Correio da Cidadania

“É evidente a relação entre o avanço do vírus nas aldeias guarani e as grandes empresas”

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Mortes por covid-19 entre indígenas precisam virar assunto para a ...
O Brasil atingiu a marca de uma morte por minuto por coronavírus e deve terminar o mês com 60 mil óbitos decorrentes da doença, ao passo que o Ministério da Saúde segue acéfalo. Entre os indígenas, alvos do racismo explícito do governo federal, a pandemia avança e já são cerca de 100 guaranis infectados nas aldeias do Mato Grosso do Sul, ao que tudo indica a partir dos frigoríficos da JBS. É sobre todo o contexto local que o Correio da Cidadania entrevistou Gabriela Guillen, professora de Ciências Sociais da Universidade Federal da Grande Dourados, que acompanha de perto a situação dos indígenas.

“É importante lembrar que a JBS vem sendo o epicentro de agudos surtos em suas unidades, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Os brotes no Brasil se concentram em 6 frigoríficos de Santa Catarina e 19 de Rio Grande do Sul, dos quais o caso mais grave foi na unidade de Passo Fundo. O manejo das informações por parte da empresa não foi nada transparente. Não só casos positivos foram omitidos como também há indícios nos prontuários dos trabalhadores de que mesmo apresentando sintomas da Covid-19 foram medicados pelo ambulatório da empresa e enviados novamente à linha de produção”, explicou.

Na entrevistamos, Guillen analisa o avanço da pandemia em Dourados, região com grande número de aldeias, o que levou os indígenas a fazerem barreiras sanitárias por conta própria. Ela também conta como a propaganda negacionista e as pressões empresariais contribuem para a propagação do coronavírus.

“Em começos de abril decretou a reabertura do comércio e em maio autorizou o funcionamento do shopping e das igrejas. Os reflexos na aldeia foram diretos: assim como na cidade, as pessoas não deixaram de circular, os cultos das igrejas evangélicas, na sua maioria neopentecostais, continuaram funcionando. Bares, pequenos comércios e jogos de futebol não pararam. (...) Isto desembocou numa situação explosiva na aldeia com o aumento exponencial dos contágios, passando do primeiro caso confirmado para 30 em apenas 5 dias. Nove dias depois temos mais do dobro de infectados: 72”.

Gabriela Guillen, também colaboradora da Escola Nacional Florestan Fernandes, considera inequívoca a responsabilidade da multinacional na disseminação do vírus, afinal, boa parte dos indígenas é empregada em sua linha de produção. “A empresa continua funcionado com aglomerações de 1500 trabalhadores a cada troca de turno na entrada”.

Diante do flagrante anti-indigenismo dos governos de todas as esferas e das limitações do sistema de saúde, Guillen destaca a auto-organização dos guarani no enfrentamento à pandemia e as limitações do braço indígena da saúde pública. “Mesmo havendo esta estrutura específica para atender as necessidades dos povos tradicionais, têm sido constantes os surtos epidêmicos de doenças que em outras condições seriam controláveis, como malária, tuberculose, desnutrição”.

A entrevista completa com Gabriela Guillen pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: A Carta Emergencial dos Conselhos Guarani e Kaiowá fala do avanço da coronavirus nos territórios habitados pelos indígenas em Dourados e pede socorro. O que você pode contar da pandemia nesta comunidade indígena que é a mais populosa do Brasil?

Gabriela Guillen: Um primeiro fato que precisa ser apontado é que a situação da aldeia Bororó/Jaguapirú de Dourados antes da pandemia já era de crise humanitária por conta dos crônicos problemas sociais que atingem toda essa população. Em uma área de 3.475 hectares vivem aproximadamente 18 mil indígenas das etnias Guarani Kaiowá e Terena, um espaço muito reduzido que dificulta o seu modo de vida tradicional em que se planta para a abundância e requer extensas áreas de floresta. A política de remoções forçadas que o Estado brasileiro aplicou desde começos do século 20 para colonizar a região e atender os diferentes ciclos de expansão capitalista - erva mate, gado, soja e cana-de-açúcar - impediu a prática desse modo de vida pela via do confinamento nas reservas e da destruição meio-ambiental dos seus territórios ancestrais.

No período recente, a aposta dos sucessivos governos neoliberais tanto à direita quanto à esquerda, no desenvolvimento econômico baseado no monocultivo de soja e de cana-de-açúcar para exportação, só piorou as condições de vida dos indígenas na região. Sobretudo a partir de 2006 quando uma política do Governo Federal incentivou com recursos públicos do BNDES e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) a corrida de fazendeiros locais para as terras com o intuito de atender as demandas do mercado internacional de cana-de-açúcar para produção de etanol. Os territórios foram brutalmente integrados às cadeias produtivas sucroalcooleiras globais, comandadas por grandes transnacionais como Bunge, Cargill e Raizen, que são quem de fato controla o setor e não cede um centímetro de terra para os Guarani e Kaiowá.

Isto diminuiu o ritmo das demarcações previstas na Constituição de 1988, justamente em um momento em que os indígenas se deslocavam das aldeias para retomar suas terras ancestrais e praticar seu modo de vida plantando o sustento próprio para não ter que depender de políticas assistencialistas ou inclusive de salário. Grande parte dos indígenas que atualmente vive na aldeia sobrevive de cestas básicas dos órgãos públicos ou perambula na cidade em busca de comida. Outros se tornam trabalhadores assalariados e acabam em empregos muito mal remunerados e precários, como nos frigoríficos e usinas do município.

A falta de território para viver em abundância, como faziam tradicionalmente antes da colonização, gerou um enorme déficit alimentar sobretudo na população infantil que padece altos índices de desnutrição. Este é um problema grave no enfrentamento da pandemia se lembramos que uma imunidade fortalecida é a base para enfrentar o vírus e isso só é possível com uma alimentação saudável e sem agrotóxicos.

À aglomeração pelo espaço reduzido se soma a falta de infraestrutura para acesso à água potável em alguns setores da aldeia. Os índices de doenças como dengue e tuberculose são altos, bem como o alcoolismo e os suicídios entre os jovens. A lista de problemas é longa e é característica de populações em extrema vulnerabilidade. O cenário para que o vírus se espalhe rapidamente dentro da aldeia está instalado.

Correio da Cidadania: É certo que o vírus chegou na aldeia a partir de uma indígena que trabalha em frigorífico da JBS? A empresa presta algum apoio à comunidade?

Gabriela Guillen: No dia 13 de maio se confirmou o primeiro caso da Covid-19 na aldeia Bororó: trata-se de uma mulher indígena de 35 anos trabalhadora do frigorífico JBS Foods Seara, unidade de Dourados. Em 15 de maio o número de casos pulou para 10 indígenas, todos trabalhadores da mesma unidade. A 21 de maio já havia pelo menos 36 funcionários, entre indígenas e não-indígenas que testaram positivo. Pequenas cidades em torno de Dourados como Culturama, Gloria de Dourados, Fátima do Sul, Vicentina, Douradina e Rio Brilhante, confirmaram seus primeiros casos a partir dos funcionários contaminados dentro da JBS. Não resta dúvida que a fonte de disseminação do vírus é a empresa e que houve negligencia.

É importante lembrar que a JBS vem sendo o epicentro de agudos surtos em suas unidades, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Os brotes no Brasil se concentram em 6 frigoríficos de Santa Catarina e 19 de Rio Grande do Sul, dos quais o caso mais grave foi na unidade de Passo Fundo. A contaminação local saiu de controle e o Ministério Público do Trabalho teve que interditar a planta por 15 dias. O manejo das informações por parte da empresa não foi nada transparente. Não só casos positivos foram omitidos como também há indícios nos prontuários dos trabalhadores de que mesmo apresentando sintomas da Covid-19 foram medicados pelo ambulatório da empresa e enviados novamente à linha de produção.

A partir do acontecido em Passo Fundo, já em abril a JBS comunicou a implementação de novos protocolos e medidas nos seus demais frigoríficos em todo o país. Não parece ser o caso quando constatamos um novo brote na unidade de Dourados. Trabalhadores continuaram a circular nos ônibus da empresa sem o distanciamento adequado e ao menos 43 indígenas tiveram contato com o primeiro caso durante o deslocamento até o trabalho e dentro da JBS. Há 22 casos confirmados de trabalhadores da empresa no município de Douradina, entre eles 9 indígenas da aldeia Lagoa Rica.

A mídia hegemônica local divulgou muito pouco sobre o que aconteceu dentro da planta de Dourados e se limitou a reproduzir as notas da empresa onde tudo aparenta estar sob controle e de acordo com os protocolos da OMS. Jornais noticiaram que a empresa está dando apoio à mulher indígena infectada e sua família e fez algumas doações de cestas básicas e de itens de higienização e equipamentos de proteção individual para a Secretaria Municipal da Saúde. Segundo lideranças da aldeia Bororó não houve qualquer apoio aos 10 indígenas contaminados por parte da empresa que aparentemente os afastou sem prejuízo financeiro. Mesmo assim, é inadmissível que uma empresa transnacional que teve um lucro líquido de R$6,06 bilhões em 2019 e que durante muitos anos recebeu recurso público do BNDES faça insignificantes doações e não seja responsabilizada pela disseminação do vírus.

A tudo isso há que acrescentar que já há dois casos confirmados na aldeia Tey´i Kue no município de Caarapó, próximo de Dourados. Trata-se de trabalhadores indígenas cortadores de cana-de-açúcar vinculados à transnacional Raízen, uma das maiores fabricantes de etanol do mundo. Os indígenas revelaram que antes do aparecimento dos dois casos, há duas semanas e sem nenhuma explicação, depois de haver cumprido 45 dos 70 dias de trabalho, a empresa rescindiu seus contratos e estão com muita dificuldade de acessar o mísero pagamento que por lei lhes corresponde.

No Mato Grosso do Sul é evidente que há uma relação estreita entre a propagação do vírus nas comunidades indígenas e as grandes empresas transnacionais. Não por acaso são estas mesmas empresas que os expulsam de suas terras ancestrais e os transformam em mão-de-obra barata para fins de acumulação de capital. Pesquisas recentes mostram uma forte conexão entre a agroindústria em larga escala, depredadora do meio ambiente e destruidora dos modos de vida tradicionais que preservam as florestas, e a origem de pandemias com cepas virulentas e de alta mutabilidade como a que estamos vivendo neste momento.

Correio da Cidadania: Como tem sido a atuação do poder público no auxílio aos indígenas?

Gabriela Guillen: A medida mais importante a ser mantida pela prefeitura de Dourados era o fechamento do comércio e outros locais para garantir o distanciamento social. Passadas duas semanas da clausura, a prefeita recuou perante a pressão das carreatas organizadas pelas associações comerciais. Em começos de abril decretou a reabertura do comércio e em maio autorizou o funcionamento do shopping e das igrejas. Os reflexos na aldeia foram diretos: assim como na cidade, as pessoas não deixaram de circular, os cultos das igrejas evangélicas, na sua maioria neopentecostais, continuaram funcionando. Bares, pequenos comércios e jogos de futebol não pararam.

O negacionismo da doença propalado pelo governo federal e pelas igrejas se somou à negligência da JBS que continuou em funcionamento por se tratar de serviço essencial. Isto desembocou numa situação explosiva na aldeia com o aumento exponencial dos contágios passando do primeiro caso confirmado para 30 em apenas 5 dias. Nove dias depois temos mais do dobro de infectados: 72 casos de indígenas contagiados no total.

O único hospital da aldeia, pertencente à Missão Evangélica Caiuá, não tem infraestrutura suficiente e apenas 16 leitos sem respiradores mecânicos foram arranjados para o atendimento dos indígenas. Casas de apoio foram preparadas, mas tampouco contam com equipamento nem estrutura adequada; aos profissionais da saúde falta material higiênico e EPIs. Casos graves da Covid-19 terão que ser encaminhados aos hospitais da cidade. Quando interpelado por jornalistas pela falta de material, equipamentos e estrutura, não houve qualquer resposta do Ministério da Saúde.

Em nota recente, o Conselho Indigenista Missionário - Cimi regional Mato Grosso do Sul - responsabiliza os órgãos de Saúde Estadual e Federal pelo aumento exponencial dos casos entre indígenas e denuncia a demora nas ações, a não aplicação de planos de contingência, a falta de recursos humanos e financeiros, a desconsideração de fatos como as altas taxas de contágio e transmissão do vírus ao interior da JBS. O Cimi responsabiliza a empresa e aponta para o agravante de não haverem sido realizadas a tempo as mudanças radicais necessárias nos protocolos de contenção.

As informações coletadas indicavam desde cedo a gravidade da situação e a necessidade de isolar o primeiro caso fora da aldeia. A indígena seguiu protocolo comum e foi orientada a permanecer na sua casa. Os órgãos de saúde pública tiveram um período de 5 dias entre as suspeitas do primeiro caso e os subsequentes 10 casos confirmados para operar uma mudança na estratégia de contenção da transmissão comunitária e não o fizeram.

Um alojamento para retiros espirituais cedido pela Diocese de Dourados foi improvisado para deslocar os Guarani e Kaiowá infectados para fora da aldeia. O fornecimento de parte do material higiênico, EPIs para os profissionais de saúde e cobertores, travesseiros e lençóis para o novo local tem dependido de doações por parte da população e redes de apoiadores. Em um estado cujo PIB atingiu em 2019 a marca dos R$109,6 bilhões, é simplesmente escandaloso que os indígenas tenham que depender da caridade cristã e das esmolas das empresas.

Como se tudo isso não bastasse, a JBS não foi responsabilizada pelos 57 trabalhadores que se contaminaram dentro da unidade e nem sequer foi cogitada a interdição pelo Ministério Público do Trabalho, como aconteceu na unidade de Passo Fundo, e outros 8 frigoríficos aqui no estado do Mato Grosso do Sul. A empresa continua funcionado com aglomerações de 1500 trabalhadores a cada troca de turno na entrada. O procurador recomendou a redução da jornada, mas a interdição não está no horizonte porque que de acordo com ele se trata de um serviço essencial e contratos com clientes têm de ser cumpridos. Negou que a unidade de Dourados fosse o epicentro da disseminação viral e elogiou as medidas de biossegurança da empresa que apenas 17 dias após as suspeitas do primeiro caso, resolveu testar todos os seus funcionários.

Todos estes fatos descortinam os reflexos que a política genocida do Governo Federal tem sobre os órgãos de saúde estadual e municipal na demora em conter o epicentro dentro da aldeia. Não podemos falar apenas de incompetência, falta de recursos ou improvisação quando o que vemos desde o primeiro dia da pandemia é a falta absoluta de preocupação deliberada com a vida da população e ainda mais com a dos indígenas.

Correio da Cidadania: Como é a estrutura de saúde indígena na região, mesmo antes da pandemia?

Gabriela Guillen: A saúde dos povos originários conta com uma Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que coordena a atenção primaria em 34 distritos sanitários no Brasil, os chamados DSEI (Distritos Sanitários Especiais Indígenas). Este órgão melhorou e ampliou o acesso dos indígenas à saúde levando em conta suas especificidades culturais e territoriais.

No entanto, da mesma forma que o SUS, a Sesai já enfrentava uma série de problemas e limitações antes do começo da pandemia: falta de recursos financeiros e materiais, escassez de pessoal e profissionais da saúde, salários atrasados etc. Mesmo havendo esta estrutura específica para atender as necessidades dos povos tradicionais, têm sido constantes os surtos epidêmicos de doenças que em outras condições seriam controláveis, como malária, tuberculose, desnutrição. Isto se deve ao caráter de extrema vulnerabilidade social que os acomete desde a colonização e potencializa os impactos da nova pandemia.

Em meados do ano passado o governo Bolsonaro decretou mudanças na estrutura do Ministério de Saúde que afetaram a Sesai. O plano inicial era acabar com o órgão, mas o que houve foi a eliminação de cargos e a reestruturação do Departamento de Gestão da Saúde Indígena que tinha autonomia para executar diretamente o orçamento para adquirir insumos e coordenar as unidades de atendimento primário dentro das aldeias. Uma vez extinto o departamento acaba a gestão e o caráter participativo que permitia certo controle social exercido pelos indígenas e o respeito a suas práticas tradicionais de saúde.

Os indígenas não demoraram em se mobilizar nacionalmente realizando marchas, ocupações e bloqueios de rodovia para protestar contra o desmonte da Sesai, denunciando o que seria o começo da municipalização da saúde indígena como parte de um plano integracionista do governo Bolsonaro que visa a desindianização do Brasil.

Quando eclode a pandemia, sob muita pressão das organizações indígenas e mais de um mês depois da detecção do primeiro caso da Covid-19 no Brasil, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apresentou um plano de contingência para os povos tradicionais onde se comprometia a investir R$4,7 bilhões em ações de prevenção e atendimento à saúde, transferência de renda, cestas básicas e material educativo. Diversas entidades de pesquisadores ligadas aos indígenas tem denunciado o caráter genérico do plano que parece não ter saído do papel. Há notícias de quase todas as regiões do país, e isso se confirma aqui em Dourados, que os equipamentos de proteção individual e os testes rápidos não têm chegado em número suficiente. Em muitos casos, por falta de proteção, são os próprios médicos e agentes de saúde da Sesai que estão se contaminando e acabam disseminado o vírus nas aldeias.

A testagem massiva dos agentes de saúde que estão na linha de frente é crucial para identificar os profissionais assintomáticos e assim evitar que circulem pelas aldeias caso tenham sido contaminados. Além disso, a falta de kits de testes rápidos para o novo coronavírus gera o problema do alto índice de subnotificação de casos entre os indígenas, o que dificulta o contingenciamento da doença. Com a pandemia os impactos da reestruturação da Sesai se aceleraram, ficando visível sua precarização. Se já não dava conta de propiciar um atendimento integral, hoje com o descaso e o desmonte do atual governo, tende a colapsar.

Correio da Cidadania: Acredita ser possível esperar qualquer atuação positiva do governo federal diante do discurso oficial que este faz a respeito dos povos indígenas?

Gabriela Guillen: Durante a campanha eleitoral Bolsonaro sinalizou o alinhamento total com o agronegócio, madeireiros, pecuaristas e mineradoras se posicionando não só contra a demarcação de terra, mas a favor da revisão de terras já homologadas. De lá para cá, não houve nenhuma demarcação e seu discurso de ódio incentivou os ataques de fazendeiros e seus bandos de seguranças privados contra os indígenas. O presidente nem sequer havia tomado posse quando lideranças aqui em Dourados começaram a receber ameaças de morte por parte de grupos protofascistas.

Ao longo de 2019 se intensificou a violência nas aldeias e retomadas em todo o cone sul do estado: queimas de casas de reza, espancamentos de anciãs rezadoras por homens indígenas adeptos a igrejas neopentecostais, destruição de barracos e ataques a famílias com armas de fogo etc. Em um dos ataques nas margens da aldeia um adolescente indígena foi atingido por balas de borracha e em seguida foi jogado em uma fogueira e queimado vivo pelos pistoleiros. O jovem foi internado no hospital, mas não resistiu e veio a óbito.

Simultâneo ao incentivo de garimpeiros, grileiros e madeireiros por parte do governo vieram os desmontes de órgãos e de políticas públicas específicas para os indígenas nas áreas da saúde, educação e meio ambiente. Medidas provisórias e pareceres que visam suprimir os direitos fundamentais dos povos originários foram impulsionadas, em destaque a MP 910/19 que legaliza a grilagem nos territórios de comunidades tradicionais e o parecer 001/17 da Advocacia Geral da União que inviabiliza e revê demarcações com base no chamado "marco temporal".

Em janeiro de 2020 continuaram as investidas de fazendeiros e empreendedores imobiliários contra 180 famílias de retomadas que buscavam expandir os limites da superpovoada aldeia. Segundo nota do Cimi, elas foram alvo de ataques não apenas de seguranças privados como também do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) e da polícia que dispararam contra os acampamentos e destruíram barracos e pertences com um trator blindado. Artefatos explosivos foram espalhados e um deles detonou na mão de um adolescente decepando seus dedos.

Até o momento ninguém foi responsabilizado por tamanhas atrocidades. Durante a pandemia os ataques contra as comunidades não pararam e as manifestações de ódio e racismo aumentaram muito nas redes sociais. Quando vão para a cidade em busca de alimentos, os Guarani e Kaiowá sofrem preconceito por parte da população e são acusados de ser a fonte da doença.

Não há qualquer possibilidade de mudança nas posturas do governo que trata os indígenas como inimigos e lhes aplica o princípio de guerra de que todo inimigo deve ser eliminado. Como os Guarani e Kaiowá denunciam na carta emergencial, há uma política genocida em curso. A final de contas esta crise sanitária está mostrando como indígenas e trabalhadores em geral são descartáveis para o capital.

Correio da Cidadania: Quais as perspectivas da pandemia nas aldeias de acordo com o que debatemos aqui e com o que você possui de informação e conhecimento?

Gabriela Guillen: O boletim epidemiológico de 27 de maio revela 72 novos casos de indígenas confirmados com a Covid-19 na aldeia Bororó/Jaguapiru. Os pacientes estão estáveis e até o momento não tem havido necessidade de internação nas UTIs dos hospitais de Dourados. Mesmo assim a situação é preocupante por todas as condições de precariedade social e econômica e a instabilidade jurídica e institucional que fragilizam as comunidades.

Além da falta de estrutura adequada dentro da aldeia eles dependem de um SUS extremamente precarizado. Em Dourados os contágios por coronavirus vêm aumentando de forma acelerada: atualmente são 197 casos. O sinal de alerta acende quando analisamos a capacidade hospitalar da cidade, há um risco de colapso alto, pois existem apenas 80 leitos de UTI e outros 76 leitos com ventiladores mecânicos e Dourados atende 33 cidades sul-mato-grossenses que totalizam uma população de 800 mil pessoas.

Nesse cenário adverso os Guarani e Kaiowá começaram a se auto-organizar. Montaram mais de 22 barreiras sanitárias nos seus territórios em Dourados e outros municípios da região, restringindo a entrada de carros, de pessoas estranhas e de vendedores ambulantes. Contam com kits de higienização fornecidos por toda uma rede solidária conformada por aliados dos movimentos sociais, sindicatos e uma extensa rede de apoiadores que tem sido importante para fazer frente à emergência alimentar que já existia e se agudiza com a crise econômica e pandêmica.

Existem iniciativas internas na aldeia Bororó/Jaguapirú que revelam formas de reprodução autônoma. Há algum tempo famílias indígenas vêm se organizando para produzir alimentos saudáveis, se recusam a continuar dependendo das cestas básicas distribuídas pelos órgãos públicos e estão plantando alimentos orgânicos para autoconsumo e para ajudar outras famílias que neste momento se encontram mais necessitadas. Em Caarapó, nas retomadas às margens da aldeia Tey´i Kue, há iniciativas de mulheres indígenas que estão se organizando para plantar e encarar o aprofundamento da fome desde seus territórios. Elas nós ensinam a importância da recuperação da terra e a autonomia necessária para continuar a vida.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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