Correio da Cidadania

Pisa e Paraisópolis: vitrines da surda guerra de classes no Brasil

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“Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! não verás nenhum país como este! Boa terra! jamais negou a quem trabalha. O pão que mata a fome, o teto que agasalha… Quem com o seu suor a fecunda e umedece, Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece! Criança! não verás país nenhum como este: Imita na grandeza a terra em que nasceste!” Por longos anos, a criançada brasileira foi obrigada a aprender de cor e declamar empertigada a poesia “A Pátria” nos colégios particulares e escolas públicas.

Cento e quinze anos após Olavo Bilac escrever sua ode à Pátria imaginada e fantasiada - fazia apenas 17 anos que findara o trabalho escravizado -, o levantamento mundial do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) acaba de registrar que quase 50% dos estudantes brasileiros do ensino médio que lessem a poesia “A Pátria” não compreenderiam as sandices do mais patrioteiro de nossos vates. Os resultados em matemática e ciência foram ainda piores.

Esses jovens “analfabetos funcionais” são sobretudo oriundos de famílias populares. Os filhos dos riquinhos alcançam resultados superiores, mas pouco brilhantes, sobretudo em relação aos países ditos avançados. Com algumas variações, os resultados aferidos estão próximos aos obtidos durante os governos petistas e anteriores. Não são pontos fora da curva. Os avaliados têm de quinze a dezesseis anos, preparando-se, portanto, para o mercado de trabalho, a maioria, ou o ensino superior, a minoria.

O Nome do Inferno

No domingo, 1º de dezembro, a polícia militar paulista, sob ordens superiores, foi responsável pelo massacre gratuito de nove jovens em um baile funk, em comunidade de nome esperançoso - Paraisópolis-, na periferia da megacapital. Como nos milhares de casos nacionais semelhantes, as autoridades civis e militares “afastaram” os responsáveis temporariamente das ruas e abriram “sindicâncias” que não levarão, como sempre, a nada. A não ser, talvez, futuras promoções aos diretamente envolvidos.

Apesar da gravidade do ocorrido, salvo engano, nenhuma liderança nacional da oposição foi prestar solidariedade e exigir a punição implacável dos responsáveis. As universidades, colégios, clubes esportivos etc. de São Paulo e do Brasil não pararam nem mesmo um minuto em homenagem às vítimas. A imensa maioria das associações profissionais sequer emitiu declaração de protesto — historiadores, sociólogos, engenheiros, médicos, etc. Ao contrário, no dia 4, a oposição faz de conta -com Freixo, Fernanda Melchionna e Edmilson Rodrigues – juntou-se ao golpismo e apoiou a iniciativa de Moro [PL Anticrime] para aumentar a repressão à população. Registrem-se as exceções cada vez mais raras de sempre.

Os sucessos de Paraisópolis foram classificados na pasta dos massacres policiais correntes que se sucedem, há décadas, e agora se multiplicam, sem despertar real atenção dos partidos e movimentos que se reivindicam de oposição, de esquerda e populares. Compreende-se. Mesmo nas notícias que denunciavam aqueles fatos, três palavras desarmavam qualquer sentimento multitudinário de identificação com as vítimas, por parte da população: era um baile funk de jovens em uma favela.

Nós e Eles

Dezenas de milhões de brasileiros das classes endinheiradas, médias e mesmo populares saudaram ou desculparam a ação criminal dos policiais militares, sob as ordens ou proteção de seus oficiais e autoridades civis, contra jovens das classes populares que se divertiam. Os primeiros devido ao ódio atávico aos trabalhadores e pobres, sobretudo negros, tidos como inimigos de classe, que devem seguir desorganizados, alienados e principalmente reprimidos.

A ampla falta de empatia popular deve-se à permanente sensação de insegurança, exacerbada pela grande mídia, vivida sobretudo nas periferias urbanas. A população teme e é comumente agredida por jovens pobres e não raro negros. Iguais aos milhões que partem, todos os dias, para trabalhar, por salários indignos, ou à procura de ocupação, cada vez mais rara. Jovens de baixíssimo nível educacional, mesmo tendo, no papel, o Segundo Grau completo.

O fosso separando explorados e exploradores restringiu-se relativamente após a Abolição, em 1888, e, algo mais, com a industrialização, nos anos 1930. Porém, não apenas os trabalhadores mais explorados jamais foram tidos como membros plenos da sociedade. Foram sempre considerados gente diferente. No Brasil, manteve-se sempre a profunda trincheira separando o “nós” do “eles”. Se não, como explicar que, sob a justificativa de ser impossível dar mais, se pretendeu, mesmo nos governos populares, que o trabalhador vivesse, como gente normal, com salário mínimo! Esse hiato abismal era e é devido a relações de forças fortemente desfavoráveis aos trabalhadores e favoráveis às classes exploradoras.

Agarrados no Ódio

O Brasil contemporâneo organizou-se segundo as necessidades do grande capital nacional e internacional. Construiu-se um radical apartheid social que, paradoxalmente, apesar de sempre contar com o apoio das classes médias e média-altas, hoje, está também se voltando contra elas, mesmo relativamente. Para a plebe, levantaram-se escolas públicas atualmente com a principal função de manter os jovens fora das ruas.

Manter sob controle, é preciso; educar, não é preciso! Para as classes médias e média-altas, organizaram-se escolas e universidades privadas, de alto preço e qualidade relativa. Muito logo, com a privatização das universidades federais, as classes médias não conseguirão mais enviar um filho para um curso excelente, sem se endividarem por toda uma vida.

Criou-se igualmente medicina paga, caríssima, sobretudo para os velhos, que mais precisam, de qualidade discutível, e medicina pública e gratuita, periclitante e de difícil acesso, para a população. A segurança pública tornou-se serviço de contenção dos trabalhadores, enquanto a particular serviço privado pago a alto preço — zeladores, garagens, vigilantes, dispositivos eletrônicos, etc.

A atual destruição do regime de pensão atinge agora funcionários e assalariados mais bem pagos, quando não pertencem aos quadros militares e da Justiça, é claro. Cada vez mais, facções dos segmentos médios e médio-altos encontram consolação à sua decadência relativa e incessante no ódio irrestrito aos trabalhadores, aos pobres, aos negros, à esquerda.

Os realmente ricos vivem com suas famílias no exterior, milhares deles na Flórida e em Miami, e trabalham alguns dias por semana, quando trabalham, no Brasil. São todos furibundos patriotas. Pagam fortunas por casas mirabolantes, com paredes de compensado e forro de gesso. Compram moradias de milhões de reais em Portugal ou tentam se mudar para lá para desfrutarem os serviços públicos de saúde, de educação e de segurança, que negam à população nacional, em um país de governo bem mais à esquerda do que os petistas do passado – o que não é difícil, temos que convir.

A Impossível Viagem ao Passado

Além da repressão policial-militar, esse apartheid social sem fim teve como válvulas de segurança sua capacidade de abrir brechas, maiores ou menores segundo a época, para que indivíduos singulares progredissem socialmente devido a oportunidades, capacidades e espertezas singulares — expansão do agronegócio; igrejas caça-níqueis; atividades políticas e sindicais; corrupção; comércio das drogas etc.

Nos últimos tempos, alguns retoques cosméticos na ordem social despótica assumiram o status de políticas progressistas, como as cotas sociais, raciais, étnicas nas universidades públicas, que deixavam as grandes multidões populares ao deus-dará.

Há uma grande expectativa, nos meios politizados da oposição, que, através das eleições de 2020 e 2022, as coisas voltem como eram antes, ou quase. Lula da Silva, o PT e seus puxadinhos corroboram sem peias essa ilusão. Sonha-se com esse retorno ao passado, mesmo que ele tenha tratado como madrasta ruim as imensas classes populares.

Mas, dizem os defensores desse retorno impossível, ele seria já um alívio, mesmo que as classes populares ganhem com ele pouco ou, em alguns casos, quase nada. Na vida real não é possível fazer milagres — repetem, esperando estar entre os abençoados pelo “milagre”.

Tirem o cavalinho da chuva. Vivemos metamorfoses estruturais no país, nas quais os governo Temer e Bolsonaro funcionaram como barrigas de aluguel parideiras de monstrengos que pretendem habitar entre nós para sempre. O que era ruim vai ficar pior. As escolas públicas se degradarão ainda mais, transformadas em madrassas evangélicas ou em escolas-casernas, cabides de emprego para suboficiais aposentados. As polícias-milícias percorrerão as ruas, comunidades populares, indústrias matando, reprimindo e achacando a população trabalhadora, desempregada e pobre.

Volta e meia matarão um rico e branco, o que será desculpado, pois sabemos que, em toda guerra, há sempre perdas por “fogo amigo”. As classes médias e altas também terão que baixar a cabeça a qualquer cabo e sargento armado, como nos gloriosos idos da “Redentora”.

Um País de Mentirinha

O golpe de 2016 veio para transformar o país em um produtor de quinquilharias industrializadas, de grãos, de petróleo e de minérios, sob as ordens do grande capital mundial, tendo como gestores locais os senhores generais, os grandes juízes, os políticos e sindicalistas da situação e da oposição bem comportada, todos com responsabilidades compartidas e remunerações diversas. Algo que já podemos acompanhar no dia a dia, mesmo quando a liquidação da sociedade e da nação encontra-se ainda incompleta.

Muitos defendem que o caminho para o proposto retorno ao passado se encontre na volta da esquerda à periferia, onde, em verdade, ela jamais esteve. Movimento não para organizar a saída às ruas das “massas” organizadas, é lógico. A “paz” e o “amor” deve reinar entre nós. Ao contrário, deve-se “voltar “às “periferias” para garantir bons resultados eleitorais — ou menos ruins — em 2020. Mais vereadores e prefeitos para a “oposição de mentirinha”. O que, se ocorrer, apenas apoiará a avassaladora reconstrução patológica do país.

Como assinalado, os parlamentares “oposicionistas” apoiam ou fazem que não veem a legislação golpista em aprovação incessante. Os governos de esquerda do Nordeste comumente seguem obedientes aos golpistas, quando não se adiantam a eles.

Não haverá solução para a triste Pátria, cantada em cores idílicas, por Olavo Bilac, em 1904, enquanto os moradores, trabalhadores, estudantes, etc. das periferias, das favelas, das escolas públicas, das fábricas, das fazendas, dos quartéis etc., não tomarem seus destinos em suas mãos, deixando de lado os falsos profetas que falam em seu nome, mesmo os oriundos de suas filas.

A barbárie continuará se instalando entre nós se trabalhadores e populares não organizarem a defesa dos seus locais de moradia, de trabalho e de lazer das agressões, não importando de onde vierem. Onde há resistência, em geral não há abuso. Mergulharemos na barbárie sem fim se não construírem, em seus espaços sociais e geográficos, organizações, associações, partidos, etc. realmente seus, mandando cantarem em outras freguesias os políticos e lideranças profissionais.

Se as classes trabalhadoras e populares, os “eles” nessa história, não assumirem o comando de sua vidas, segundo suas necessidades, não haverá salvação para o país e igualmente, para “nós”. Nem com reza forte e com todos os orixás empurrando o andor, com a máxima boa vontade!

Mário Maestri é historiador e autor de “Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530–2019. 2 ed. ampliada”. https://clubedeautores.com.br/backstage/my_books/278203 

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