Correio da Cidadania

Mais uma saudosa maloca que ruiu

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Fui algumas vezes ao prédio que desabou na madrugada de 1º de maio no centro de São Paulo. Isso foi na época do meu primeiro emprego como office-boy, quando ali funcionava a sede da Polícia Federal.

Depois, a PF se mudou para a Lapa, em instalações mais modernas e o prédio ficou ali, fantasmagórico e horroroso, como tantos outros na região central da cidade.

Os movimentos por moradia ainda fizeram um uso social daquele edifício que certamente ficaria desabitado por décadas, talvez para sempre.

É muito duro não ter um lugar no mundo para viver dignamente com sua família, vendo tantos arranha-céus carrancudos, tristes, inadequados, simplesmente deixados pra trás. A cara de São Paulo.

Não deixa de ser simbólico. A casa que foi usada e consumida pela Polícia Federal, até que ela vestisse uma nova roupa, justamente para representar o "novo", se degenerando a céu aberto e a olhos vistos, até desabar os seus dejetos na calada da noite no centro da cidade.

A queda do edifício Wilton Paes é a cara da degeneração da cidade de São Paulo e símbolo da canibalização da especulação imobiliária.

O centro da cidade foi deixado pra trás, mesmo com sua bela infraestrutura urbana, e a especulação foi atrás de novos espaços de higienização, onde tudo parece novo, moderno, branco, bem vestido, espelhado. Na verdade, esse "novo" é o que há de mais velho no nosso capitalismo predatório que precariza a exploração, esgota recursos, infertiliza os solos, mata a terra.

Depois, parte para outra, deixando o que está "velho" para trás e sai em busca de um outro "novo", sempre construindo camarotes VIPs na cidade, espaços de exclusividade, onde São Paulo aparenta ser só de pessoas incluídas, com empresas que têm suas atividades econômicas voltadas para o "futuro", que por algum acaso sempre vai ao encontro do passado.

E deixamos para trás nossos prédios e nossos zumbis, caminhando errantes pelas ruas, sem saber direito para onde ir. Tentando arrumar um bico, um troco, uma boia, uma pedra. Até serem completamente tragados e triturados pelo sistema. Até ficarem andando no meio do asfalto por entre os carros, talvez para serem notados, talvez para que tenham a certeza de que ainda estão vivos, talvez para roubar à força algum nível de atenção.

E assim é. Ficam de pé, tentando existir até o momento que pegam fogo e desmoronam de uma vez por todas. Para sempre.

O Centro se tornou o lugar de quem ficou para trás. Pessoas, prédios, empresas que vendem sei lá o quê.

Quem tem salvado o centro são as pessoas que insistem em existir por entre os escombros. São os skatistas que fazem seus malabarismos e tiram suas fotos em cenários apocalípticos. São os "alternativos", nome que o cidadão médio paulistano deu para quem justamente se recusa a incorporar os códigos do cidadão médio – ou medíocre. São aqueles que conseguem enxergar a beleza nesse monumental que ficou para trás. Que aprendeu a ser feliz por entre o concreto. No que ficou para trás. No que já foi um dia.

É como viver num cenário de filme de ficção que se passa após uma guerra nuclear. Quem salva o centro são os gays que deixam os subúrbios, com seus estigmas e preconceitos e constroem uma nova vida onde ninguém liga muito pra quem você é ou o que você faz.

São também artistas. É gente que gosta de cultura. Quem gosta de andar a pé. São espíritos rebeldes que ocuparam o espaço público deixado pra trás, mas que, tal qual fazem com "os sem-teto", a ocupação se torna um problema. É como se a cidade viesse a dizer: "não é nosso, e não será de mais ninguém".

O centro está lá, fantasmagórico. Terra de zumbis. Até que as pessoas abracem e tomem para si, ocupando com seus sambas, skates, encontros, máquinas fotográficas, suas músicas, flores, protestos, intervenções artísticas e, pronto! Vem logo a patrulha de choque para atirar bombas e gás de pimenta, para deixar tudo como sempre esteve. Sob controle. Sem ameaças. Apenas com as almas atormentadas e já inofensivas.

O que será, que será? Que andam combinando no breu das tocas?

O desabamento do edifício, infelizmente, não é nada de novo nessa cidade.
Mais uma saudosa maloca que ruiu. Mais um despejo na favela. Mais um barracão que se foi com a sua cama.

A única diferença é que de Adoniram para Mano Brown muita coisa mudou.
A doçura se foi.

Se o protesto presente nas canções do Adoniram escolhia a irreverência e as verdades eram ditas de maneira poética, disfarçadas de conformismos e da esperança de que "Deus dê o frio conforme o cobertor", na obra do Mano Brown "Deus é uma nota de cem" e não há mais tempo nem espaço para as sentenças colaterais. Talvez estejamos caminhando para o confronto que o Brasil sempre tardou e empurrou com a barriga.

Não há mais doçura. Tudo está incendiando e prestes a desabar! Vivemos sobre um paiol.

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Rafael Castilho é sociólogo e professor da Escola de Sociologia e Política.

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