Correio da Cidadania

Dilma Ferreira: mulher, negra, lutadora

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Alagada da usina de Tucuruí  Dilma Ferreira da Silva tinha 45 anos e deixou uma filha adulta (Foto: MAB)

“Ela era uma grande referência do MAB na região”, disse Cleidiane Vieira, que faz parte da coordenação regional do Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB) sobre o assassinato da também coordenadora do movimento, Dilma Ferreira da Silva, 45 anos, que foi encontrada degolada, provavelmente por arma branca (faca ou terçado), entre às 21 horas de quinta-feira (21) e zero hora em sua casa no assentamento Salvador Allende, zona rural de Baião, no Pará. A polícia chegou ao local do crime por volta do meio dia desta sexta-feira (22).

Coordenador do MAB em Tucuruí, Roquevam Alves Silva disse à agência Amazônia Real que não existia conflito agrário no assentamento Salvador Allende, onde Dilma foi assassinada, junto com o marido dela, Claudionor Costa da Silva, 42 anos, e Hilton Lopes, 38 anos, um assentado. Os dois homens foram mortos provavelmente por arma branca e arma de fogo.

“O assentamento está regularizado há muito tempo. Só se for de posseiro para posseiro [o suposto motivo para o crime]. Aqui não vamos jogar a culpa ou procurar culpado que não seja o de fato. Da forma como ela foi assassinada, ela foi degolada. Há suspeitas de que ela foi estuprada e torturada, por isso tem que investigar muito para chegar aos criminosos. Não entendemos o motivo de tanta brutalidade”, revelou o coordenador.
Ele disse que os criminosos não usaram arma de fogo, como foi divulgado por sites de notícias de Tucuruí, cidade localizada a 60 quilômetros do assentamento Salvador Allende, no sudeste do Pará. Mas outras fontes consultadas pela reportagem dizem que há arma de fogo na cena do crime.

Segundo a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), o crime é tratado pela polícia como “execução”, mas ainda não há uma linha de investigação para o motivo e nem pistas dos autores. A secretaria não informou que tipo de armas os criminosos usaram.
A secretaria é chefiada pelo ex-superintendente da Polícia Federal no Pará, delegado Ualame Machado. Ele atuou nas investigações da chacina de Pau D’Arco em que dez trabalhadores rurais foram assassinados por policiais, em 2017, e na morte da missionária Dorothy Stang, em Anapu, em 2005.

“A casa, onde também funcionava um mercadinho, estava toda revirada”, disse a Segup em nota, explicando que as investigações estão centralizadas na Superintendência de Tucuruí, com auxílio ao Núcleo de Apoio à Investigação.

Nem o secretário Ualame Machado e nem o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), fizeram declarações sobre as investigações da morte de Dilma Ferreira.

Para a CPT, Dilma é a primeira ativista pelo direito à terra a ser assassinada na Amazônia, em 2019. Nas redes sociais, a morte da coordenadora do MAB também chocou organizações de mulheres envolvidas no combate à violência e nas manifestações pelo Dia Internacional da Mulher, comemorado este mês.

Roquevam Alves Silva disse que Dilma era coordenadora regional do MAB desde 2005. “A Dilma era uma pessoa muito importante para o MAB, era uma representação muito importante da região. É [a morte dela] uma perda irreparável. Apesar da história de que todo mundo é substituível, jamais será a mesma coisa que a companheira fez para o movimento”, disse ele, que afirmou que os assassinatos aconteceram por volta das 21h (do dia 21 de março), mas os familiares e amigos só souberam na manhã desta sexta-feira (22). Dilma não tinha filhos com o marido, mas deixou uma filha adulta do primeiro casamento.

Os corpos das três vítimas já passaram por necropsia no Instituto Médico de Legal de Tucuruí. Os restos mortais da liderança Dilma Ferreira Silva serão transladados para o sepultamento neste sábado (23) no estado do Maranhão, onde moram os familiares dela. Não há informações sobre os enterros de Claudionor Silva e Hilton Lopes.

O assentamento Salvador Allende, onde vivia Dilma Ferreira da Silva, fica no quilômetro 50 da rodovia BR-422, a Transcametá, que corta o município de Baião, no nordeste do Pará.

Maranhense, Dilma e sua família foram atingidas pela construção da usina hidrelétrica de Tucuruí – obra considerada a maior no país, inaugurada em 1984, durante a ditadura militar. A obra desalojou mais de 6 mil famílias.

“Dilma viu sua cidade ser alagada pela abertura das comportas. [Ela] vivenciou o descaso total no processo de reparação, passaram 30 anos desde o começo da obra sem nenhuma reparação”, informou o MAB.

Encontro com Dilma Rousseff

Ao ser comunicada a morte da coordenadora regional em Tucuruí do MAB, na manhã de sexta-feira (22), circulou nas redes sociais a foto dela ao lado da ex-presidente Dilma Rousseff (em agosto de 2016). As duas Dilmas se conheceram em 2011, durante o Encontro Nacional de Mulheres do MAB, em Brasília (DF).

“Entendemos que a eleição da primeira mulher Presidente da República de nosso país coloca-nos, a todas, num novo patamar de luta por nossos direitos e traz para todas as mulheres atingidas por barragens a esperança”, dizia a carta entregue por Dilma à presidente Dilma.

“Que a partir de Vossa sensibilidade de mulher, compreenda bem e nossa situação e possamos avançar na construção de um país mais justo, fraterno e igualitário”, continuava a carta.

No documento encaminhado à presidência, o MAB solicitava “medidas estruturantes, de um processo participativo, de caráter popular, na definição da política energética nacional”, além da regulamentação de decreto assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o cadastro de atingidos. Pedia ainda “a elaboração de uma nova política nacional de tratamento das questões sociais e ambientais nas grandes obras deste país, além de uma série de medidas de caráter emergencial para pagar a histórica dívida que o Estado Brasileiro tem com os atingidos por barragens”.

“Dilma entregou nas mãos da presidente documento que pedia a criação de uma política nacional de direitos para atingidos por barragens”, conta Cleidiane Vieira.

“Essa é uma bandeira histórica do MAB. Hoje, a população atingida fica à mercê das empresas. Não há uma política de Estado – nem a nível nacional nem a estadual.”

A política nacional pleiteada por Dilma Ferreira nunca foi implementada, apesar de ela lutar nas mobilizações pela implantação de uma política de direitos para atingidos por barragens.

Conflito agrário
 o Seminário Mulheres da Amazônia reuniu 25 atingidas por barragens de seis regiões em Itaituba (PA) nos dias 2 a 4 de outubro de 2015 (Foto: MAB)

Há um histórico de conflitos agrários na região, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O assentamento Salvador Allende, diz a comissão em seu site, é fruto da ocupação da antiga fazenda Piratininga.

“O local foi ocupado há 12 anos por mais de 400 famílias sem-terra”, informou a CPT. “Desde então, até se tornar um assentamento, foram vários ataques de pistoleiros e conflitos com madeireiros.” Renato Lima, um dos títulos utilizados para se referir ao assentamento, era o nome do antigo proprietário da fazenda.

Em 2007, cerca de 480 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam a fazenda Piratininga, diz a CPT. No dia 6 de agosto daquele ano, um grupo de pistoleiros fez disparos contra o acampamento; não foram registradas vítimas.

Ainda segundo a CPT, dias depois, um grupo de 15 homens invadiu o acampamento, fazendo disparos e agredindo os trabalhadores rurais. Depois desse ataque, as famílias deixaram o local, mas retornaram, apesar das ameaças.

Nos anos seguintes, as famílias sem-terra seguiram denunciando os conflitos agrários na região e o desmatamento ilegal, além de reivindicar a desapropriação das terras para fins de reforma agrária.

Segundo histórico da CPT, em 2011, uma ação de reintegração de posse na fazenda despejou cerca de 50 famílias. Algum tempo depois, porém, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) iniciou a medição dos lotes, que deram origem ao assentamento Salvador Allende.
“A gente ainda não sabe ainda se a causa foi conflito agrário”, afirma o advogado José Batista, da CPT, uma vez que o assentamento está consolidado pelo Incra.

Mortes no Pará

Casos recentes demonstram a recorrência de assassinatos envolvendo conflitos agrários no Pará. No dia 12 de março de 2018, Paulo Sérgio Almeida Nascimento foi morto a tiros na zona rural do município de Barcarena. Ele era segundo-tesoureiro da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), organização que denunciou vazamentos das bacias de rejeitos da empresa Hydro-Alunorte, no início do ano passado.

Já no dia 15 de abril de 2018, foi assassinado o líder quilombola Nazildo dos Santos Brito, 33 anos, da comunidade Turê III, que fica entre os municípios de Tomé-Açu e Acará, no nordeste paraense. Ele vinha sendo ameaçado por denunciar crimes ambientais na região. Em janeiro deste ano, o Ministério Público do Estado do Pará denunciou o fazendeiro José Telmo Zani pelo assassinato do quilombola. Segundo moradores da comunidade, José Telmo fazia extração ilegal de madeira dentro do território quilombola e ameaçou Nazildo diversas vezes.

Em 2017, dez trabalhadores rurais foram assassinados na fazenda Santa Lúcia, município de Pau D’Arco, no sul do Pará. A “chacina de Pau D’Arco”, como ficou conhecida, foi executada por policiais civis e militares, que foram denunciados pelo Ministério Público e devem ser julgados por um tribunal do júri, com data a ser marcada.

Naquele ano, segundo levantamento da CPT, o Pará teve o maior número de assassinatos por conflitos no campo. De um total de 70 assassinatos, 21 foram no Pará, sendo que dez deles ocorreram na chacina de Pau D’Arco.

Moyses Sarraf é jornalista do Portal Amazônia Real, onde a matéria foi originalmente publicada.
Colaborou Kátia Brasil.

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