Correio da Cidadania

Psicanálise como um direito

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A psicanálise deve ser um direito de todos e todas. Essa concepção aparece desde Freud, no famoso discurso de Budapeste, de 1919 (1). Mas isso não significa apenas que os privilegiados psicanalistas venham a oferecer seus trabalhos de forma assistencialista. Significa que as classes populares devem ter acesso à formação em psicanálise. Que se tornem psicanalistas também, que possam estudar psicanálise e fazer suas análises, percorrer esse caminho de vir a ser analista.

Concebemos a Clínica Pública de Psicanálise como um espaço de atendimento, convivência, conversa, formação, brincadeira, muito atravessada pela noção dos usos espontâneos da Vila Itororó Canteiro Aberto. Há crianças que brincam lá na salinha, mesmo quando não há ninguém por perto. Não foram poucas as vezes que nos deparamos com brinquedos montados, espalhados, marcas de pés no divã tropical antes de ser estofado. Até pequenas rebeliões contra os brinquedos e plantas puderam acontecer. Já vi gente dormindo no divã, e sabe-se lá o que mais rolou sem que ninguém saiba...

Em breve começaremos a montar a biblioteca, que também será de uso livre, pelo menos enquanto a sala não estiver sendo utilizada para atendimento. Já temos aproximadamente vinte livros e aceitamos doações. Serão livros sobre psicanálise, mas não só. Isso é um gesto de comunicação sobre como a psicanálise não existe sozinha, como foi um saber construído de forma multidisciplinar. Temos também uma página no facebook (2), onde publicamos coisas que dialogam com nosso trabalho. É um espaço também de pensamento público sobre a psicanálise, fora dos circuitos especializados de psicanalistas. E também pode ser um fórum de debate entre psicanalistas que estão por aí, sem sabermos, praticando à sua própria maneira algo num espírito assemelhado.

A Clínica pode ser utilizada também para grupos de estudo. Ou para apresentações de alguma pesquisa. Ou como lugar de conversa pública sobre determinado tema, seja proposto pelo coletivo da Clínica ou não. Ou para conversas incluindo os “pacientes” e trabalhadores do Canteiro Aberto, como acontecem, por exemplo, nas assembleias em alguns hospitais-dia, como o Caps Itapeva. Será que essas pessoas não devem também fazer parte da formulação do trabalho? Temos o interesse de realizar com frequência essas atividades, por exemplo, sobre a relação entre a cidade e o psíquico, as consequências subjetivas das “deformas” trabalhistas e previdenciárias e muitas outras coisas mais.




Desmonetarizando o inconsciente

Por fim, a questão do dinheiro. Questão difícil e delicada, tabu, de muitas formas, porque se trata de dinheiro. E o dinheiro é algo que constitui e faz estrago, fora e dentro da psicanálise, fora e dentro do psiquismo. O equivalente geral que dá forma para a troca das mercadorias e que se espraia como forma de todas as relações sociais, pensando por Marx. Um dos equivalentes simbólicos inconscientes em uma cadeia associativa que opera nas dimensões amplas e conflitantes de potência, narcisismo, castração, presente, troca, pensando um pouco com Freud. Dádiva e dívida, como li outro dia num texto que não me recordo qual. Penso na música Mother, da banda punk rock Dirt, onde a vocalista diz que sua mãe lhe deu a vida, mas quem lhe deu esse direito de fazê-la sentir-se por isso em dívida? Dádiva ou dívida, que palavras são estas as que usamos? São formas de nomear afetos que existem? São nomes que dão forma e institucionalizam certos afetos? São nomes insuficientes para dar conta da variedade destes afetos? É a psicanálise uma mercadoria?

Felizmente podemos escutar, sentir e manejar os efeitos do dinheiro nas relações analíticas que estabelecemos nos consultórios. Algo diferente disso já acontece com os analistas que trabalham na rede pública de saúde mental, de formas muito variadas, mas em relações transferenciais, de vínculo, não mediadas pelo dinheiro, como estamos chamando essa prática. Joel Birman lembra, num texto sobre o tema, que há duas formas de pensar a questão. Do ponto de vista exterior à psicanálise, ou melhor, do ponto de vista do psicanalista no mundo, como seu trabalho, suas expectativas de conforto e qualidade existencial de vida digna, algo que nenhum ser humano deveria deixar de poder sonhar. E do ponto de vista interior à psicanálise, ou seja, os efeitos do dinheiro nas expressões transferenciais, na economia libidinal, por onde esta libido circula, por onde não pode circular, as manifestações de culpa, de controle, de frustração, de implicação do desejo e assim por diante. É possível, portanto, um trabalho analítico sem a fiação pelo dinheiro, sem a individualização des-historicizada e descontextualizada desta tributação?

Acredito que sim e acredito também que a psicanálise deve levar em consideração o lugar onde é praticada. Isso também faz parte da montagem, do setting, do enquadre. Estamos no Brasil, e num Brasil ladeira abaixo do ponto de vista da distância entre classes sociais, do ponto de vista econômico, cultural, educacional, o que for. Estamos também num momento em que a relação entre trabalho individual e sua produção particular, a remuneração, o tempo e o dinheiro também já foram em muito ampliadas, desde o período do nascimento da psicanálise. Hoje se debate o trabalho imaterial socialmente produzido e não remunerado (3); a financeirização do próprio dinheiro que lhe atribui uma abstração de valor ainda maior; propostas sobre rendas básicas para garantir cidadania (aqui incluímos os cuidados psíquicos entre os direitos a serem defendidos)... Os/as psicanalistas não devem querer saber sobre qual solo pisam ao tratar destas questões? Como diria outra banda punk rock, o Fugazi, é preciso criar um novo instrumento de medida sobre o valor das coisas.

Deslocando um pouco, mas não muito, retomo a discussão que propúnhamos no Movimento Passe Livre. O movimento defende que a cidade deve ser acessada por todos e todas, já que todos e todas contribuem com sua construção e manutenção. Para isso, é preciso uma rede ampla e gratuita de transporte coletivo, para que o transporte seja público de verdade, que a cidade seja pública de verdade. Pois um hospital, uma praça, uma escola etc. não são públicos de verdade se os habitantes não podem ter acesso a elas pela cobrança de uma tarifa. E na verdade, diz o movimento, não se trata de gratuidade. Deve se diferenciar custo de tarifa. O custo operacional de um ônibus (salários, manutenção, garagem, reposição de peças etc.) não é exatamente a base do cálculo feito para o valor cobrado pelo seu uso, a tarifa.

Muitos outros fatores são inseridos nesse cálculo, muitas formas de pensar economicamente – e muitos interesses conflitantes – produzem valores diferentes até chegar o preço da tarifa. Para o MPL, o pagamento do custo transporte, essa forma material de deslocamentos simbólicos pelo território geográfico e existencial (usando novamente as palavras de Antonio Lancetti), deveria se dar através dos impostos, dos fundos públicos, do orçamento público, que, a nosso ver, deveria ser constituído de forma progressiva. Ou seja, quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos, quem não tem nada não paga nada.

Assim, produziríamos uma forma política mais próxima de um gesto social-coletivo, apostando nos ganhos de todos com os custos compartilhados proporcionalmente. E é claro que enfrentamos resistências, de classe, do medo do desconhecido, das encarnações das forças mortíferas e autodestrutivas que circulam por aí.



Como se pode perceber a coisa é da mais alta complexidade e sobredeterminação. Mas ainda utilizando as colocações de Birman, se há um aspecto externo na relação entre psicanálise e dinheiro, é bom que o saibamos, porque de alguma forma coloca a psicanálise no mundo, na realidade, e nos interessa disputar o que é a realidade. Vale a leitura de Cornelius Castoriadis em a Instituição imaginária da sociedade, e sua crítica a uma certa leitura conservadora sobre o princípio de realidade freudiano e a definição marxista vulgar de que a história da humanidade é determinada pelos interesses puramente econômicos como o conhecemos dentro da lógica de acumulação capitalista.

Castoriadis, comunista de formação, militante e editor da revista Socialismo ou Barbárie, diz que a redefinição da humanidade como “homo economicus” deveria ser restringida histórica e territorialmente e não expandida para todas as formas de existência humana além daquela faixa estreita europeia de alguns séculos. Essa definição, ideológica no sentido marxista, de ocultação da realidade e adaptação subjetiva aos interesses das classes dominantes de um certo período, faria da filosofia marxista da história um grande propagandeador da subjetividade capitalista. Palavras que definem a alma, desde sempre, para todo o sempre, encerrando o caminhar da história e suas transformações. Reforço a pergunta de Castoriadis: de que princípio de realidade estamos falando? Onde a psicanálise está inserida, ou pensa estar inserida? Onde nós estamos fazendo psicanálise?

A outra ponta levantada por Birman, do ponto de vista interno, da circulação libidinal, interessa igualmente, por entrar no campo simbólico, dos deslizamentos dos conteúdos, da busca por sucedâneos, substitutos, outros caminhos por onde a libido pode circular, inclusive para além do circuito do “homo economicus”. O inconsciente esteve por aí muito antes de o dinheiro existir. E se o dinheiro foi inscrito posteriormente no vasto mundo desconhecido das profundezas da alma, não quer dizer que tenhamos de nos remeter a ele prioritariamente. O que é bastante diferente de recalcá-lo, fazê-lo esquecer enquanto ele ainda existe de forma inconsciente, assim como o capitalismo fez com suas formas de funcionamento, em especial a extração de mais-valia, a acumulação a partir de um mais além da exploração do tempo de trabalho alienado, como diria Sergio Rouanet em Teoria crítica e psicanálise.

Quer dizer, o esquecimento da acumulação do capitalista a partir da exploração do trabalhador, como que numa cisão entre tempo pago e tempo não-pago, gerador de um excedente não retornado ao próprio trabalhador. Num trabalho cujo produto já é estranho ao desejo do sujeito (cada vez menos temos uma relação verdadeira de vínculo com aquilo que produzimos) e cujo valor é sempre abstrato, mesmo quando entramos num acordo arbitrário de quanto vale cada coisa. Talvez seja possível outras ligações transferenciais para além do princípio da realidade do mercado, sonhar com uma vida cujas ligações sejam constituídas por outros caminhos. E isso nós podemos verificar num arranjo como o da Clínica Pública de Psicanálise Tarifa Zero.



A coisa está no campo do fetiche. Recordo de um mito de Ossaim, um dos orixás curandeiros, em suas jornadas peripatéticas de tratamento. Ossaim primeiro cura um rei, que lhe oferece mil riquezas, as quais recusa. Cobra o seu preço, nem menos, nem mais. Depois, ao curar a própria mãe, Ossaim insiste em cobrar o pagamento, para espanto dos irmãos. “O dinheiro era parte da magia, que tem seus encantamentos, fórmulas e preceitos, que nem mesmo Ossaim pode mudar. Ossaim curou a mãe e seguiu seu caminho, como a folha que é livre e o vento leva”, diz o mito publicado por Reginaldo Prandi em Mitologia dos Orixás.

Penso ser possível fazer um pequeno deslocamento, porque dinheiro em Ossaim é uma coisa diferente do dinheiro nas cidades mundanas de 2016 (e Ossaim cobra um mesmo preço, independente de quanto significa para cada sujeito). Há uma magia e um encantamento no processo transferencial, mediador de uma relação analítica. Há expressão de investimento, engajamento. E há magia e encantamento, do tipo fetiche, na mercadoria dinheiro, que se apresenta arbitrariamente como equivalente geral de troca, mas acentuadora de relações assimétricas – a depender de onde se nasceu, como se pode sonhar o trabalho no futuro, quanto cada tipo de trabalho é capaz de produzir e ser remunerado etc.

Fetiche é uma outra palavra para feitiço. Há uma discussão tensa sobre o significado da palavra dívida, resíduo prejudicial e de dependência do analisando para com o analista, que o pagamento poderia, digamos, quitar. Questão que pode ser colocada de forma perversa, do tipo “a análise só acontece mediante o pagamento, pagamento de uma dívida que ao mesmo tempo não pode ser quitada”. Se pode pensar também sobre os impedimentos da expansão das possibilidades de vida por conta do dinheiro, da falta de dinheiro, do tempo de vida insuficiente para acumular dinheiro, da incerteza sobre a conjuntura política e econômica que faz o dinheiro desaparecer de uma hora para outra. O dinheiro e seus vértices, de poder, de sobrevivência, de desamparo, do terror e da vaidade, é um dos elementos da mais alta importância na vida psíquica e gatilho para fantasias, sintomas, sem dúvida. E deve ser conversado, elaborado nos enquadres em todo o processo de trabalho. Sendo ele materialmente convocado pelo analista ou mencionado a partir do analisando, no curso de suas associações livres.



Por que tantas pessoas vêm de tão longe até a Clínica, demorando até duas horas para vir, mais duas para voltar? Sem nos conhecer, sem saber da profundidade do nosso compromisso com elas? Sem sequer saber que coisa é essa de psicanálise? Minha aposta forte está no fato da não mediação pelo dinheiro, na acolhida inédita, pouco ou nada burocrática. No convite em que se espera nada a não ser tudo, quer dizer, o próprio encontro. Sem triagens, sem anamnese, sem preenchimento de fichas. A presença dedicada do outro e nada mais.

Por exemplo, a história de S., uma história do ano passado. Morador do Grajaú, S. chegou bem cedinho num dia de plantão. Pediu para ser atendido antes dos demais. Ao longo da conversa contou que o motivo era econômico: não tinha dinheiro para voltar caso perdesse o tempo da integração do bilhete único. Duas horas e meia de viagem, chegara lá às 9h. No final, saiu correndo do consultório. S., como diria Milton Santos, é um desses exilados na periferia. Mora com a mãe, mas a mãe é empregada doméstica em algum bairro nobre da cidade e, para poupar energia, dorme a maior parte dos dias na casa dos patrões, que é também seu local de trabalho. Aqui já há toda uma conversa sobre a constituição social e seus desdobamentos. Como é isso da pessoa morar no lugar de trabalho? Quer dizer, não é nem morar, é outra coisa. É um não-morar.

Mas bem, S. se sente sozinho demais. Fez duas faculdades, uma de turismo, outra de administração, nenhuma reconhecida pelo MEC. Tem 28 anos e até agora trabalhou apenas em telemarketing. Se o trabalho é extensão de nós, de nossa capacidade e subjetividade exteriorizada no mundo e que, em seguida, retorna a nós como significado de nossa potência ou falta de potência, penso o que isso pode produzir em S. em seu único trabalho até agora, que é vender coisas e a si mesmo, à distância. Vez ou outra ele conhece uma moça na internet. Contou de uma pela qual trabalhou quase um semestre para poupar R$ 200,00 e comprar uma passagem de ônibus até o sul do país. Por outra ele foi passar alguns dias no Mato Grosso do Sul. As duas se decepcionaram com o encontro presencial, o acharam pobre. Uma delas perguntou como ele conseguia viver num bairro tão feio.

Em todos os momentos de sua fala surgia a questão da distância, no amor e na cidade, e muito tempo daquele encontro foi utilizado para que S. pudesse reconhecer como as misérias do nosso território o tensionam e o fazem sentir envergonhado, culpado, desconfiado de sua própria dignidade. No final da conversa, digo a ele que fazemos um arranjo na clínica de forma que ele possa voltar todo sábado que quiser, ou pode voltar nos sábados que eu esteja lá. Ele responde que voltará quando tiver dinheiro para pagar a passagem. Uma resposta inesperada, como diria Graziela Kunsch, e que nos fez repensar os arranjos do trabalho em 2017. Daí a importância das clínicas na periferia, daí a importância da tarifa zero como um direito que proporciona outros direitos. Se você não pode chegar até a clínica pública, é pública a Clínica?


É de se pensar, também, nesses termos que marcam as relações no nosso tempo, como crédito e dívida. O que significa hoje dívida e investimento? Abre parêntese, investimento, em psicanálise, vem do alemão Besetzung. Até pouco tempo aqui no Brasil era traduzido por catexia. Recentemente, em novas traduções, passou a se utilizar investimento, por exemplo “investimento da energia libidinal em uma representação psíquica”. Outra palavra possível, de associações menos financeiras, mais políticas e territoriais, digamos, é ocupação. Fecha parêntese.

Algo importante a ser reforçado: os mais pobres já investem e investem em demasia na sociedade, através de seu trabalho, e de suas produções criativas materiais e imateriais transformadas em valor, apropriados pelo mercado e pela publicidade. Pouco ou nada recebem em troca. Eventualmente a única coisa pública é uma bomba de gás, bomba tarifa zero, cujos estilhaços podem cegar. E esse pouco em troca, como nos ensinou Helio Pellegrino, é capaz de impedir, de frustrar, a entrada do sujeito no pacto social. Esses elementos não podem ficar de fora do pensamento sobre as relações entre pagamento, transferência e análise. Como dizer que S. não investiu, não se implicou naquele encontro analítico, pois não o pagou para mim? Como eu poderia cobrar dele se ele por pouco não tem nem o dinheiro para se deslocar? O sujeito que não tem posse ou dinheiro, o sujeito brasileiro pobre que só tem a seu próprio corpo e sua força de trabalho... Não é “só”, aliás, é tudo. De forma quase nua, ele vai. Por que haveríamos de recusar esse gesto?

Mauricio Lazzarato, sociólogo e filósofo italiano, comenta essa forma de controle do corpo e do espírito que é a dívida. É preciso estar em dívida para trabalhar os desdobramentos emocionais em transferência? É possível não estar em dívida, quitando as parcelas-sessões? Serão as sessões reduzíveis a uma experiência quase financeira, onde a palavra investimento agora já escapa aos sentidos do desejo?

Um trecho de Lazzarato (4): “O consumidor é objeto de diferentes dispositivos de poder: a publicidade, o marketing, a televisão impulsionam a construir seus objetos de desejo. O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que acrescenta a desigualdade de ingresso entre as classes sociais, cada vez mais empurra as pessoas a consumir, como se o acesso ao consumo fosse possível para todo mundo. Os objetos de desejo, as mercadorias, estão sempre disponíveis... Em imagens. Primeiro chegam as imagens; depois, as mercadorias. Outra importante transformação da subjetividade se produziu em relação às finanças, que são outro dispositivo de poder. O funcionamento mundial das finanças, dispositivo central do capitalismo, requer a generalização do crédito. Há um século, o crédito era para as empresas. As pessoas viviam da renda de seu trabalho. Hoje, todos podem ter crédito. Nos Estados Unidos há crédito para consumo, educação. Se alguém quer estudar deve endividar-se, obter um crédito. E isto organiza a subjetividade. Um crédito é uma promessa: eu vou pagar. Em 10, 20 anos, vou pagar este crédito. Como se pode assegurar que o crédito será respeitado todo esse tempo? Em nível legal, mas também em nível subjetivo, se constroem mecanismos para garantir que a promessa se cumpra”.



Sendo o capital tão estruturador e desestruturador de nossas vidas e “espalha” suas características por todas as relações humanas e, através dessas, por todo o mundo – relações onde poder e falta de poder ativam emoções muito primitivas, inconscientes e arcaicas, de desamparo e também de onipotência – essa dimensão do pagar ou não, do que é público ou privado, do que é consumo ou vida, talvez tenha de passar por cada análise. Pelo analisando, mas também pelo analista. E não se trata de politizar vulgarmente o processo analítico, no sentido do desejo do analista sobre o desejo do analisando, mas de poder associar e construir sentidos, independentemente da direção que aponte. E isso desperta, é claro, questões práticas para os analistas. Afinal, precisamos também viver nesse mundo. Trabalhamos em nossos consultórios.

Mas seria o caso de lutarmos por políticas que criem espaços como este em que estamos e que remunerem os analistas com recursos vindos de orçamentos sabidamente públicos, de preferência a partir das taxações conscientemente progressivas de maiores fortunas? É possível existirmos de forma institucional, com independência, como defende Castoriadis na sua proposta de instituições que promovam a autonomia? Não se trata de uma campanha moral, franciscana, contra o conforto que devemos procurar em nossas vidas através de nossa prática. Não há nada de errado nisso, muito pelo contrário. O errado é uma parte significativa de não poder desfrutá-la. Não fomos nós que inventamos essa máquina, mas podemos ajudar a revelá-la.

A questão sobre ser ou não análise quando não há esta mediação do dinheiro revela apenas como o feitiço do dinheiro impede até o pensamento acontecer. Existirá psicanálise num mundo pós-capitalista, caso este seja ainda realizável? Como ela será? Ainda podemos nos dar a liberdade de pensar utopias dessa forma? O que mediará a relação transferencial? Se for o caso desta outra relação transferencial pós-dinheiro existir, não será ela acessível aqui e agora, ao menos como possibilidade pré-figurativa?


O dinheiro não encerra o inconsciente, ainda que esteja nele inscrito. A história da humanidade, onde o dinheiro veio a existir e pode também deixar de existir, não acabou. O dinheiro não é universal e o inconsciente é mais amplo, é mais antigo do que ele. É plástico, ainda que não moldável apenas pela razão e/ou por decisões que pretendam alterar a rota das coisas de uma hora para outra. Mas como disse Freud, talvez o saudável seja uma combinação entre a neurose, e sua relação tensa com a realidade, e o inconformismo da psicose, que deseja refazer a realidade frustrante. Que essa transformação possa ser tanto externa quanto interna. Se é que a vida vale a pena, há uma demanda urgente, leve o tempo que demorar, para encontrar as potências dela ainda não nomeadas, ou denunciar suas limitações mal nomeadas, encarar o medo do desconhecido que, como disse Wilhelm Reich na segunda parte de A revolução sexual, produziu o retrocesso das relações sociais e, para ele, o refreamento da Revolução Russa. Diante do receio das formas de existir que ainda não existiam, liberadas em pensamento e por algumas práticas experimentais no processo revolucionário, mas sem instrumentos de elaboração psíquica das ansiedades desse mesmo processo, o povo retomou as formas anteriores de vida, desfavoráveis a ele materialmente. Isso é algo que precisamos ter sempre em mente.

É tempo de lembrar uma fala de valor significativo, mas não quantificável, de Antonio Candido, falecido poucos dias antes da redação deste texto, sobre o valor do uso do tempo a favor da vida. Há algo muito próximo disso quando defendemos a relação analítica não mediada pelo dinheiro. Essa fala foi feita na ocasião da abertura da biblioteca da Escola Nacional Florestan Fernandes, a escola de formação do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, batizada com seu nome. Por coincidência, um dos embriões da Clínica Pública de Psicanálise aconteceu exatamente lá, no mezanino lindo daquela biblioteca. Lá foram atendidos militantes de movimentos sociais da América Latina e do Brasil. Lá tivemos bons encontros, cujo tempo se prolonga na memória dos que vivemos aqueles dias não mensuráveis pela medida do dinheiro.

“Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo; esse tempo pertence a meus afetos, é para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis: isso é o tempo. E justamente a luta pela instrução do trabalhador é a luta pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’”.

Que existam muitos espaços de conversa sobre a vida, com continuidade, com construção de intimidade capaz de, no espaço do tempo e no tempo do espaço, fazer surgir as mais variadas histórias e emoções, numa relação cuja finalidade não é a cura, mas a desalienação sobre si e o mundo, em companhia.

Daniel Guimarães, em companhia de muitos e muitas, entre 19/5/2017 e 26/6/2017


Notas:

[1] Trechos deste discurso em: https://www.facebook.com/notes/cl%C3%ADnica-p%C3%BAblica-de-psican%C3%A1lise/a-psican%C3%A1lise-deve-ser-um-direito-de-todos-e-todas/1304669039611693/

[2] http://facebook.com/clinicapublicadepsicanalise

[3] Para materializar o imaterializável em um exemplo recente: as imagens veiculadas pela mídia das ações policiais a pedido do prefeito João Dória na Cracolândia. Quanto aquelas pessoas, transformadas em zumbis e agora em produto televisivo, terão gerado em audiência, em números depois transformados em negociação de valores de publicidade durante os mesmos programas que veicularam aquelas imagens?

[4]  “Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo”: http://www.ihu.unisinos.br/39543-atualmente-vigora-um-capitalismo-social-e-do-desejo-entrevista-com-maurizio-lazzarato  

Parte 1

Parte 2

Parte 3

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