ElesNão
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- Rafael Castilho
- 02/10/2018
Não adianta procurar na luz, ElesNão estarão por lá. Estarão na escuridão. Nos apartamentos frios, nos escritórios massacrantes, na escuridão das ideias. No obscurantismo.
Não adianta falar de amor. ElesNão conseguem acalantar seus corações. Não conseguem cicatrizar suas decepções e seguir adiante. Não conseguem perdoar a vida por ela ser aquilo que ElesNão queriam. ElesNão sabem explicar muito bem o porquê, mas o mundo os traiu. ElesNão se sentem realmente reconhecidos por seu valor. ElesNão sentem que o sistema vem a premiar quem realmente merece, ou seja, eles sim.
Por isso consideram que o mundo está do avesso, que os valores já não são respeitados. Como assim? ElesNão fazem outra coisa senão engolir sapos, viver do jeito que não se quer viver, em nome de um bem maior. ElesNão fazem outra coisa senão se dedicar devotamente a todas às crenças do sistema. Mas, cadê o prêmio? O prêmio foi para as mãos dos vagabundos, dos sindicalistas, dos políticos, dos funcionários públicos, das repartições, dos cotistas, de quem não estudou, dos universitários vagabundos que só estudam, dos petistas, dos bichos grilos, das mulheres, de toda essa gente que não trabalha. ElesNão aceitam isso.
Não adianta procurar na paz. ElesNão estão lá na paz. Não adianta procurar nos parques, deitados da grama e sentindo o sol bater no rosto. ElesNão estão por lá. Estão com seus filhos gritando no banco de trás, querendo mais alguma coisa, fazendo escândalo, tão insatisfeitos quanto eles. Esse sentimento vem de pai pra filho. Então vão todos ao shopping. Não tem vaga de estacionamento. As crianças gritam mais e mais. Vão olhar vitrines que não podem mais ser compradas. No final vão todos embora de novo. Ora decepcionados, ora mais endividados.
ElesNão assumem nem para si mesmos. Mas olham para o passado e ele sempre parece melhor do que o dia de hoje. Até mesmo os sonhos que tinham para o futuro eram melhores. Mas olha só o presente. Tão distante daqueles sonhos. Onde foi parar aquela criança? Aquele jovem tão otimista? Ora, o presente é pior do que o passado porque esse mundo está de pernas para o ar, não é mesmo? Por isso valorizam tanto as tradições. As mulheres não servem mais. Os maridos não são mais provedores. Os filhos não imitam mais os pais. As pessoas não valorizam as mesmas coisas que eu. Aliás, não dão importância para tudo aquilo que eu me dediquei por toda uma vida. Temos que lutar para valorizar tudo aquilo que consideramos mais importante, porque no fundo estamos tentando provar pra nós mesmos que nossa vida vale a pena.
Qualquer vagabundo ou vagabunda parece ser mais interessante sexualmente. As pessoas vivem transando e gozando por aí e ElesNão participam de nada disso. Fazendo coisas com seus corpos que desafiam os propósitos da natureza. Seria isso tudo permitido? ElesNão foram incluídos. Não foram sequer consultados. Quem estava no topo da pirâmide da cadeia alimentar sexual não está mais. Tudo virou uma confusão muito grande.
Então precisam construir um deus severo, raivoso, vingativo e punitivo. Igual a eles.
Ao invés de Deus que fez o homem a sua imagem e semelhança, eles inventaram um deus a sua imagem e semelhança. Já pensou se Deus fosse realmente assim, a cara do Bolsonaro?
A modernidade não respeita tradições nem soberanias. Cria consensos com conjuntos de informações que contrariam aquelas passadas pelas famílias e religiões. Existe uma dissociação entre o discurso hegemônico dos dias atuais e as tradições que foram quebradas de uma hora para outra.
As manifestações de preconceito e violência contra o outro são instrumentos de resistência contra a modernidade que, sem lugar do discurso predominante, corre nas trincheiras das redes de internet onde tudo se pode dizer, além da própria casa, obviamente. Por isso o que se passou a chamar de politicamente incorreto virou uma bandeira. É a predominância do discurso privado sobre o discurso público, com todas as suas mediações e regulações.
Sempre haverá quem irá buscar algo nas entranhas do que há de pior em todos nós. A exacerbação dos sentimentos de frustração, decepção e ressentimento. Sempre haverá alguém disposto a invocar o resgate de certas tradições.
Por isso, o grande combustível do neofascismo é a infelicidade. Uma fonte de energia negativa muito farta e renovável.
Existe uma epidemia de infelicidade. Muitos olhos tristes, com lágrimas torturadas, amarradas e detidas para não escaparem. Muitas bocas exalando o fel da amargura e da melancolia, dizendo coisas horrorosas e babando ódio.
Há um exército querendo voltar ao poder. Um exército de corações tristes, infelizes e decepcionados. Iludidos, pois acreditam que o poder político poderá restaurar as velhas hierarquias. Recuperar o prestígio que ElesNão têm mais. O consumismo exige demais. A modernidade exige demais.
Tem muita gente contaminada pela epidemia de infelicidade. ElesNão pensam em outra coisa, senão em esganar, torturar, machucar e destruir todos os responsáveis por essa infelicidade, sejam eles da esfera pública ou do relacionamento privado. ElesNão vão desaparecer. Continuarão por aí. Buzinando alto. Falando alto nas filas. Com raiva de tudo.
Estarão nos velhos que ficam nas portas dos bancos, esperando a agência abrir duas horas antes do tempo, com suas calças de tergal que cozinham suas partes baixas num calor de trinta e cinco graus. Estarão nas festas de criança, todos sentados com cara de cu, comendo mais um bolinho de queijo. Irão começar falando de automóveis, depois falarão mal da vida dos outros e finalmente colocarão a culpa de tudo nos comunistas.
Estarão no balcão de frutas do supermercado, olhando para dentro do pé de alface, comendo um gomo de mexerica, esperando na fila dos frios, guardando lugar na fila do caixa, brigando entre si. Estarão tomando sopa na padaria da moda. Estarão segurando a senha de papel, esperando de pé na fila da loja de celular para verificar se já tem bônus suficiente para trocar de aparelho. Estarão nas barbearias que eram populares, depois viraram bregas, depois viraram trash e agora são cult, retrô, talvez vintage. Tomarão uma cerveja artesanal antes de aparar o cangote. Estarão no centro espírita, lendo o Chico Xavier e no minuto seguinte defendendo a pena de morte.
Pode isso? Estarão ouvindo música ruim onde só vai gente branca. Estarão em algum lugar falando mal dos nordestinos, depois planejando as próximas férias no nordeste. Estarão dirigindo seus táxis ou seus ubers esperando o próximo passageiro para dar uma palestra repleta de superficialidades. Estarão vestindo roupas bonitas ou feias, não importa, você verá que estarão absolutamente deserotizados, pois têm um deserto por dentro.
Rafael Castilho é sociólogo e professor da Fundação Escola de Sociologia Política de SP.
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13 anos de ladroagem, ladrões, sem punição!
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