O que está por trás da difamação e da criminalização das ocupações?
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- Luciana Bedeschi
- 18/07/2018
Ocupação Prestes Maia, em São Paulo, considerada a maior ocupação vertical do Brasil (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Luciana Bedeschi*
A “tragédia anunciada” do desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no dia 1º de maio de 2018, trouxe à tona a ausência de políticas de habitação social nas cidades capazes de enfrentar as reais necessidades da população. As condições de moradia no prédio que desabou, mostradas em todas as mídias, denunciou toda sorte de ocupações irregulares e em toda sorte de lugar inadequado como em áreas de risco, terrenos, favelas e, sobretudo, em prédios abandonados.
Não foram poucos os setores públicos e privados que se aproveitaram para promover ações atravessadas de difamação, tentativas de interdição de ocupações consolidadas e aberturas de investigações sobre supostos crimes cometidos por lideranças sem teto. No mesmo sentido, e historicamente, interpretações da lei, movidas por distinções de classe, têm garantido que mais pobres estejam excluídos do acesso a terra — tanto na cidade como no campo. É preciso desconstruir alguns argumentos hegemônicos já naturalizados, para rediscutir o direito à moradia e à propriedade.
Quando falamos em “tragédia anunciada”, percebemos que a expressão está conectada com a conflituosa e excludente história do acesso a terra no Brasil. Historicamente, famílias ocupam a terra sem uso na luta por seu direito à moradia, e isso as deixa vulneráveis seja no ambiente rural, seja no urbano. Não tivemos uma reforma agrária. A luta pela terra está centrada na luta coletiva pelo acesso à pequena propriedade rural. Se existe pequena propriedade rural nos dias de hoje, é porque houve ocupação e resistência, e a posse, não a compra e venda, em alguns momentos, é que rompe cercas que parecem intransponíveis.
A histórica luta pela terra importa na atual leitura da luta urbana porque ilumina padrões que se repetem. Os mesmos métodos de interpretar a lei, invisibilizar e criminalizar quem luta pela posse foram atualizados neste século, assim como atualizados os sistemas de acumulação e de proteção das grandes propriedades. E, se há modernidade na espoliação, há também a manutenção dos velhos fios condutores da luta, baseados nas distinções de classe.
Essa distinção de classe fica clara quando se olha para os mecanismos de exclusão sócioterritorial. Hoje, assume-se — quase naturalmente — que o trabalhador de baixa renda não pode morar em áreas centrais porque o preço da terra é caro. Esse discurso hegemônico é difícil de ser quebrado e nos parece conectado ao argumento que fundamenta a Lei de Terras de 1850, quando ao pobre, ao migrante e ao cativo se vetou a compra da terra para o cultivo independente e se vetou ao máximo o acesso a terra em caráter permanente.
Lógico que muito mudou de 1850 aos nossos dias, mas alguns argumentos ainda se repetem e, se o discurso hegemônico no campo é de que resta aos camponeses trabalhar para grandes monoculturas, no urbano, resta à classe trabalhadora assumir um financiamento a perder de vista de um lote ou um apartamento periférico ou pagar aluguel onde suas condições permitirem.
Fato é que a grande propriedade urbana ainda está concentrada em poucas mãos. Os exemplos concretos estão à vista quando os dados do IPTU da cidade de São Paulo são abertos e constatamos, segundo apontado em artigo na revista Carta Capital, que um só proprietário concentra sozinho 93 mil metros quadrados no centro. Esses latifundiários urbanos, além de dificilmente garantirem a função social dessas propriedades, contam com todas as defesas e recursos judiciais e administrativos possíveis, para evitar ocupações, como interditos proibitórios assegurados por forças de segurança pública, como Polícia Militar. Assim, são vários os modernizados mecanismos para que a aplicação da lei descarte a interpretação mais social que se pode fazer dela.
Não temos uma reforma urbana. Dentre as tantas questões que explicam a não realização dessas reformas, uma delas se observa na perspectiva jurisdicional, não como um problema da legislação, mas em como nossos estatutos da terra e da cidade foram e estão sendo interpretados e positivados pelos tribunais, ao longo do tempo.
A legislação, contudo, e em alguns momentos históricos, força e derruba cercas. Se, no campo os ocupantes históricos conquistaram a posse nas brechas da lei, hoje é notável que os sem tetos urbanos organizados nas ocupações de prédios no centro se destacam e se fortalecem em sua luta, quando abrem suas ocupações para as visitas técnicas da prefeitura de São Paulo, a pedido do Ministério Público de São Paulo, buscando a regularização dos serviços essenciais de energia água e esgoto, o inatingível AVBC (auto de vistoria do corpo de bombeiros), a desapropriação e a regularização edilícia, urbanística e fundiária.
E nas visitas às ocupações, um elemento importante não passa despercebido aos mais sensíveis e atentos: há dignidade na luta pela moradia. Ser sem teto não é ser invasor. Ao contrário: toda a mídia, assessoria técnica e agentes públicos que acompanharam as pessoas moradoras de ocupações percebeu que, antes de serem espoliados e excluídos, eles são trabalhadores e, muitos, são jovens.
Não são poucas as ocupações organizadas, consolidadas, mobilizadas e resistindo há mais de cinco anos, tempo suficiente, como dispõe o Código Civil, para consolidar sua posse e promover-lhes a regularização, com instrumentos legais e prontos a serem aplicados. Instrumentos legais para consolidação do direito à moradia, da segurança da posse e da transferência da propriedade existem.
Publicada recentemente, a Lei federal 13.465/2017 reconhece conflitos fundiários urbanos, colocando-os no centro do que denomina regularização fundiária urbana – REURB-S. Sua melhor interpretação será assegurar o direito à moradia e a posse da comunidade que se instalou e consolidou no tempo.
Após a tragédia do 1º de maio, e para evitar reintegrações de posse, algumas cercas também poderiam cair no centro do Poder Judiciário. Uma delas se firma no refratário argumento de que o Poder Judiciário não analisa o princípio da função social da propriedade. Em algumas decisões recentes em ações possessórias, pareceram despertar entendimentos mais seguros de que a mera apresentação de título de propriedade, de boletins de ocorrência e de troca de e-mails sobre suposta locação de prédio vazio não são expressões do exercício de posse. Posse é o exercício efetivo da função social da propriedade, essa sim uma modernidade, que esperamos ver chegar com mais força, seja na aplicação da lei pelo Poder Executivo, seja nas decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Luciana Bedeschi é advogada e mestre em direito público pela PUC-SP. Doutoranda em Planejamento e Gestão do Território e integrante do Laboratório de Justiça Territorial – LabJuta, na UFABC.
Retirado do site do Observa SP.