Correio da Cidadania

Morte na Economia do Algoritimo

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Imagem: Michel Guyot

A rede de proteção trabalhista em jogo e a uberização do trabalho, a “economia de bicos” em que os trabalhadores perdem seu reconhecimento formal e são vistos como empreendedores independentes, se provaram fatais para Pablo, quando foi morto durante um serviço de entrega. A empresa terceirizou sua responsabilidade e até o luto pela tragédia.

Faz quase dois meses que Pablo Avendano, de 34 anos, foi atingido e morto em sua bicicleta, na Filadélfia, enquanto trabalhava para uma start-up da cidade de São Francisco – a Caviar. Poucos dias após sua morte, próximo a cena onde tudo aconteceu, surgiu um cartaz com um texto simples : “A Economia de Bicos Matou Pablo”.

A frase não era somente uma hipérbole e as questões levantadas por sua morte – e pela Economia de Bicos [Gig Economy] como um todo – permanecem sem respostas. Pablo – a quem vou chamar pelo primeiro nome – era um companheiro próximo e um amigo com quem estive organizado por anos. Até sua morte, era também meu colega de quarto. Em nossas conversas diárias havia um lampejo da realidade atual, da “economia de bicos”, em que a intensificação da exploração é mascarada como uma liberdade de escolha.

Isso não é novidade. Desde o início, o capitalismo está baseado em uma falsa escolha: diferentemente do feudalismo, os trabalhadores são formalmente livres para vender sua força de trabalho no livre mercado. Não é difícil encontrar onde está a mentira: se você não escolher este caminho, morrerá de fome. A escolha é uma farsa, pois os trabalhadores têm pouco controle sobre as condições de seu trabalho, e quais opções estão colocadas na mesa. Por isso, o movimento de trabalhadores lutou historicamente para transformar estas condições, conquistando importantes concessões no que se refere a salários, saúde e outros benefícios, compensações por acidente e direitos sindicais.

No desfecho da crise financeira de 2008, entretanto, flexibilidade e opção de escolha tornaram-se palavras chave para uma doutrina do choque, que se aproveitou da crise para desviar totalmente ou mesmo atropelar a rede de proteção trabalhista, por meio de um grande truque de mágica. Após um flash e uma nuvem de fumaça, os trabalhadores não eram mais trabalhadores, mas sim empreendedores independentes. Essa brecha legal significa que eles perdiam o enquadramento legal para ter direito a benefícios ou proteção, e que estavam apenas optando por mergulhar na “economia compartilhada”, na qual tudo é dividido — risco, custos sociais, despesas médicas — menos os lucros, é claro. Nascia a “economia de bicos”.

A farsa da escolha é difundida por meio desta economia de bicos e foi levada a outros níveis, epitomizada por manchetes absurdas como “Os jovens abraçam a economia de bicos”. Nos destroços da economia pós-2008, a “geração do Milênio e outras – inclusive devido a débitos estudantis que minimizavam suas perspectivas de emprego — foram obrigadas a lutar por qualquer posto de trabalho que encontrassem e não podiam ser exigentes”.

Agora nós supostamente “escolhemos” se vendemos ou não nossa força de trabalho, mas também “escolhemos” quando fazê-lo, quais bicos aceitar e quais recusar, se vamos trabalhar de casa ou não. Mas ainda não podemos escolher as condições sob as quais estas escolhas são feitas. Em vez disso, tais condições são naturalizadas. É como são as coisas: sua casa é um hotel, seu carro é um táxi e sua bicicleta não é mais apenas para recreação.

Fundada em 2012, a Caviar, como outras empresas de entrega de comida que invadiram as cidades, é emblemática no modelo de economia de bicos – que distribui os custos sociais e riscos com uma comunidade mais ampla. Como destacado em um artigo sobre a morte de Pablo: “os trabalhadores da Caviar que se acidentam no trabalho frequentemente voltam a morar com seus pais ou irmãos, quando não podem trabalhar com as entregas. A maioria dos trabalhadores da Caviar depende da boa vontade de amigos, mecânicos e lojas de bicicleta compreensivas para se manter realizando entregas (e portanto, comendo) enquanto suas bicicletas se desgastam devido ao uso constante. Todo estes esforço mantém seus trabalhadores, de cuja responsabilidade o modelo de negócio da Caviar”.

É verdade, trabalhar de entregador com bicicleta já significava aguentar condições perigosas, e até abusivas, bem antes da ascensão da economia de bicos. Durante décadas, o setor aproveitou-se de força de trabalho “vulnerável”, frequentemente composta por aqueles com “complicação no status de imigrante, disposição de trabalhar apenas por gorjetas e medo de denunciar abusos”, como o New York Times mostrou em 2012. Mas com a ascensão de economia de bicos, descrita mais adequadamente como economia “sob demanda”, tais abusos espalharam-se e se aceleraram. A Caviar e outras companhias lucraram com a vulnerabilidade destes empreendedores independentes, de modo muito parecido ao usado há tempos pelos restaurantes, para lucrar com vulnerabilidade de comunidades sem proteção e sem documentação.

Por mais de dois anos como entregador na Caviar, Pablo deparou-se diariamente com essa realidade – a da vulnerabilidade e da falsa escolha. Ele tinha que acordar e decidir se arriscaria sua vida ou um membro de seu corpo por um trabalho mal remunerado e sem benefícios – ganhando algo como cem dólares num bom turno, mas apenas uns trinta em um ruim. A alternativa é não conseguir pagar o aluguel.

As condições na Caviar não foram sempre tão desafiadoras, disseram os entregadores. Um entregador anônimo familiarizado com a logística da empresa em diversas cidades explicou de que maneira ela começou a operar em um modelo baseado em algoritmos, que deve combinar instantaneamente o estoque de entregadores com a demanda para entregas. Como uma jovem start-up, estabeleceu uma taxa fixa de U$9,99 para todas suas entregas, mas em meados de 2014 foi adquirida pela empresa Square.

Assim como a Uber, a Lyft, e outras companhias baseadas em algoritmos, a Caviar aproveita-se de uma “imensa vantagem de dados” sobre os consumidores e os trabalhadores, com o algoritmo funcionando como uma espécie de proprietário caixa preta, oferecendo pagamentos que os entregadores podem apenas aceitar ou rejeitar, mas não questionar. (A falta de transparência recentemente enroscou a companhia no emaranhado de uma ação judicial coletiva, em que os consumidores acusaram a Caviar de coletar gorjetas e não repassar aos entregadores. A empresa fechou um acordo de US$ 2,2 milhões, mas negou as alegações.)

O resultado tem sido uma espécie de nivelamento por baixo em que entregadores – incluindo Pablo – me disseram ter que trabalhar mais horas e acelerar a corrida para fazer mais entregas: em outras palavras, eles tinham que assumir mais riscos. Alguns argumentaram que a Caviar incentiva trabalho perigoso em condições severas. Quando o tempo estava ruim, como no dia em que Pablo foi morto, entregadores costumavam receber mensagens enérgicas adornadas com emojis (“quando chove, a Caviar ENCHE de pedidos! Fique online imediatamente para lucrar!” estava registrado na mensagem recebida por outro entregador, no dia anterior à morte de Pablo). Para entregadores que já lutam assim para ganhar a vida, só fazia sentido trabalhar quando o tempo estava ruim, fazendo que um trabalho já perigoso se tornasse então traiçoeiro.

Quando procurada para comentar, a Caviar discordou destas alegações. Em e-mail ao The Nation, um porta-voz escreveu que “Entregadores escolhem trabalhar com a Caviar porque ela os oferece flexibilidade e a escolha de onde, como e quando ganhar dinheiro. A Caviar paga de forma competitiva os entregadores porque eles têm muitas opções para escolher”.

Sustentou ainda que a remuneração média dos entregadores pela Caviar é mais de US$ 20 “por hora engajada”. O porta-voz não respondeu diretamente ao sugestionamento de que a Caviar incentiva o trabalho em condições perigosas. Ele insistiu que “Durante horários de pico — como jantar, domingos à noite ou eventos como as finais dos grandes campeonatos esportivos – a Caviar oferece aos entregadores a oportunidade de ganhar mais dinheiro, porque sabemos que seus serviços estão em alta demanda e há muitas plataformas para escolher”.

À medida em foi ficando cada vez mais difícil ganhar a vida com a Caviar, Pablo percebeu que precisava encontrar uma alternativa. No ano passado, ele vinha buscando uma certificação como intérprete de língua espanhola. Mas enquanto isso, ele tinha que trabalhar mais e mais longas horas.

Frequentemente dividia turnos que totalizavam mais de seis horas — assumindo um risco maior no processo e voltando para casa para estudar para seu exame de intérprete, apenas para perceber que estava exausto demais para conseguir fazer isso. Na economia de bicos, a troca entre trabalhar em mais bicos e encontrar um meio de escapar é demais para muitos conseguirem. Mas falhar ao tentar fazê-lo provou-se fatal para Pablo.

Nessa equação, o consumidor não é nenhum anjo. Como o nome sugere, a Caviar foi arquitetada para atender uma clientela de alto padrão, ao oferecer entrega de comida de restaurantes caros. Mas logo passou a abranger a grande demanda por conveniência. Eu lembro vividamente do espanto de Pablo quando alguém pediu para levar apenas um pouco de sorvete para o outro lado da cidade. Estavam dispostos a pagar quase 10 dólares de taxa de entrega, por 6 dólares de sorvete. E quando o tempo está ruim, os consumidores mais ricos estão mais do que dispostos a pagar pela conveniência pessoal, mesmo que isso signifique colocar outros em risco.

Há uma alternativa. No ano passado, Pablo também trabalhou em período parcial para a Sparrow Cycling Couriers, um coletivo gerido por trabalhadores que, como a Caviar, foi fundado em 2012. Mas, de modo diferente, os entregadores da Sparrow ficam com 60% dos rendimentos, e 40% é usado para pagar aluguéis e outras despesas do coletivo. Se a Sparrow fosse para gerar lucro – ainda não é – este lucro seria também distribuído. Todas as decisões são tomadas coletivamente e por consenso. O fundador da Sparrow, Randon Martin, me disse que seu objetivo era “criar um modelo de negócio alternativo, coletivista”, capaz de oferecer “um modelo positivo para negócios não hierárquicos e autogestionado pelos trabalhadores”.

Estes dois modelos não são complementares: quando a Caviar veio para Filadélfia, no fim de 2014, ela pressionou a Sparrow (e outros serviços de entrega de comida que operavam na cidade) ao oferecer temporariamente entregas grátis. Não é difícil imaginar como a start-up, sentada em mais de US$13 milhões de capital de lançamento — sem mencionar a venda, estimada em US$ 90 milhões, para a Square – pôde temporariamente operar com prejuízos e efetivamente acabar com competidores menores, especialmente aqueles que aspiram pagar um salário mínimo ou mais.

Martin relata como um restaurante local – o HipCityVeg, supostamente progressista – cortou os serviços com a Sparrow sem aviso prévio, em 2014.
Depois de mais de dois anos com a Sparrow, a HipCityVeg – que diz trabalhar em “compaixão por todas as coisas vivas” – “simplesmente cortou conosco”, lembra Martin.

Naquele mesmo dia, a Caviar lançou seu serviço na cidade, com a HipCityVeg entre sua primeira lista de clientes. Atualmente, a companhia — que opera em mais de uma dezena de cidades – oferece entregas de centenas de restaurantes na Filadélfia, do quais mais de 40 são exclusivos da Caviar. (O HipCityVeg não foi encontrado para comentar.)

Enquanto a Caviar não paga por hora, e tecnicamente emprega um exército de empreendedores independentes, a empresa insiste que seus entregadores apenas trabalham para ela somente quando estão no processo de uma entrega. De acordo com Martin, muitos da equipe original da Sparrow tentaram evitar trabalhar para uma empresa que eles não só viam como competidora, mas também como um adversário corporativo. Entretanto, muitos dos novos entregadores, como Pablo – que estava entregando para a Caviar antes da Sparrow – novamente foram confrontados com uma falsa escolha, agora entre seus princípios e conseguir pagar o aluguel.

Por enquanto, a família, companheiros e amigos de Pablo lançaram uma série de demandas: que a Caviar reembolse à família de Pablo todas as despesas com passagens e custos do funeral; que “reclassifique seus entregadores como empregados, e não como empreendedores independentes”; que pague um salário de 20 dólares por hora mais benefícios, adicional de periculosidade e reembolso pela reparação e manutenção das bicicletas; e mais importante, que a Caviar não obstrua o processo de sindicalização de seus entregadores, como o próprio Pablo tinha esperança de fazer no futuro. Mais do que qualquer coisa, Pablo queria ajudar a construir um mundo onde as pessoas não tenham que fazer tantas escolhas falsas e perigosas para conseguir sobreviver.

Uma hora após o lançamento destas demandas, a Caviar mandou uma mensagem para seus entregadores, lamentando a morte de Pablo e registrando que seus colegas na Sparrow “abriram as portas para amigos ou qualquer um em busca de conforto”.

De acordo com o coletivo Sparrow, a Caviar não tinha se pronunciado até então. (A Caviar disse ao The Nation que a companhia “escolheu não publicizar nenhum de nossos esforços de apoio à família e amigos de Pablo.”). Como riscos e responsabilidade, a Caviar parece querer terceirizar até o trabalho emocional do luto aos seus empreendedores independentes e à sociedade como um todo.

Por George Ciccariello-Maher | Tradução: Marianna Braghini.
Publicado originalmente em Outras Palavras.

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