O que passei dentro do centro de triagem do Nova Degase aos 17 anos: relato de um torcedor

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Detalhes: Luís Ling; 04/06/2020

A imagem está fora de contexto e não se refere ao autor do relato, é de um caso que ocorreu no Maranhão e foi tirada de arquivo apenas como ilustração, ainda que bastante realista, dos fatos narrados, denotando a triste universalidade dos mesmos.

Nota dos editores do Correio da Cidadania

O leitor do Correio da Cidadania acompanhará, a seguir, um relato em primeira pessoa de um jovem carioca que conheceu os horrores daquilo que se conhece como ‘Sistema Sócio Educativo’ no Brasil: um verdadeiro porão de maus tratos, desrespeito e violência unilateral. Originalmente, o relato foi publicada em thread (série de mensagens complementares) no twitter e depois formatado para o texto que se segue.

Prepare-se, leitor, pois se trata de horrível de repressão, coerção, agressão e perseguição gratuitas, que ocorre cotidianamente em nosso país. Aos que recentemente descobriram o fascismo brasileiro, fica a reflexão de que algo assim não nasce da noite para o dia, mas é plantado e regado com esmero por toda a sorte de delinquente social disfarçado de ‘autoridade’ e ‘gente de bem’, que ao longo das últimas décadas manteve estas instituições intocadas, ou pior, aprofundaram muitos dos seus vícios.

Antes da leitura, é digno de nota que o nome do autor do relato é fictício, a fim de preservar sua identidade e integridade, e, a seu pedido, para não individualizar uma história que acontece diariamente com muitos outros jovens pretos como ele.

Segue o relato abaixo:

Em fevereiro de 2015 eu fui detido injustamente indo pro jogo do Fluminense (contra o Vasco, pelo Campeonato Carioca) no Engenhão.

Detido, eu fui levado para a cidade da polícia e lá permaneci por uma noite e um dia. Por algumas horas permanecemos dentro do micro-ônibus sem comida, depois fomos jogados dentro de uma cela.

De lá, fui transferido pro centro da cidade no mesmo micro-ônibus, e junto de outros 15 menores de idade passamos pelo IML pro exame de corpo e delito. Detalhe: O cara que fez o exame ficou confuso, fomos presos em uma briga de torcida, mas NINGUÉM estava machucado. “Como?”, se perguntava.

Enfim, do IML fomos pra delegacia de menores no centro da cidade. Lá foi o local onde tive o primeiro contato com a minha família. Aquele lance de direito à ligação é tudo mentira. Ou não foi posto em prática. E ali disseram que apenas iríamos passar a noite no Centro de Triagem.

Chegando ao Centro de Triagem da Degase, na Ilha do Governador, o inferno começou!

Assim que descemos do ônibus começaram as agressões físicas e verbais. Xingando a gente, humilhando, bateram num garoto de 14 anos porque ele não queria ficar nu na frente das outras pessoas.

Pediram pra esse mesmo garoto cantar o hino do Vasco, ele disse que não sabia, e apanhou de novo. Deixaram a gente pelado, nos revistaram, nos deram roupas sujas e fedidas, chinelos e o tempo todo éramos xingados e provocados, eu não fui agredido, mas fui xingado de tudo!

Após esse período perguntaram a nossa facção criminosa, SIM, CRIANÇAS SÃO SEPARADAS POR FACÇÃO TAMBÉM! E como não tínhamos envolvimento com o crime, jogaram todo mundo na ala do Comando Vermelho. Chegamos de madrugada, então estavam todos dormindo quando entramos na cela.

Quando eu ouvi o barulho da grade se abrindo, o olho encheu de lágrima. Eu já estava estudando pra concurso, era um garoto bom e estava naquele local, podia ver a minha mãe chorando, passou um filme diante dos meus olhos. Quando entrei na cela, tinham MUITAS CRIANÇAS e eu gosto de enfatizar: CRIANÇAS.

Porque são realmente crianças! Eu era um dos mais velhos por ter 17. A maioria tinha 14, 15, 16 anos. A cela deveria ter o tamanho de uma sala de aula padrão, mas tinham umas 60 pessoas amontoadas; 8 camas de concreto sem nada pra dormir, apenas concreto. E o resto dormia no chão.

Era tanta criança dormindo no chão que não existia onde pisar. Eu procurei um canto, sentei e ali passei a madrugada acordado sentado, pensando, com medo, com frio, não chorei, mas a vontade era enorme. Eu realmente não entendia como cheguei ao ponto de parar naquele lugar.

De manhã nos acordaram por volta das 6h, mesmo padrão de tratamento: grito, xingamento, humilhação, tínhamos que andar em fila indiana, mãos pra trás, cabeça baixa e tínhamos menos de 1 minuto pra tomar café. Literalmente comíamos como bichos, apesar de ter ali um refeitório.

Lembrava um refeitório escolar, mas não era nada agradável estar ali. Passei o resto do dia sentado no canto, e por ser o mais velho, os outros que foram presos comigo precisavam de mim pra lidar com a situação. Fui forte demais em não chorar na frente deles, mas vontade não faltou.

Pra tomar banho os “Seu Funcionário” ligavam a água por um minuto pra todo mundo tomar banho. Nem dava tempo. A gente só enchia caixinha de creme de leite pra ter água o resto do dia e lavava o rosto. Fedíamos igual a bicho. Tudo era muito sujo e o vaso era terrível.

Tinham garotos com mais de 10 passagens. Tinham uns que ofereceram casa, comida e emprego pra gente numa favela, que não irei citar, caso a gente quisesse, mas a gente evitava conversar, eu procurava observar mais tudo o que rolava.

Tinha um garoto que era o líder dos menores, ele ficou revoltado quando soube que um dos nossos morava em uma área de facção diferente, arrumou uma treta com os “Seu Funcionário” e apanhou MUITO na frente de todo mundo. Literalmente um espancamento ao vivo, sem cortes.

Obviamente, predominantemente lá dentro tinham garotos em situação de rua, sem pai, mãe, sem nada a perder. Só revolta e se eu senti revolta, quem sou eu pra julgar a revolta deles? São tratados como bicho.

Eu tenho tanta coisa pra falar, mas o medo é maior. Precisamos ajudar a salvar nossas crianças pretas que estão sendo tratadas como bichos com um discurso de socioeducação. Sócio educação o cacete! Ali é o verdadeiro recrutamento do crime!!!

Em nenhum momento pude escovar os dentes. Em nenhum momento deram sabonete. Nada! Literalmente éramos bichos engaiolados. Por volta do segundo dia eu tinha uma audiência no fórum de Olaria, fui numa van da (polícia) civil algemado sem respirar amontoado com outras várias pessoas dentro da van.

Quando cheguei lá jogaram a gente numa cela no subsolo do fórum, a umidade é tão grande que eu tive uma crise respiratória e comecei a me sentir sufocado, mas ninguém ligou. Ouvi tanta história dos outros garotos que estavam lá também presos...

Na hora da audiência, pareciam me respeitar. Na frente das autoridades, “eles” nos tratavam com o mínimo respeito, fora isso, era um padrão horroroso de porrada, xingamento e humilhação. Na hora do meu depoimento, entrei numa sala e conversei com uma senhora

Ela, supereducada, perguntou se eu estava bem, mas como vou dizer que não estava? Se ao sair dali eu voltaria ao inferno e poderia sofrer mais ainda. Dei meu depoimento e no fim olhei pra trás, minha mãe estava lá. O abraço dela foi o suficiente pra eu chorar de soluçar.

Demorei a chorar, mas quando senti o colo da minha mãe, não aguentei. Menos de 20 segundos de abraço depois, fui arrancado dos braços dela e levado de volta pra cela no subsolo e lá fiquei quase o dia todo até voltar pra Degase na Ilha. Lá me perguntaram me intimidando se eu tinha dito algo.

Mas não, eu não falei sobre nada que vi, vivi e passei lá dentro pra senhora que dei meu depoimento. No mesmo dia, no fim de tarde, fui liberado pra responder em liberdade. Quando atravessei o portão todas as famílias estavam lá nos esperando, abracei minha mãe. Eu fedia muito!

Entrei no carro e fui pra casa. Assim que cheguei em casa, sem perceber, fiquei no canto um bom tempo com a mão pra trás e um olhar de medo, ali minha mãe notou que eu já não era mais o mesmo de antes. Eu chorei MUITO! Naquele dia no banho eu chorei como nunca na minha vida.

Fiquei 3 jogos como punição indo pra delegacia na hora da partida, onde de novo fui tratado como lixo mesmo sem merecer. 11 meses depois eu fui pra audiência onde fui INOCENTADO por FALTA DE PROVAS!!!

Ou seja, todo esse trauma que passei foi exatamente POR NADA!!!!! NADA!!!!!!

A única coisa que eu quero com isso é: Vidas pretas importam? Então vamos começar salvando nossas crianças que estão sendo vítimas disso diariamente e inclusive agora devem estar sofrendo algum tipo de violência.

Não adianta reclamar da violência deles nas ruas se eles são tratados assim pela sociedade e pelo Estado. Se eu não tivesse um padrasto e uma mãe, possivelmente hoje eu estaria portando fuzil em alguma favela do Rio, ódio do Estado não me falta, mas eu tive outra alternativa.

Não julguem. Deem alternativas. A minha diferença pros garotos que estavam lá é que eu tive quem correr por mim. Eles não têm. Vidas negras importam? Então vamos começar a lutar verdadeiramente por elas.

Todos os relatos são verdadeiros. Tenho testemunhas. Tenho medo? Sim! Mas se for pra morrer, que seja fazendo algo útil. Espero que alguém veja isso e ajude quem realmente precisa de voz. Alguns amigos sabem disso, outros não. Passei 5 anos calado, hoje eu gritei!

Esqueci de falar: Água só a do chuveiro e porque a gente armazenava em caixas de creme de leite, mesmo essa acabou cortada. Comida? Horrível e, além disso, davam menos de 2 minutos para comer. Gritavam o tempo todo enquanto comíamos. Isso é realmente a socioeducação que o Estado tem a oferecer?

Queria inclusive deixar um outro relato, a força da mídia*. O tempo todo eles nos tratavam como culpados por uma briga generalizada que nunca existiu! Abordaram nosso ônibus, descemos, foi quando a polícia atacou a gente com bomba e bala de borracha.

Logo depois da confusão causada pelo despreparo policial, prenderam todos os torcedores que estavam ao redor da confusão. Detidos e de cabeça baixa, quando demos conta chegou um camburão CHEIO de pau e pedra, jogou tudo na nossa frente e foi assim que o resto aconteceu...

Isso é um dos fatos da minha vida. Realmente daria um livro. Hoje estou bem, mas tem gente a essa hora passando por isso ou pior.

Nota:
* Esta é a reportagem sobre as prisões que ocorreram no dia deste clássico entre Fluminense e Vasco, e a qual o autor do relato se referiu quando escreveu esta passagem. UOL, 23/02/2015

Luís Ling é um nome fictício, como dito anteriormente, para preservar a identidade do jovem autor do relato.