O dia de cão de Teich
- Detalhes
- Maíra Mathias e Raquel Torres, Outra Saúde
- 14/05/2020
O Ministério da Saúde tem sido objeto de barganha política durante a maior pandemia das últimas décadas. A autoridade da pasta já vinha sendo colocada à prova por Jair Bolsonaro há muito tempo até, por fim, ser escancaradamente minada essa semana. Primeiro, Nelson Teich foi avisado por jornalistas da edição do decreto que considera salões de beleza e academias como serviços essenciais no meio de uma coletiva de imprensa. Ontem, 13, o presidente voltou à carga: logo de manhã, fez uma defesa da alteração no protocolo da cloroquina – droga cuja eficácia no combate da covid-19 vem sendo questionada pela ciência. O curioso é que à medida que esses estudos vinham saindo, Bolsonaro foi deixando o assunto, antes foco principal do seu discurso sobre o coronavírus, de lado. O que suscitou o resgate? Uma discretíssima demonstração de autonomia do ministro da Saúde.
Na terça-feira (12), Teich escreveu em sua conta do Twitter que o Ministério da Saúde havia liberado o uso da cloroquina para pacientes hospitalizados, regra que foi flexibilizada pelo Conselho Federal de Medicina para “outras situações”. Em seguida, alertou que o medicamento tem efeitos colaterais, que qualquer prescrição deve ser feita com base em avaliação médica e que os pacientes precisam assinar um termo de consentimento que lista os riscos da droga.
Na manhã de ontem, Bolsonaro rebateu: "Não é o meu entendimento, que eu não sou médico. É o entendimento de muitos médicos do Brasil e outras entidades de outros países [que entendem] que a cloroquina pode e deve ser usada desde o início [do aparecimento dos sintomas], apesar de saberem que não tem uma confirmação científica da sua eficácia". Dizendo-se preocupado com o “elevado número de mortes”, o presidente mais uma vez ligou o remédio à cura da doença. Revelando que teria reunião com Teich naquela manhã, Bolsonaro disse que gostaria que o Ministério da Saúde avalizasse o uso da cloroquina para casos leves. "Todos os ministros têm que estar afinados comigo. Todos os ministros são indicações políticas minhas. Quando eu converso com os ministros, quero eficácia na ponta da linha. Neste caso, não é eu gostar ou não do ministro Teich. É o que está acontecendo. Estamos tendo centenas de mortes por dia. Se existe uma possibilidade de diminuir este número com a cloroquina, por que não usá-la?", ameaçou.
Não se sabe como foi a reunião, marcada para 11h40. Mas o dia de cão de Nelson Teich estava apenas começando. De tarde, o ministro se reuniu com os conselhos de secretários estaduais e municipais de saúde – Conass e Conasems. O assunto era o que o ex-empresário chama de "estratégia de gestão de risco"; em português corrente o manual com diretrizes para o isolamento social. Os gestores do SUS brecaram a divulgação.
Seus argumentos são bastante objetivos: o número de casos e mortes confirmadas da doença só faz crescer, logo, os esforços precisam ser inequívocos na direção do endurecimento das quarentenas. “A mensagem sobre o isolamento social deve ser clara e objetiva. Gerar dúvidas na sociedade sobre sua importância ou mesmo relativizá-la nos parece inadequado”, explicou, em nota, o presidente do Conass, Alberto Beltrame. Já os secretários municipais de saúde cobram do Ministério da Saúde celeridade na habilitação de leitos de UTI e na ampliação da oferta de testes. “Temos outras prioridades no momento que não essas”, resumiu Wilames Bezerra, presidente do Conasems.
A falta de sinergia entre o governo federal e os demais níveis de gestão do SUS provocou outra situação extremamente atípica. Oito minutos antes do início da entrevista coletiva que acontece diariamente às 17h, o Ministério da Saúde fez circular uma nota informando que o evento tinha sido cancelado. "O Ministério da Saúde aguarda a pactuação da estratégia de gestão de riscos junto a estados e municípios", diz o texto. À Folha, representantes dos estados e municípios reforçaram que a pactuação tem poucas chances de acontecer agora.
Mas isso não é tudo. Ontem, saiu no Diário Oficial a demissão de Francisco de Assis Figueiredo. Ele estava à frente da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde do Ministério. O ato – assinado pelo ministro da Casa Civil, Braga Netto – faz parte da negociação do governo com o Centrão. O posto será ocupado por um nome do Partido Liberal (PL) que, segundo o Estadão, teria desistido de indicar o novo chefe da Secretaria de Vigilância em Saúde. Isso porque a Atenção Especializada, que autoriza a habilitação de leitos de UTI, seria mais atrativa. Até agora, o custeio de 3.352 leitos de UTI exclusivos para o enfrentamento à pandemia soma R$ 484,6 milhões em recursos transferidos para estados e municípios.
Detalhe: Nelson Teich, que não teve direito a escolher seu secretário executivo, teria convidado Mauro Junqueira para ocupar a secretaria. Ele é ex-presidente do Conasems. “A negociação se encerrou quando o PL pediu o cargo”, revela o repórter Thiago Faria.
Na Folha, as repórteres Talita Fernandes e Natália Cancian apuraram que o estilo “enfraquecido e perdido” de Teich agrada Bolsonaro, que, por enquanto, não pensa em apeá-lo do cargo. Aos gestores que precisam de coordenação no enfrentamento da pandemia, porém, o enfraquecimento do Ministério da Saúde, coroado com a escolha de um nome sob medida aos caprichos presidenciais, toda a situação é preocupante. “O ministro não sabia dar informações sobre ações que seriam básicas para a gestão da crise, como a compra de equipamentos de assistência”, relatam fontes sobre as primeiras reuniões de Teich. “Para um secretário estadual de saúde ouvido pela Folha, o ministro tem atitudes próximas a de um consultor, que ouve e diz que analisará demandas para solucionar a crise”, diz a reportagem.
“É melancólica a situação de Nelson Teich. Antes de completar um mês em Brasília, o oncologista já foi fritado pelo chefe. Agora ele parece se arrastar no cargo como um ex-ministro da Saúde em atividade. (...) Isolado, Teich pode ser forçado a escolher entre duas opções ingratas: agarrar-se ao timão como um comandante fantasma ou abandonar o navio durante o naufrágio”, analisa, por sua vez, Bernardo Mello Franco n´O Globo.
Deu negativo
Os exames para o novo coronavírus feitos por Jair Bolsonaro deram negativo. Ontem, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, garantiu sua divulgação. Os testes foram realizados em 12, 17 e 19 de março; todos pelo método PCR, que busca o material genético do vírus e é considerado o mais preciso. Bolsonaro usou os codinomes Airton Guedes e Rafael Augusto Alves da Costa Ferraz para os dois exames feitos no laboratório Sabin do Hospital das Forças Armadas. Nesses, consta também data de nascimento, CPF e RG do presidente. No terceiro exame, enviado à Fiocruz, Bolsonaro é o “paciente 05”. Só que neste não consta CPF, RG, data de nascimento ou qualquer outra informação que vincule o laudo a ele – o que é proibido pela Anvisa.
Mais pressão pela frente
O ministro da Economia quer que todas as políticas emergenciais para o combate à pandemia terminem em junho. Preocupado unicamente com o aspecto fiscal, seu limite parece ser a cifra de R$ 600 bilhões de déficit no orçamento. Olhando para os números, Paulo Guedes quer um programa de “retomada controlada” que parta de protocolos feitos pelo Ministério da Saúde para fábricas e comércios e testagem em massa da população.
Ontem, a Secretaria de Política Econômica da pasta divulgou que cada semana de isolamento custou R$ 20 bilhões à economia. A projeção é que o PIB brasileiro feche 2020 com queda de 4,7%. A previsão anterior era irreal, de alta de 0,02%. O documento alerta que as projeções podem piorar caso na hipótese bastante realista de o isolamento social se prolongar para além de 31 de maio. "Caso o isolamento seja estendido os resultados seriam muito piores, e quanto maior a extensão do isolamento mais lenta deve ser a recuperação e pior a trajetória de longo-prazo, diante do aumento do impacto no endividamento da economia, e da falência de empresas e destruição de empregos”, diz a nota da Secretaria.
A Folha teve acesso a dados internos do Ministério que mostram que empresas de pequeno porte, que respondem por mais de 80% dos postos formais de trabalho, registram um índice de falência sem precedentes. Acontece que o próprio governo admite internamente que demorou em estruturar mecanismos de garantias que dariam a essas empresas acesso a crédito.
Até agora, a segunda parcela do auxílio emergencial de R$ 600 não foi paga à população. Os depósitos deveriam ter sido feitos a partir de 27 de abril. O governo agora coloca a culpa na falta de cédulas. O atraso seria uma forma de garantir o funcionamento normal do sistema bancário até que R$ 9 bilhões sejam impressos pela Casa da Moeda. A previsão é que o dinheiro só termine de ser impresso no fim de maio...
Além do atraso, milhões aguardam o fim da análise dos pedidos para conseguirem receber o benefício. As reclamações sobre o sistema da Caixa se acumulam. Mas para Jair Bolsonaro, o governo não cometeu nenhum erro no pagamento do auxílio e a culpa é... da população. “Teve muita gente que deu golpe, teve gente que usou protocolo de filho duas vezes, dois irmãos, um montão de coisa. Tem de ver caso a caso. Mas ninguém fala que 40 milhões receberam. Tem erro também, erro do próprio interessado. Não existe falha nossa", afirmou ontem. Sobre o isolamento, voltou a deixar bem clara sua visão de liderança: “O povo tem de voltar a trabalhar. Quem não quiser trabalhar, que fique em casa, porra. Ponto final”.
A carne mais barata
Os frigoríficos do Rio Grande do Sul já registraram 250 casos de trabalhadores diagnosticados com o novo coronavírus. As infecções se espalham por pelo menos 12 plantas industriais. No total, 20 mil profissionais estão expostos à covid-19 nessa atividade que foi considerada essencial e, portanto, não parou. Os números foram divulgados pela secretaria estadual de Saúde do RS. Nas últimas duas semanas, quatro fábricas tiveram de interromper total ou parcialmente sua produção devido ao contágio.
Há histórias que simbolizam muito bem a queda de braço entre empresas e autoridades. O Ministério Público do Trabalho (MPT) fechou no dia 24 de abril um abatedouro em Passo Fundo – considerado foco de disseminação do coronavírus na cidade de 200 mil habitantes. Dias depois, em 7 de maio, a Prefeitura acompanhou a decisão e interditou a unidade por 15 dias. No meio tempo, houve guerra de liminares. Até hoje, o MPT afirma que a JBS não apresentou informações sobre adequações na fábrica para que a segurança dos trabalhadores seja assegurada. Mas mesmo assim, a Prefeitura voltou atrás e resolveu autorizar a reabertura da fábrica. A retomada ainda depende do aval da Justiça do Trabalho.
Aprovado
O Senado aprovou ontem por unanimidade a medida provisória que destina os recursos do Fundo de Reservas Monetárias para o combate ao coronavírus. São R$ 8 bilhões. A proposta precisa ser sancionada pelo presidente. Na MP original, a ideia da equipe econômica era usar o dinheiro para pagamento da dívida pública. Aguardemos para ver se Paulo Guedes vai reclamar.
Perto dos 200 mil
O Brasil registrou 749 novas mortes por covid-19 entre terça e quarta-feira. Ao todo, são 13.149 óbitos confirmados pela doença. O país também registrou 11.385 novos casos e mesmo com a subnotificação está muito, mas muito perto da marca das 200 mil infecções. Tínhamos até terça 188.974 – o que nos rendeu mais um avanço no ranking mundial da doença. Ocupamos agora a sexta posição em casos, ultrapassando a França e seus 178.184.
Ontem, uma projeção da Universidade de Washington foi notícia por aqui. O Instituto de Métrica da instituição é referência para a Casa Branca no monitoramento dos cenários da covid. Segundo os pesquisadores, 88.305 pessoas podem morrer no Brasil até 4 de agosto. Trata-se do cenário médio. No pior, esse número chegaria a 193.786 mortes. No melhor, seriam 30.302.
Seguimos sem saber
Diante da falta de diagnósticos até para quem já morreu, pesquisadores e jornalistas estão se agarrando às informações de cartórios para tentar estimar com mais confiança o número real de óbitos por covid-19 no Brasil. Fazem isso a partir do Portal de Transparência do Registro Civil, mantido pela Arpen, a associação de cartórios. Nele, teoricamente é possível verificar as mortes de cada localidade em 2020, comparar esse número com o do mesmo período e concluir que, provavelmente, as mortes "extras" são decorrentes do novo coronavírus. Aqui mesmo, na news, já mencionamos algumas reportagens que põem foco nesse aumento dos óbitos.
Mas a Folha aponta um grave problema: a plataforma tem dados desatualizados, inclusive em anos anteriores, o que inviabiliza a comparação. Os repórteres Leonardo Diegues, Flávia Faria e Fábio Takahashi analisaram as mortes nas 518 cidades da base. Viram que, mesmo em janeiro e fevereiro (quando, embora haja evidências de que o vírus circulasse pelo país, a doença ainda não tinha se espalhado), quase metade dos municípios tiveram alta de mais de 20% no volume de óbitos em relação a 2019. É um percentual alto demais, o que indica que os números não são confiáveis. Das capitais, só três tiveram pouca variação em janeiro e fevereiro, mostrando que seus dados devem estar mais atualizados: Rio, São Paulo e Goiânia. Nas duas primeiras, houve aumento de mais de 10% no número de mortes entre março e abril, enquanto Goiânia teve queda (provavelmente porque os dados desses meses ainda não foram inseridos).
O problema da subnotificação nos casos de covid-19 é quase geral, e os critérios usados para a testagem em cada país tornam muito difícil comparar um com o outro. As mortes são um dado menos sujeito a erro, mas ainda assim há problemas. A maior parte dos países só registra mortes de quem testou positivo para a doença e apenas de quem morre no hospital. No outro extremo está a Bélgica, que 'peca' pelo excesso, dando como mortes oficiais mesmo aquelas em que não há confirmação da covid-19 e as que acontecem em casas de repouso. Já vimos a China atualizar seu número de óbitos depois que a covid-19 (ou pelo menos sua primeira onda) passou. O governo italiano já mostrou que seu excedente de mortes em relação aos anos anteriores foi muito maior do que os óbitos registrados pela doença. Esta semana, também partindo do excedente de mortes, a BBC explica que pode haver no Reino Unido nada menos que o dobro dos óbitos divulgados oficialmente pelo governo. Na Rússia, o número pode ser até cinco vezes maior.
Mortes em casa
As mortes em casa quase dobraram nas oito capitais brasileiras que têm as maiores taxas de ocupação de leitos por conta do coronavírus. Nessas cidades, que incluem Rio de Janeiro e São Paulo, foram registrados 3.816 casos do tipo em abril deste ano, contra 2.119 no mesmo mês do ano passado. Não dá para dizer exatamente quais desses óbitos são decorrentes da covid-19, por conta da já conhecida falta de testes. Também não se sabe quantas aconteceram devido à sobrecarga dos serviços de saúde. Mas, em todo caso, especialistas ouvidos pelo UOL não têm dúvidas de que a alta tem a ver com a pandemia.
Certamente há pacientes com covid-19 que morrem antes mesmo de buscar atendimento, até porque às vezes a doença evolui de forma silenciosa; muitas pessoas estão adiando a busca por serviços de saúde por medo de contaminação e só procuram ajuda quando já se sentem muito mal. Isso não é verdade apenas para os pacientes com covid-19, mas também para aqueles com outros problemas graves. Um dos gargalos está na atenção primária, segundo a sanitarista Bernadete Perez Coelho: se pacientes com sintomas leves fossem monitorados adequadamente (medindo o nível de oxigênio no sangue, por exemplo), os profissionais de saúde poderiam identificar o momento certo de encaminhá-los à UTI. Aí, é claro, seria também preciso ter ambulâncias e leitos disponíveis.
Um futuro bem distante
Descobrir que há muitos casos não notificados não é necessariamente uma má notícia. Para os países que querem reabrir suas economias, seria na realidade a melhor notícia possível: um grande número de infectados, com uma quantidade estável de mortes, significa mais gente potencialmente imunizada contra o coronavírus (com todos os poréns que essa afirmação carrega). Em alguns lugares os testes de anticorpos (também com todos os poréns da variação na sua confiabilidade) estão sendo usados em massa, por amostragem, justamente para fazer essa estimativa e ver em que pé eles estão. Se um percentual muito alto da população já foi infectada, o vírus tem menos chance de encontrar novas vítimas, e é mais seguro voltar ao normal.
Mas os números não são animadores. A França divulgou recentemente que, de acordo com esse tipo de levantamento, menos de 10% da população foi infectada. Agora foi a vez do governo espanhol, que publicou um estudo afirmando que cerca de 5% da população foi contaminada. Seriam 2,3 milhões de pessoas, enquanto oficialmente o país tem 290 mil casos registrados. O percentual é muito baixo e, mesmo em Madri e outras cidades centrais mais afetadas pela pandemia, não passa muito dos 10%. "Estamos longe da imunização de grupo. Não sabemos o que vai acontecer, mas poderia haver um novo pico da infecção. Por isso, os critérios de cautela e de tomada de decisões com a maior informação disponível são os mais sensatos", disse o ministro da Saúde, Salvador Illa.
Com apenas 5% das pessoas infectadas, cerca de 27 mil pessoas morreram no país. Imaginem se alguém sugerisse deixar o coronavírus correr solto até contaminar 70% da população...
Se nos países que começaram a fazer esses cálculos o percentual de pessoas afetadas é tão pequeno, a única certeza é a de que ainda tem muita gente passível de se infectar. Embora o número de casos no mundo esteja crescendo num ritmo mais lento, a pandemia ainda pode vir a piorar, alertou ontem a cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde, Soumya Swaminathan. Em uma videoconferência promovida pelo Financial Times, ela disse que pode levar quatro ou cinco anos até que o coronavírus esteja sob controle – e notem que ela não disse "eliminado". Isso vai depender das mutações que ele possa sofrer, da eficácia das medidas de isolamento, e, é claro, da descoberta de uma vacina viável.
Mesmo a vacina, que é a grande esperança, pode não dar resultados perfeitos. "Desculpem se pareço cínico, mas vejam quantas doenças poderíamos ter eliminado com vacinas perfeitamente eficazes, como a do sarampo, e não o fizemos. Podemos até descobrir, produzir e entregar, mas as pessoas precisam também tomar as vacinas”, completou Michael Ryan, diretor-executivo da OMS. De acordo com ele, o mais provável é que esse coronavírus se torne endêmico e que precisemos aprender a conviver com ele, como ocorre hoje com o HIV.
Até o momento, existem a grosso modo duas maneiras para conviver com ele depois que a primeira onda passar. Uma é esperar cada nova onda bater na nossa cara e enfrentá-la como o mundo fez agora de forma meio (ou muito) descontrolada. Ou seja, precisando decretar medidas duras e abrangentes de isolamento quando são identificados surtos, o que quase sempre esconde um monte de casos não registrados. Outra, que requer investimento e planejamento, mas, no fim das contas, afeta menos a vida das pessoas e a economia, é começar a ter testes em massa o tempo todo, jamais se restringindo a pessoas com sintomas leves ou graves, mas sim englobando assintomáticos. E testar massivamente não adianta nada se o esforço se encerrar nos próprios testes: quando são encontradas infecções ativas (no caso dos testes PCR), é preciso isolar os contaminados até o fim do ciclo do vírus, e necessariamente testar seus contatos também. Dessa forma, novos surtos são localizados desde o princípio com mais facilidade, e podem ser adotadas apenas medidas mais pontuais e localizadas de isolamento. Essas medidas, por sua vez, precisam ser tomadas na hora certa e com segurança.
Como dissemos ontem, a cidade chinesa de Wuhan anunciou que vai fazer uma rodada de testes em todos os seus habitantes depois que seis novos casos foram identificados. No resto do país a testagem não é obrigatória, mas incentivada. Alguns governos locais custeiam parte das despesas, e várias empresas bancam o valor total para seus empregados. O país está com capacidade para produzir cinco milhões de kits de testes por dia.
Efeitos nas crianças
Um estudo publicado ontem na revista Lancet fornece ainda mais evidências de que uma inflamação rara, mas grave e potencialmente mortal identificada em crianças pode estar ligada ao novo coronavírus. A chamada síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica foi relatada em cerca de cem crianças no estado de Nova Iorque, e três delas morreram. Também houve casos em outros locais dos EUA, e pelo menos 50 na Europa. Segundo o New York Times, a nova síndrome parece ser uma reação tardia causada pela resposta imunológica das crianças à infecção.
Em paralelo, uma pesquisa chinesa identificou que, nas crianças diagnosticadas com covid-19, os primeiros sintomas podem se gastrointestinais, como diarreia, vômito, dor abdominal e falta de apetite.
Saúde mental
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, alertou ontem para o risco de uma crise de saúde mental no mundo com a pandemia, por conta do desemprego, isolamento, mortes e ansiedade. Ele lembrou que, depois da crise financeira de 2008, uma das consequências foi um recorde de "mortes de desespero" nos EUA, cujas principais causas eram suicídio e uso de drogas. A recomendação é que ações de saúde mental sejam consideradas componentes essenciais nas respostas nacionais ao coronavírus.
Giro nos estados
Com 51 mil registros de covid-19, São Paulo segue sendo o epicentro da pandemia no Brasil. Ontem, foi superada a marca dos quatro mil óbitos, mas a taxa de isolamento social ficou em apenas 47% – aliás, tem sido difícil ficar acima disso. Uma pesquisa do Instituto Butantan aponta que o mês de maio pode fechar com algo entre 9 e 11 mil mortes no estado, e isso considerando uma taxa de isolamento de 55%. Há um dado importante nos óbitos de São Paulo: em abril, elas cresceram dez vezes mais entre crianças, jovens e adultos, enquanto entre maiores de 60 anos esse aumento foi de seis vezes.
A capital anunciou a contratação de 500 leitos no setor privado até o fim do mês. Vai ser um ótimo negócio para os hospitais particulares, já que cada leito vai sair RS 500 mais caro do que o valor da tabela SUS.
Falando nisso, a Paraíba proibiu que hospitais públicos e privados recusem atendimento a pacientes com o novo coronavírus. Na falta de vagas no SUS, a secretaria de saúde vai poder encaminhar pacientes às unidades particulares, conveniadas ou não ao Sistema Único, e elas vão ser obrigadas a fazer o atendimento. Os custos serão pagos pelo estado.
O Ceará passou o Rio de Janeiro e se tornou o segundo estado com mais casos registrados de covid-19: são 19,1 mil, número só menor do que o de São Paulo. Levando em conta o tamanho da população e calculando a taxa de infectados por 100 mil habitantes, o pior estado é o Amazonas (387,6), seguido pelo Amapá (355,3). O Ceará vem em terceiro (209,8).
O governo do Piauí decretou uma 'lei seca' e, a partir da sexta-feira, a venda de bebidas alcoólicas vai ser considerada crime. Também há outras medidas, como suspensão de transporte intermunicipal, paralisação de obras e construções civis e quarentena obrigatória para quem chegar ao Piauí vindo de outro estado.
E terminou a terceira rodada da pesquisa coordenada pela Universidade Federal de Pelotas para medir a prevalência do novo coronavírus no Rio Grande do Sul. O levantamento é feito por amostragem, testando-se 4,5 mil pessoas (com e sem sintomas) em cada rodada com os testes sorológicos, que medem anticorpos. Nesta ultima, chegou-se à conclusão de que apenas 0,22% da população gaúcha foi infectada. Seriam pelo menos 24,8 mil casos (contra os 2,8 mil registrados oficialmente). Com isso, a taxa de mortalidade no estado cai para perto de 0,4%.
Maíra Mathias e Raquel Torres são jornalistas do Portal Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.