Correio da Cidadania

O fascismo que quer todos os espaços

0
0
0
s2sdefault


Cena do programa "Manos e Minas", da TV Cultura, ameaçado de fechamento | Foto: Divulgação

Olhe para esses fatos envolvendo a gestão do governador João Doria (PSDB) em São Paulo e diga se parecem ter algo em comum.

Fato 1. Desde que o governador assumiu, a Polícia Militar passou a matar mais: não será surpresa se, ao final do ano, a gente descobrir que a letalidade policial bateu todos os recordes em terras paulistanas.

Fato 2. O mesmo governador vem intervindo em conselhos de participação social, nas áreas de meio ambiente e patrimônio público, para limitar o espaço da sociedade civil nas tomadas de decisões do governo.

Fato 3. Há poucos dias, a TV Cultura, mantida pelo governo de São Paulo, anunciou a interrupção (em princípio, temporária) das gravações do programa Manos e Minas, um dos poucos espaços da televisão brasileira dedicados à cultura negra e periférica.

Fato 4. O mesmo governo quer colocar policiais dentro das escolas.

São fatos que parecem se encaixar, como peças de um quebra-cabeças. E, que uma vez montado, revela a imagem de um projeto de poder autoritário, que busca calar vozes, seja pelo fechamento dos espaços de decisão, como vem ocorrendo nos conselhos, seja pelo possível cancelamento de um espaço simbólico de reflexão e celebração da cultura negra, como é o Manos e Minas, seja pela coerção representada pela presença fardada em escolas da periferia ou, no limite, pela eliminação física de pessoas negras e pobres, por meio das execuções extrajudiciais praticadas pelo braço armado do Estado – é bom lembrar que o Atlas da Violência registrou que 75% das vítimas da violência policial são negras .

O projeto autoritário de Doria é o mesmo que vem sendo aplicado, em nível nacional, pelo governo de Jair Bolsonaro. É significativo que o mesmo presidente que busca dar carta branca à violência policial contra negros e pobres, por meio do projeto anticrime do ministro Sérgio Moro, tenha mandado censurar um comercial do Banco do Brasil protagonizado por jovens negros. Trata-se da mesma lógica: matar os corpos negros nas favelas e matar sua presença simbólica nos meios de comunicação.

Muita gente ainda não acordou para os riscos do momento que estamos vivendo, como escreveu o educador Renato Janine Ribeiro na Folha, dizendo que "vários amigos, embora tenham horror ao atual governo, não se preocupam muito: pensam que em quatro anos as eleições o substituirão" e que esses "subestimam a destruição do tecido social e político, a liquidação da vida inteligente e da vida mesma", que foi intensificada nos últimos meses.

Intensificada, sim, mas não iniciada. O que vemos hoje sempre existiu: estamos diante da versão piorada de um autoritarismo que nunca nos abandonou. "A gente tem que entender o nosso processo histórico e o que não foi passado a limpo e sempre retorna. No nosso caso, são os quase 400 anos de sistema escravocrata e ainda a ditadura militar. Não tem como fugir. As forças conservadoras são chamadas assim porque querem conservar algo, que nesse caso literalmente fica ‘claro’ que é um privilégio de classe, raça e gênero, afirma a atriz e MC Roberta Estrela D'Alva, apresentadora do Manos e Minas, em uma lúcida entrevista à repórter Maria Teresa Cruz.

É também Roberta que, na mesma entrevista, dá a letra da esperança e a senha da resistência ao lembrar que o tempo não para: "a gente vai continuar se organizando pra resistir. Há muita coisa bonita acontecendo também, sendo criada. Tem uma molecada ligeira, meninas negras ligadíssimas. Eu sigo acreditando e trabalhando por um mundo melhor e com mais poesia".

Por um mundo com mais vida e poesia, seguimos espalhando histórias.
.
Fausto Salvadori é editor e repórter da Ponte Jornalismo, onde o artigo foi originalmente publicado.

0
0
0
s2sdefault