizamos quase todos os dias da semana para os atendimentos continuados. Mas é importante também admitirmos nossa limitação. Não se trata de uma clínica atender a demanda da cidade. Trata-se, partindo da constatação de que nunca daremos conta de atenuar e analisar todo o sofrimento, de mil clínicas serem criadas e espalhadas no território amplo. Este texto é, sem dúvida, uma espécie de convite e de demonstração de que é possível criar dispositivos dessa forma.



Há algo fronteiriço aqui entre um projeto independente, que realiza e experimenta no agora uma demanda que pode e deve vir a ser política pública. As circunstâncias políticas convocam posicionamentos, não apenas de resistência, mas também de avanço. Ampliar a esfera pública dentro do Estado, de baixo para cima, de forma não burocrática, me parece uma boa perspectiva e acredito que a Clínica Pública de Psicanálise se insere neste contexto.

Sem a instituição da política, todo o projeto corre o risco de deixar de existir, à medida que o desejo, a dureza econômica da vida cotidiana, os recursos libidinais e políticos, se enfraqueçam na geração que a conduz. E se psicanalistas vindos das classes populares quiserem ingressar no trabalho, mas não puderem doar um dia de trabalho sem remuneração? Aqui já abrimos duas frentes com as quais desejo encerrar este texto: o interesse em utilizar a Clínica como espaço aberto de formação e a forma como lidamos com os atendimentos não mediados pelo pagamento em dinheiro.

1) “Deslocamento é lugar”: http://urbania4.org/2011/02/14/deslocamento-e-lugar   

2) “O sofrimento no trabalho”: http://www.ihu.unisinos.br/171-noticias-2013/520004-o-sofrimento-no-trabalho-artigo-de-christophe-dejours 

Parte 1

Parte 2

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