Correio da Cidadania

Seis anos do caso Amarildo: “os tiroteios seguem diários, as facções não estão mais fracas e o Estado mata ainda mais gente”

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Companheira de Amarildo, Elizabeth Gomes da Silva segura foto do ajudante de pedreiro em protesto - Créditos: Agência Brasil
Elizabeth Gomes da Silva, viúva de Amarilldo / Agência Brasil

Um dos mais emblemáticos casos da violência do Estado brasileiro, o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza completou seis anos e foi arquivado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mesmo sob fortíssimas evidências de envolvimento dos policiais que trabalhavam na Unidades de Polícia Pacificadora da Rocinha. Pesquisador do caso e das políticas de segurança pública do estado, o jornalista Leandro Resende acaba de lançar o livro Cadê o Amarildo? O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs e concedeu entrevista ao Correio da Cidadania para comentar o livro e fatores relacionados ao crime.

São muitos os símbolos que o caso Amarildo aciona: o lugar dos crimes cometidos contra moradores de favelas, que: ou são escanteados por serem estes cidadãos de menor estatuto, ou caem numa análise da vida pregressa através do famigerado “ligação com o tráfico”, como uma justificativa para a morte.

Na conversa, Resende analisa o histórico da relação entre o Estado brasileiro e as favelas, as tradicionais estigmatizações dos moradores destes territórios e a permanente aposta na militarização como único método de solução da violência, em especial nos anos que marcaram a euforia brasileira com crescimento econômico e grandes eventos internacionais.

“O fim do ciclo de megaeventos esportivos confirmou o que se esperava a respeito das expectativas em torno do projeto das UPPs. Há pesquisas que mostram que, entre os moradores e mesmo entre os policiais, acreditava-se que a experiência teria um ponto final após a Olimpíada de 2016. A violência continuou e, em uma jogada política do governo Michel Temer, o Rio teve o interventor na segurança pública. No que diz respeito à vida do cidadão comum, nada mudou”, resumiu.

A entrevista completa com Leandro Resende pode ser lida a seguir. 

Correio da Cidadania: Como você resume ao público seu livro Cadê o Amarildo? O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs? Acredita que seu assassinato e desaparecimento mantém um peso simbólico das relações sociais brasileiras?

Leandro Resende: O livro é resultado da minha dissertação de mestrado, defendida em março de 2018 no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Procurei situar o sumiço do Amarildo como um marco histórico do processo de desencantamento das UPPs - um ponto importante na história da política pública, capaz de redimensioná-la de forma definitiva.

Conto a história do episódio tendo como enfoque as reações das autoridades envolvidas - e o que elas podem nos desvelar e sugerir acerca do racismo e do preconceito de lugar e de classe, estruturantes no Brasil e, de modo particular, no Rio de Janeiro.

O desaparecimento de Amarildo mexe em vários aspectos da nossa história. Mais evidente é o relacionamento entre Estado e favela, sobretudo no Rio de Janeiro. Amarildo é vítima da ausência de qualquer política pública para essas populações que não seja aquela respaldada pelo fuzil, pelo coturno e pelo medo. A UPP sugeriu uma mudança, mas a morte do pedreiro revela que essa proposta nunca foi nada além de mero recurso retórico.

São muitos os símbolos que o caso Amarildo aciona: o lugar dos crimes cometidos contra moradores de favelas, que: ou são escanteados por serem estes cidadãos de menor estatuto, ou caem numa análise da vida pregressa através do famigerado “ligação com o tráfico”, como uma justificativa para a morte.

Correio da Cidadania: Seu livro também explora o advento das UPPs no Rio de Janeiro e, portanto, mais um capítulo da militarização da segurança pública. Como coloca essa política de segurança à luz do histórico brasileiro em lidar com tal questão, considerando ainda a ocupação militar federal que vigorou entre 2017 e 2018 no Rio?

Leandro Resende: O Rio de Janeiro é um caso “bom para pensar”, nos termos da professora Marcia Leite, o problema da segurança pública no Brasil. O Estado, historicamente, é um laboratório de experiências para práticas que são, fundamentalmente, de repressão aos mais pobres. As UPPs nascem, em algum sentido, como uma tentativa retórica inversa: não mais atacar os bandidos, mas “levar a paz”; evitar o confronto; reduzir a circulação de armas.

Contudo, a tentativa de levar a paz se deu da mesma maneira que se gestou a “metáfora da guerra”: eram os mesmos policiais, cuja formação continuou padecendo dos mesmos problemas, em um esforço governamental para pacificar apenas as áreas mais próximas do centro financeiro, turístico e esportivo da cidade, tendo em vista a proximidade do projeto com os megaeventos (as UPPs surgem no fim de 2008 e a Copa do Mundo de futebol no Brasil é em 2014; os Jogos Olímpicos, em 2016).

O fim desse ciclo de megaeventos confirmou o que se esperava a respeito das expectativas em torno do projeto das UPPs. Há pesquisas que mostram que, entre os moradores e mesmo entre os policiais, acreditava-se que a experiência teria um ponto final após a Olimpíada de 2016. Aos poucos, desde então, o projeto se desidratou. A violência continuou e, em uma jogada política do governo Michel Temer, o Rio teve o interventor na segurança pública.

No que diz respeito à vida do cidadão comum, nada mudou. Tiroteios seguem diários, as facções não estão mais fracas e, pior, o Estado mata ainda mais gente (durante e após a intervenção) do que antes.

Correio da Cidadania: Você também explora a questão da gestão dos territórios brasileiros pelo Estado. A morte de Amarildo se passa ainda no calor das manifestações de 2013, onde a criminalização estatal foi forte, porém, nada que se compare à chacina de Nova Holanda, quando em 24 de junho uma operação policial matou 10 pessoas. A alegação estatal foi um arrastão na Avenida Brasil, enquanto moradores sustentam a versão de que os moradores do Complexo da Maré também iam às ruas por razões políticas. Como você enxerga todo esse conjunto de fatores associados?

Leandro Resende: Considero que a atenção e a relevância de um crime diante dos olhos da imprensa e das autoridades não são inatos, e sim são uma resposta a um conjunto de fatores. No caso Amarildo, convergiram diversos fatores: o fato de ser um episódio de violência em uma favela “pacificada” e reconhecida internacionalmente; a discussão sobre violência policial que estava contida de forma lateral nas manifestações de junho de 2013, mas que, depois, se torna central; a construção de Amarildo enquanto uma bandeira de manifestações. Tudo isso contribuiu para centralidade do episódio. O fato de 10 mortes na Nova Holanda não terem tido tanta repercussão é revelador do Estado que vivemos.

Correio da Cidadania: Na época, você trabalhava no Dia, um veículo de alcance massivo. O que você comenta das narrativas dos monopólios empresariais de comunicação no que tange protestos e indignação política de modo geral, em especial diante dos desdobramentos vividos pelo país de 2013 para cá?

Leandro Resende: O legado de 2013 é disputado ideologicamente até hoje. Há quem diga, por exemplo, que ali estava o setor da direita que abriu caminho para o impeachment da Dilma, e, depois, sedimentou espaço para eleição de Bolsonaro. No que diz respeito à comunicação: trata-se de um evento que colocou em xeque o lugar da mídia tradicional, à medida em que foram marcantes as transmissões ao vivo via celular, in loco.

Correio da Cidadania: Como morador do Rio de Janeiro, considera necessário que se comece a debater mais seriamente uma “mexicanização” ou “colombianização” do Brasil?

Leandro Resende: Acho que é uma simplificação para uma realidade muito complexa. Colômbia e México têm, cada um, suas especificidades. O que temos no Rio de Janeiro é gravíssimo e prescinde de conceituações estrangeiras: facções armadas marginais ao Estado; facções armadas poderosas e nascidas dentro do Estado, notadamente o que se designa e se espraia sob a alcunha de milícia; um investimento histórico em confrontos e ações violentas que colocam o cidadão que vive na periferia sob risco diário de morrer.

Leia também:

Intervenção militar no Rio não respondeu nem necessidades da população, nem das polícias” – entrevista com o pesquisador Pablo Nunes, coautor do relatório final da Intervenção Militar Federal produzido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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