“O governo está levando o SUS do subfinanciamento ao desfinanciamento”
- Detalhes
- Gabriel Brito, da Redação
- 02/07/2019
“Antissistêmico”, ao menos em sua propaganda, o atual governo brasileiro parece não ser capaz de propor quaisquer medidas que não sejam de interesse dos grandes capitais privados, em todas as áreas. Na saúde, chamou atenção declaração do ministro da área, Luiz Henrique Mandetta, a colocar em xeque a gratuidade do Sistema Único de Saúde, que já sofre com as políticas de austeridade radicalizadas nos últimos anos. Sobre este e outros temas da saúde pública, o Correio entrevistou a médica e pesquisadora Melina Pecora.
“A gratuidade do SUS esta gravada na CF 88 através de seus princípios norteadores, não cabendo, portanto, alteração nem por emenda constitucional, pois é considerada por muitos autores como cláusula pétrea”, afirmou.
Além de reforçar o escopo conceitual do SUS, Pecora comenta o orçamento da pasta da saúde para este ano, afetado por cortes e pela PEC do Teto de Gastos, o que em momentos de crise econômica e social aumenta mais ainda a pressão sobre o sistema público.
“Em um olhar superficial podemos entender que (os cortes) não são tão expressivos. Entretanto, em uma área como a saúde, cuja demanda aumenta cada vez mais, são necessários novos investimentos. É temeroso que ocorram cortes nesta área. Somos obrigados a lembrar dos princípios sensíveis, os quais garantem que o investimento na educação e saúde devem ser resguardados”, explicou.
Ao longo da entrevista, a médica comenta as primeiras consequências da saída dos médicos cubanos, a orientação da política antidrogas de um governo que vai na contramão de todo o conhecimento acumulado e, neste sentido, defende o estudo da Fiocruz sobre suposta epidemia de drogas, negado em seu resultado e, dessa forma, censurado pelo ministro da Casa Civil, Osmar Terra, e depois pelo próprio governo, insatisfeito com as conclusões levantadas.
“O Ministério discorda da metodologia utilizada e afirma que só autorizará a publicação se houver mudança no título da pesquisa e se o nome da pasta não for citado (...) Uma vez que a pesquisa foi financiada pelo Ministério, este mesmo seria responsável por avaliar a execução da mesma. Ao final simplesmente descartá-la não é um ato adequado, sendo inclusive irresponsável do ponto de vista do erário”.
A entrevista completa com Melina Pecora pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, o que considera da declaração do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a sugerir o fim da gratuidade no SUS?
Melina Pecora: De primeira faz-se necessário uma reflexão: quem ganha 100 salários mínimos, parâmetro usado pelo ministro, dificilmente irá utilizar o SUS, e nem precisamos ir tão longe até para saber que quem ganha bem menos se utiliza de planos de operadoras de saúde. Quem utiliza o SUS em nosso país realmente são aqueles que necessitam.
Depois de adentrarmos nessa questão iremos falar do princípio da universalização do SUS, um princípio formador do Sistema Único de Saúde, de suas raízes, ou seja, sua concepção. No manancial de formação do SUS está a Universalização. É importante lembrarmos tais princípios.
A Constituição Federal (CF) em seu art. 196 deixa claro que o Estado não pode se furtar de atender a demanda e necessidades de saúde. E em sua redação prescreve o seguinte:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”.
A Saúde e a Assistência Social são não contributivas. O Princípio da Universalidade garante que a saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas. Cabe ao Estado assegurar este direito, sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais ou pessoais.
A Universalidade é um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde. A adoção desse princípio, a partir da Constituição Federal de 1988, representou uma grande conquista democrática, que transformou a saúde em direito de todos e dever do Estado.
Anteriormente ao SUS, somente as pessoas com vínculo formal de trabalho, ou vinculadas ao Regime Geral de Previdência Social, poderiam dispor dos serviços públicos de saúde.
Sendo assim, a gratuidade do SUS esta gravada na CF 88 através de seus princípios norteadores, não cabendo, portanto, alteração nem por emenda constitucional, pois é considerada por muitos autores como cláusula pétrea.
O direito à saúde em sua universalidade não pode ser violado mesmo não estando no art. 5° (onde se encontra a maior parte dos direitos intangíveis considerados cláusulas pétreas). Somente por uma nova Constituição Federal, através de um Poder Constituinte Originário, onde se elegeriam os representantes do povo para fazer uma nova Constituição, se poderia mudar a concepção aqui descrita.
* a declaração do ministro foi: “É justo ou equânime uma pessoa que recebe 100 salários mínimos ter o atendimento 100% gratuito no SUS? Quem vai ter 100% de atendimento gratuito no SUS? Eu acho que essa discussão é extremamente importante para esse Congresso. Eu vou provocá-la, vou mandar a mensagem, sim, para a gente discutir equidade e nesse ponto a gente vai pôr o dedo”.
Correio da Cidadania: O que pensa da proposta orçamentária da saúde para 2019?
Melina Pecora: A Lei 13.808/2019 estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 2019. Engloba o orçamento referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público.
O Decreto 9.741 de março de 2019 alterou o decreto 9.711, de 15 de fevereiro de 2019, que dispõe sobre a programação orçamentária e financeira, estabelece o cronograma mensal de desembolso do Poder Executivo federal para o exercício de 2019 e dá outras providências.
Na área social o congelamento, espécie de contingenciamento anunciado pelo governo, foi de 5,839 bilhões. Na saúde teremos um contingenciamento no valor de R$ 599 milhões, segundo reportagem publicada na Folha de S. Paulo em 29 de março de 2019. Em um olhar superficial podemos entender que tais valores não são tão expressivos.
Entretanto, em uma área como a saúde, cuja demanda aumenta cada vez mais, são necessários novos investimentos. É temeroso que ocorram cortes nesta área.
Somos obrigados a lembrar dos princípios sensíveis, os quais garantem que o investimento na educação e saúde devem ser resguardados. Estão previstos no art. 34 da CF, prescrevendo que a União não intervirá nos estados nem no Distrito Federal, exceto para assegurar a observância dos devidos princípios constitucionais, sendo um deles a aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
As áreas mais nevrálgicas são as que o governo anunciou cortes quando deveria anunciar maiores investimentos. Sabemos que a demanda em saúde e educação só faz aumentar e que em qualquer país desenvolvido ou de primeiro mundo são áreas onde se devem aumentar os investimentos, jamais contingenciar.
Correio da Cidadania: Como sintetiza a agenda de políticas públicas para a saúde neste primeiro semestre?
Melina Pecora: As Políticas Públicas em saúde devem priorizar a atenção básica e primária, a fim de evitar as complicações e favorecer a prevenção de patologias, otimizando os recursos. Melhor explicitando: é melhor que se previnam as patologias, ao invés de tratá-las. Com o desmonte do SUS, os investimentos em atenção básica e primária estão diminuindo substancialmente, bem como os investimentos na prevenção e profilaxia de patologias.
A Emenda Constitucional 95/2016 teve um efeito prejudicial, pois estabelece um teto para as despesas primarias até 2036, com o objetivo de formar superávits primários para pagamento de juros e amortização da dívida pública, criando uma regra de congelamento para esta finalidade por 20 anos.
O processo de subfinanciamento do SUS foi transformado em um processo de desfinanciamento, gerando perdas irreparáveis em uma área que a demanda só faz aumentar.
Correio da Cidadania: Quais os reflexos do fim do programa Mais Médicos e o que você pensa do posicionamento das entidades representativas da categoria sobre o tema?
Melina Pecora: A finalidade do Programa Mais Médicos era atender as áreas de maior demanda. Uma demanda ligada a fatores ambientais que dificultariam o acesso, bem como fatores socioculturais relacionados às populações mais carentes.
Com a interrupção abrupta da assistência médica prestada pelos médicos cubanos deste programa, 28 milhões de pessoas tiveram seu atendimento médico cessado. O governo do presidente Jair Bolsonaro falhou na substituição de tais profissionais.
Segundo reportagem publicada em 11 de junho, no Jornal New York Times, 3.847 vagas para médicos no setor público em quase 3 mil municípios continuam não preenchidas.
O New York Times ainda indica que a retirada dos cubanos pode ter "severas consequências para aqueles com menos de 5 anos, potencialmente levando à morte mais de 37 mil crianças até o ano de 2030".
Entretanto, anunciou o governo em fevereiro, o problema teria sido solucionado, com todos os postos preenchidos. Porém, até abril milhares de novos profissionais haviam desistido ou nem aparecido para ocupar o cargo.
Segundo o New York Times o programa chegou a atender 60 milhões de brasileiros, e o índice de cidadãos que recebiam atendimento básico havia crescido de 59% para 70%.
Tudo isto deve ser analisado à luz de uma política que não preconiza atendimento básico e primário à saúde, e de uma política que não valoriza a medicina preventiva, mas a curativa.
Os reflexos desta política irão aparecer futuramente com a recrudescência de patologias já extintas ou pouco frequentes, bem como complicações decorrentes da falta de profilaxia.
Correio da Cidadania: O que falar da censura ao estudo sobre drogas apresentado pela Fiocruz e financiado pelo Estado? O que você pensa das alegações do ministro da Casa Civil, Osmar Terra, sobre o tema?
Melina Pecora: No estudo realizado pela fundação Oswaldo Cruz, o maior já feito sobre o tema, foram ouvidas 16.273 pessoas em 351 cidades (custando aos cofres públicos cerca de R$ 7 milhões).
Investigou-se o consumo de substâncias lícitas e ilícitas por brasileiros. Entretanto, a Secretaria Nacional de Política de Drogas, a Senad, órgão do Ministério da Justiça responsável por encomendar a pesquisa, decidiu engavetá-la.
O levantamento demonstrou que apenas 0,9% da população usou crack alguma vez na vida, o que não caracteriza uma epidemia, como alardeia o governo.
Referiu, o atual ministro Osmar Terra, um dos responsáveis por embargar o levantamento que “não confia” no estudo e que a Fiocruz tem “viés de defender a liberação das drogas”.
As declarações do ministro fizeram com que o assunto chegasse até ao Jornal Nacional, que divulgou alguns dos resultados publicados há dois meses pelo Intercept (sem os créditos, mas essa é outra história).
Em abril, logo depois que publicamos os resultados da pesquisa, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, autorizou a divulgação do relatório – desde que ele não fosse associado à Senad, do Ministério da Justiça. O governo exige que a Fiocruz devolva os R$ 7 milhões da pesquisa, alegando que ela não cumpriu o edital. A Fiocruz diz que cumpriu e, neste momento, o caso está sendo avaliado pela Advocacia Geral da União.
Em abril, quando publicamos a história pela primeira vez, avaliamos que divulgar o documento na íntegra poderia colocar em risco os objetivos da pesquisa e contribuir para que o levantamento fosse definitivamente engavetado pelo governo. Por causa dos últimos acontecimentos, no entanto, decidimos que é interesse público divulgar, na íntegra, o que o estudo mostrou.
Por exemplo, a professora Andrea Gallassi, coordenadora do Centro de Referência Sobre Drogas da Universidade de Brasília, discorda. Ela afirma que o levantamento da Fiocruz foi feito seguindo rigorosamente normas científicas e que a censura atrapalha a elaboração de políticas públicas. A pesquisa mostra que 9,9% dos brasileiros entre 12 e 65 anos experimentaram alguma droga ilícita na vida.
O Ministério discorda da metodologia utilizada e afirma que só autorizará a publicação se houver mudança no título da pesquisa e se o nome da pasta não for citado. A Fiocruz afirma que cumpriu todas as exigências do edital. Todo questionamento a respeito de uma pesquisa científica deve ser feito fundado em questões estatísticas: seja de métodos, seja de coleta de dados.
Uma vez que a pesquisa foi financiada pelo Ministério, este mesmo seria responsável por avaliar a execução da mesma. Ao final simplesmente descartá-la não é um ato adequado, sendo inclusive irresponsável do ponto de vista do erário, uma vez que o dispêndio dos cofres públicos é de responsabilidade daquele que ordenou a despesa. Se a análise realizada verificou que a Fundação Oswaldo Cruz cumpriu fielmente o prescrito no edital, esta cumpriu seu trabalho entregando o produto final.
A recusa deve ser fundada em questões objetivas prescritas no edital e que não foram cumpridas. No caso sob análise não verificamos este fato, mas questões inespecíficas com vieses subjetivos que jamais podem ser admitidas, quer de um Ministério quer de qualquer órgão que administre dinheiro público.
Correio da Cidadania: E o que comenta da política antidrogas do governo já em andamento e seus resultados até aqui apresentados?
Melina Pecora: No tratamento da dependência química faz-se necessário a diminuição da dependência paulatinamente. Diversos estudos na área médica defendem a chamada redução de danos. A redução dos danos visa melhorar a qualidade de vida do usuário como um todo. É baseada na compreensão de que muitas pessoas seguem usando drogas. Em suma, ela tenta minimizar os efeitos deletérios da droga.
Estudos mais modernos preconizam períodos curtos de internação, que devem ocorrer somente em última necessidade, dando maior autonomia ao paciente, com diminuição dos prejuízos causados pela droga. No caso de drogas injetáveis busca-se a prevenção da transmissão do HIV e outras doenças transmissíveis via sanguínea.
A busca é por uma maior autonomia do paciente, através de seu livre arbítrio. A ideia é contrária à internação. Enquanto a internação busca a exclusão social, aqui se busca a reinserção na sociedade, com a conscientização ao invés da simples proibição.
Correio da Cidadania: O que pensa do aumento ao financiamento das chamadas comunidades terapêuticas neste ano, aposta do governo para combater a alegada “epidemia de drogas”?
Melina Pecora: A residência terapêutica é uma maneira de colocar o paciente em momento de transição para pacientes que estavam em regime manicomial. O centro de Atenção Psicossocial (CAPS) busca atender tanto dependentes de álcool e drogas, mas também paciente psiquiátrico.
A política nacional do governo Jair Bolsonaro alterou esta lógica do tratamento de dependentes, sendo que os serviços buscam a abstinência e não a redução de danos.
Para o secretário Nacional de Cuidado e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, Quirino Cordeiro Júnior, a redução de danos não oferece os resultados esperados. “Veja os números de pessoas dependentes”, disse.
Nas comunidades terapêuticas, nova forma de tratamento proposta pelo governo atual, ganha espaço um viés religioso, sendo estas comunidades “livres” para tratar o paciente, diferentemente da base científica de outrora, usando-se um empirismo, com pouca fiscalização.
Este retrocesso traz de volta as internações prolongadas, focadas na retirada da pessoa da sociedade ao invés de inseri-la na sociedade.
Correio da Cidadania: Vemos um movimento amplo em defesa da educação, com uma jornada de atos e protestos em direção a uma greve geral que tem levado muita gente para as ruas. Você vê a possibilidade de algo similar no campo da saúde pública?
Melina Pecora: Os movimentos sindicais que envolvem os professores são nitidamente mais organizados do que os mesmos movimentos ligados à saúde. Não vislumbro a mesma mobilização no sentido da saúde, uma vez que a organização da categoria profissional não possui este viés.
A categoria profissional de professores possui um histórico que diverge da classe médica. Embora os movimentos sociais em defesa do SUS sejam muito organizados, a base da organização não vem do movimento sindical ou estudantil, como o movimento em defesa da educação.
A saúde tem sua “militância” marcadamente no movimento popular, através dos Conselhos de Saúde. Por essa razão não há que se falar em movimento similar entre saúde e educação. A envergadura e o tipo de mobilização são muito diferentes.
Leia também:
“Temos um governo que incentiva as drogas efetivamente mais perigosas”
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.