Cem dias de dor e sofrimento por trás dos números
- Detalhes
- José Eustáquio Diniz Alves
- 17/07/2020
“É melhor ser infeliz, mas estar inteirado disso, do que ser feliz e viver como um idiota” - Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
Todas as manhãs, nos últimos 100 dias, a população brasileira teve acesso, livre e irrestrito, ao Diário da Covid-19, publicado na página do Projeto #Colabora, com material quantitativo e qualitativo sobre a pandemia do novo coronavírus, trazendo os fatos nacionais e internacionais mais relevantes para a compreensão do panorama atual. O #Colabora é um projeto que aposta na produção e na difusão de informação de qualidade com base em uma visão de sustentabilidade e justiça social, fundamentada nos princípios dos direitos humanos e ambientais. Desde 2019, tem atuado em sintonia com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Neste momento, o Objetivo 3, que trata da Saúde e do Bem-Estar e que tem como meta “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades”, serve de norte para a situação contemporânea.
Foi com base nestes conceitos e compromissos que criamos o Diário da Covid-19, com análises de dados e de tendências da emergência sanitária, econômica e também ecológica, pois todas as atividades e todas as pessoas do Planeta foram afetadas pela nova realidade global. O primeiro texto do Diário foi publicado no dia 6 de abril de 2020 quando, em números acumulados, o mundo tinha 1,33 milhão de casos e 78,6 mil mortes e o Brasil tinha 12.056 casos e 553 mortes. O avanço da pandemia foi impressionante nestes 100 dias que tiveram grande impacto na comunidade internacional.
Neste Diário da Covid-19 de número 100, o mundo chegou a 13,5 milhões de casos e 580 mil mortes e o Brasil chegou a 1,93 milhão de casos e 74,1 mil mortes. Ou seja, em uma centena de dias, no mundo, o número acumulado de casos foi multiplicado por 10 vezes e o de mortes por 8 vezes e, no Brasil, os casos foram multiplicados por 160 vezes e os óbitos cresceram 134 vezes.
O panorama global da covid-19
Como reportamos ao longo da série, a pandemia do novo coronavírus surgiu na China, ainda no final de 2019 e ganhou uma grande dimensão nos meses de janeiro e fevereiro. Mas o país tomou medidas fortes para evitar a propagação do vírus e conseguiu reduzir a quantidade de mortes para níveis próximos de zero já no início março. A Coreia do Sul teve o pico da pandemia em março, mas também conseguiu controlar a pandemia em abril. Todavia, nos meses seguintes a pandemia do Sars-CoV-2 se espalhou pelo mundo.
No gráfico abaixo, a curva do número de casos parecia que iria se inverter em meados de maio e começar a decrescer, porém, manteve a tendência de alta e acelerou a subida. Nos primeiros 14 dias de julho, o número médio de pessoas infectadas ficou em 207 mil novos casos, acrescentando mais de 1 milhão de casos a cada 5 dias. A curva de mortes, que atingiu um pico de cerca de 8 mil óbitos diários no início de abril, iniciou uma tendência de baixa até aproximadamente 4 mil óbitos diários no final de maio, mas inverteu a tendência e subiu para algo em torno de 5 mil óbitos diários atualmente.
Ou seja, a pandemia que parecia estar perdendo fôlego com a redução dos casos e das mortes, principalmente da Ásia e da Europa, voltou a apresentar uma aceleração em função principalmente do avanço nas Américas.
A figura abaixo, do jornal Financial Times, apresenta a média móvel de 7 dias do número diário de mortes em diversos países e regiões do mundo, começando em meados de março, quando o peso do leste asiático já era muito pequeno. Entre março e abril, a Europa e os Estados Unidos (EUA) passaram a concentrar a maior parte das mortes diárias provocadas pela covid-19, mas a partir do mês de maio o destaque coube à América Latina.
A forma da figura reflete o fato de que o número médio de mortes diárias no mundo era de 393 óbitos entre 15 e 21 de março, passou para 7,5 mil mortes diárias em meados de abril, caiu para 3,8 mil no final de maio e voltou a subir para 4.947 na semana de 7 a 13 de julho.
A Europa e os EUA respondiam por apenas 6% das mortes diárias em 29 de fevereiro, mas deram um salto para cerca de 80% em meados de março e para 90% na primeira quinzena de abril. Mas ambos passaram a ter uma menor participação nos meses seguintes e na semana de 23 a 29 de junho a Europa respondia por 10%, os EUA por 12% e a América Latina e Caribe (ALC) por 52% das mortes diárias. Na América Latina os destaques são: Brasil, México, Peru e Chile.
No mês de julho o número de mortes voltou a subir nos EUA (que passaram a responder por 14% dos óbitos diários na semana de 7 a 13/07) e também na Índia, Irã e África do Sul, além de outros países do Sul da Ásia, do Oriente Médio e da África. Ou seja, a quantidade de mortes diárias no mundo, que estava caindo para a faixa de 4 mil óbitos, voltou a subir para cerca de 5 mil óbitos.
Por conta de tudo disto, a revista The Economist (04/07/2020), considera que a pandemia da covid-19 veio para ficar e as pessoas vão ter que se adaptar a nova realidade. Citando uma pesquisa, realizada em 84 países, por uma equipe do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), a revista britânica mostra que para cada caso registrado do novo coronavírus, 12 outros não são registrados e, para cada duas mortes, um terço é atribuído a outras causas. Sem a descoberta de uma vacina eficaz, o número total de casos no mundo poderá chegar a um montante entre 200 a 600 milhões de pessoas infectadas até junho de 2021, com algo entre 1,4 a 3,7 milhões de óbitos.
Na mesma linha de preocupação, o diretor geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, disse recentemente: “o pior ainda está por vir”. No dia 11 de julho, também a prestigiosa revista científica The Lancet, disse em editorial que “o pior ainda está por vir”, reforçando o entendimento de que o montante de casos e mortes pode aumentar e o controle da pandemia no mundo ainda vai demorar vários meses.
O panorama nacional
O Ministério da Saúde do Brasil informou, na terça-feira (14/07), que o país chegou a 1.926.824 casos e 74.133 vidas perdidas, com uma taxa de letalidade de 3,8%. Foram 41.857 novos casos e 1.300 mortes em 24 horas. Para se ter uma ideia, 100 dias atrás, no dia 6 de abril de 2020, o número acumulado de casos era de 12.056 e o número acumulado de mortes era de 553. Ou seja, atualmente o Brasil está tendo muito mais pessoas infectadas e mais mortes diárias do que os números acumulados da época que este Diário começou.
Os primeiros casos registrados de pessoas com o coronavírus ocorreram nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, mas a pandemia se expandiu rapidamente para as capitais das regiões Norte e Nordeste. No final de abril a média móvel de 7 dias do número diário de pessoas infectadas estava na casa de 5 mil casos e passou para a casa dos 20 mil casos diários no final de maio, como mostra o gráfico abaixo.
Nos primeiros 10 dias de junho o número médio de casos passou para a casa de 26 mil e apresentou uma ligeira queda nos dias seguintes, em função do menor ritmo de avanço da pandemia nas capitais do Sudeste, Nordeste e Norte. Mas na última semana de junho o número médio subiu para a casa de 30 mil casos, em decorrência da interiorização da pandemia. O recorde diário de infectados aconteceu no dia 19/06 com cerca de 55 mil casos. Nos primeiros 14 dias de julho o número médio foi para a casa de 37 mil casos diários, com o avanço da pandemia nas regiões Sul e Centro-Oeste e no estado de Minas Gerais. Atualmente, o número de casos está estacionado neste alto platô, sem uma tendência clara de subida ou descida.
O gráfico abaixo, também do Financial Times (em escala logarítmica), mostra que os EUA lideram o número acumulado de casos, seguido pelo Brasil – que está à frente da soma de todos os países da União Europeia. A Índia já ultrapassou a Rússia e o México está a ponto de ultrapassar o Peru e o Chile. Atualmente, o Brasil está em segundo lugar tanto no número de casos acumulados, quanto no número de casos diários.
A primeira morte da covid-19 no Brasil foi registrada na cidade de São Paulo e, em seguida, na cidade do Rio de Janeiro. Além destas duas maiores cidades do país, o número de mortes cresceu muito em Manaus, Belém, Fortaleza, São Luís e Recife. No final de abril a média móvel de 7 dias do número diário de vítimas fatais estava em 370 óbitos, mas passou para 970 óbitos diários no final de maio, como mostra o gráfico abaixo.
No dia 4 de junho se atingiu a maior variação diária com 1.473 óbitos, sendo que a média móvel ficou 1.038 óbitos. Desde então, o número tem ficado sistematicamente acima de 1.000 mortes diárias. No dia 23 de junho a variação diária ficou em 1.374 óbitos, com a média móvel de 7 dias ficando em 1.058 óbitos. E ontem, dia 14/07, a variação diária ficou em 1.300 óbitos, com uma média móvel de 1.056 óbitos. Portanto, o Brasil tem mantido um número médio de vítimas fatais acima de 1.000 óbitos desde o final do mês de maio. Um pico que não passa.
A dinâmica interna do ritmo do surto no país tem sido diferente. Nessa semana, o ritmo aumentou naquelas Unidades da Federação menos impactadas inicialmente pela pandemia: RS, SC, PR, MG, DF, GO, MS, MT, RO e TO. Ficou estável nas UFs: AP, AL, BA, CE, MA, PB, PE, PI, SE, ES e SP. Mas diminuiu nas UFs que tinham sido mais impactadas: AC, AM, PA, RR, RN e RJ. As projeções indicam que, até o final de janeiro de 2021, o Brasil pode atingir cerca de 6 milhões de casos e 200 mil mortes pela covid-19.
O gráfico abaixo, igualmente do Financial Times (em escala log), mostra a União Europeia e os EUA com um número acumulado de cerca de 150 mil óbitos, vindo o Brasil em seguida com cerca de metade dos óbitos (75 mil). O México tem cerca da metade das mortes do Brasil (37 mil óbitos). A Índia com quase 25 mil óbitos e a Rússia e o Irã com cerca de 13 mil óbitos acumulados. A China que foi o epicentro inicial da pandemia continua com um número acumulado de mortes abaixo de 5 mil.
Cabe destacar que o Brasil com 2,7% da população mundial responde por 12,8% das mortes acumuladas no mundo e por 21% das mortes diárias globais. Desde o início de junho, o Brasil tem mantido o primeiro lugar isolado no triste ranking global do número de mortes.
Todos os dados acima mostram que o Brasil, depois dos EUA, é o país mais impactado negativamente pela pandemia, com um alto número de pessoas infectadas e com um elevado número de mortes. O maior país da América Latina fracassou no combate à covid-19. Não conseguiu fazer uma barreira sanitária para conter o avanço do coronavírus pelo território nacional, não realizou a quantidade de testes necessários, não conseguiu rastrear e monitorar os doentes e promoveu uma quarentena “meia-boca”, que não evitou a alta morbimortalidade.
O resultado, além da grande crise na saúde, tem sido o aprofundamento de uma recessão de dimensão nunca vista na história brasileira. As estimativas do Fundo Monetário Internacional apontam para uma queda do PIB da ordem de 9% em 2020, com milhões de pessoas sem emprego e sem fontes de renda própria. Os dados do IBGE mostram que, pela primeira vez, o país tem menos da metade dos adultos em idade de trabalhar inseridos na força de trabalho. E isto ocorre no momento que há a menor razão de dependência demográfica, indicando que o Brasil está jogando fora a sua janela de oportunidade para dar um salto no desenvolvimento econômico e social.
O FMI também mostra que o Brasil deverá ter um déficit nominal de 16% do PIB e uma dívida pública bruta acima de 100% do PIB no final de 2020. Depois de duas décadas perdidas (1981-90 e 2011-20), o país pode estar caminhando para uma nova década sem aumento da renda per capita e sem melhoria das condições de vida e de bem-estar da população. A chamada “Geração Covid” (jovens com menos de 25 anos) terá que lidar com a ameaça de uma mobilidade social descendente e deve pagar um alto preço pelo desgoverno existente no país.
Não precisava ser assim. Ao longo dos 100 dias apresentamos diversos exemplos de países que conseguiram vencer a pandemia. Do outro lado do mundo, o Vietnã e a Nova Zelândia foram casos de sucesso inspiradores. Na América Latina, o Uruguai, o Paraguai e a Costa Rica mostraram que o continente não é uma presa fácil do Sars-CoV-2 e que a interação entre o Poder Público e a sociedade civil é o melhor remédio para vencer a covid-19. Infelizmente, o Brasil optou pelo pior caminho.
Um governo ecocida e genocida
O governo que tomou posse no dia 1 de janeiro de 2019 no Palácio do Planalto tem implementado uma necropolítica na área social e ambiental do país. O distintivo máximo do Presidente da República é uma arma, que simboliza o desejo de morte e representa a verdadeira tradução das inúmeras políticas ecocidas e genocidas que tem sido postas em prática pelas diversas instâncias da administração pública. Por exemplo, são inúmeras as declarações e ações por parte do governo de Jair Bolsonaro contra o meio ambiente.
O Art. 225 da Constituição Federal diz: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Além disto, o Brasil é signatário do Acordo de Paris e assumiu o compromisso de reduzir as emissões de GEE conforme as metas mencionadas na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). As metas principais são: 1) Redução de 37% nas emissões até 2025, tendo como ponto de partida as emissões de 2005; 2) Possível redução de 43% das emissões até 2030.
Inquestionavelmente, é dever dos governantes respeitar a Constituição e as leis do país defendendo a sustentabilidade da natureza. Mas não é o que está acontecendo. Basta citar o aumento do desmatamento e das queimadas na Amazônia e demais biomas do país. Em agosto de 2019, houve até “Dia do Fogo”, no desafio mais surreal promovido pelos inimigos da floresta. Mas, ao invés de tomar medidas para reduzir o desmatamento, o governo questionou os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e exonerou o Diretor Ricardo Galvão no ano passado. Agora em 2020, o INPE divulgou que junho teve o maior número de alertas de desmatamento para o mês em toda a série histórica. Mas ao invés de resolver o problema e evitar a destruição ambiental, o governo exonerou a coordenadora do INPE, Lubia Vinhas, coordenadora-geral de Observação da Terra.
Nada disto é novidade, pois faz parte de uma política deliberada de extermínio. Na vergonhosa reunião ministerial de 22 de abril, o ministro Ricardo Salles comemorou a oportunidade da pandemia do Sars-Cov-2, defendendo “passar a boiada” sobre as regras ambientais e viabilizar o desmatamento, a defaunação, o garimpo, a exploração mineral, a poluição dos rios e fazer vista grossa diante de todas as atividades de devastação da vida natural, provocando um ecocídio de dimensão colossal. Assim, a presidência de Bolsonaro se tornou uma ameaça ao meio ambiente e à vida natural.
O não cumprimento da Constituição e das metas do Acordo de Paris são considerados crimes de responsabilidade. Um grupo de juristas brasileiros apresentou denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro por crime de ecocídio ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, em 2019. Os juristas argumentam que Bolsonaro pode ser responsabilizado pelo aumento dos danos na Amazônia devido à demora da resposta contra as queimadas na região e à atual política ambiental do governo.
Além do crime de ecocídio, o governo Bolsonaro pode ser acusado de crime de genocídio, como mostrei no Diário “Governo implanta o Necroceno no Brasil” (07/06/2020). O presidente Jair Bolsonaro não tem feito qualquer esforço para salvar vidas e conter o avanço do coronavírus no território nacional. Embora o Art. 5º da Constituição de 1988 garanta a todos os brasileiros a “inviolabilidade do direito à vida” o presidente Bolsonaro não se cansa de contrariar o dispositivo constitucional e zomba do Artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que diz: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Quando instado a comentar as 5 mil vidas perdida para a covid-19, no momento em que Brasil ultrapassou os óbitos da China, Bolsonaro disse: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.
Obviamente, a Constituição Federal exige que o presidente do Brasil mobilize todos os recursos disponíveis para salvar vidas e controlar a pandemia. Porém, o chefe máximo da nação abdicou do dever de salvar vidas. E de forma zombeteira disse: “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. Assim, ele age como um médico que se recusa a operar um paciente porque a morte “é o destino de todo mundo”.
A demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta – que vinha fazendo um bom trabalho com base na ciência e nos protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS) – foi um golpe nas forças que se opunham ao coronavírus. A demissão do ministro Teich – médico totalmente alinhado ideologicamente com o presidente – foi outro golpe, pois o Ministério da Saúde ficou sem um Ministro titular e sem os instrumentos necessários para combater a pandemia e evitar o aumento das mortes.
A política de saúde do Brasil – em meio à maior emergência sanitária da história – está nas mãos de um ministro interino (general Eduardo Pazuello), que é um militar sem experiência nos conhecimentos das ciências médicas. Esta situação esdrúxula foi questionada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que disse publicamente que “o exército está se associando a um genocídio”.
Em consequência, o Ministério da Defesa protocolou na Procuradoria-Geral da República (PGR) uma representação contra o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), dizendo que a declaração causou indignação nas Forças Armadas.
Alguns analistas dizem que o uso da palavra genocídio não foi adequada, pois ela só deveria ser usada para definir fatos como o massacre de 8.400 muçulmanos por sérvios da Bósnia em Srebrenica, em 1995, ou o extermínio, em 1994, de 800 mil tutsis e hutus moderados em Ruanda, ou morticínio de quase 2 milhões de cambojanos pelo governo comunista do Khmer Rouge entre 1975 e 1979. Mas a palavra genocídio não deveria ser usada para o caso da pandemia.
Contudo, outros analistas consideram que o uso da palavra genocídio é correto se considerarmos os riscos pelos quais estão passando as populações indígenas no país. Em uma live ocorrida no dia 18 de junho para discutir o tema “Desigualdades: Povos Indígenas frente à Pandemia”, com participação de Sonia Guajajara, coordenadora da Aliança dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e do fotógrafo Sebastião Salgado foi dito: “Se houver um genocídio dos povos indígenas por conta do coronavírus, as autoridades brasileiras têm que ser responsabilizadas”.
De fato, os indígenas são a parcela da população brasileira mais vulnerável ao novo coronavírus. O banco de dados de hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG/COVID), divulgado pelo Ministério da Saúde (https://opendatasus.saude.gov.br/dataset/bd-srag-2020), disponibiliza informações sobre o perfil demográfico, como o sexo, a idade e a raça/cor, além de doenças preexistentes dos pacientes internados desde o início da pandemia, indicando se o diagnóstico final confirmado foi ou não por Covid-19. Muitas pessoas ainda estão hospitalizadas, mas comparando aquelas que se curaram (tiveram alta) com aquelas que faleceram, os indígenas tiveram ao redor de 98% mais chance de vir a óbito do que as pessoas da cor branca.
Na mesma situação, as pessoas da cor preta têm 46% e as pardas 72% mais chance de falecer de covid-19, também comparadas às pessoas brancas. Ou seja, os indígenas tiveram quase o dobro da chance de morrer depois de controlados o sexo, a idade e as morbidades pré-existentes mais comuns do que pessoas brancas na mesma condição.
Obviamente, a população indígena é menor numericamente, e no período considerado (entre a 10ª. e 28ª. semana epidemiológica) foram 383 indígenas hospitalizados com covid-19 e desses, 203, mais da metade faleceu, enquanto foram 36.431 brancos nessa situação e 38,6% faleceram. Ou seja, há alta mortalidade para ambos os grupos entre os hospitalizados, no entanto, as chances de vir a óbito por covid-19 para os indígenas são muito maiores, mesmo tendo as mesmas características demográficas que outros grupos.
Segundo o fotógrafo Sebastião Salgado, o genocídio é definido como o extermínio de uma etnia e sua cultura, tal como estamos vendo em relação aos povos indígenas no Brasil. Portanto, não é despropositado considerar que o projeto mortífero do Governo Federal comete os crimes de ecocídio e de genocídio e deve ser responsabilizado por isto.
O Diário da Covid-19 passa a ser semanal
Estes 100 dias de descrição, reflexão e acompanhamento do avanço da pandemia no Brasil e no mundo envolveram muito trabalho, mas também muito aprendizado e a certeza que, dentro do nosso campo de atuação, fizemos o melhor possível para informar, dialogar e debater soluções para reduzir os casos, os óbitos e a dor de todas as pessoas, mas principalmente o sofrimento daquelas parcelas mais vulneráveis da população que carecem de apoio e compreensão neste momento tão difícil e infeliz da vida nacional e internacional.
Nas últimas semanas foi um prazer compartilhar este espaço com companheiros tão ilustres e gabaritados como Agostinho Vieira, Oscar Valporto e Aydano André Motta que enriqueceram a análise da complexa situação global e local e apresentaram novos olhares e novos saberes que enriqueceram a abordagem sobre as dinâmicas das emergências sanitária, econômica, política e ambiental na conjuntura atual.
A meta de 100 dias foi cumprida. O Diário da Covid-19 seguirá com o mesmo nome, mas passará a ser publicado uma vez por semana, aos domingos, ou em edição extraordinária, sempre que isso se fizer necessário. Vemo-nos aos domingos com um balanço da semana epidemiológica e a discussão dos temas mais candentes que envolvem a emergência sanitária.
Referências:
ALVES, JED. Diário da Covid-19: Governo implanta o Necroceno no Brasil, #Colabora, 7 de junho de 2020 https://projetocolabora.com.br/ods3/governo-implanta-o-necroceno-no-brasil/
Financial Times. Coronavirus tracked: the latest figures as countries start to reopen. The FT analyses the scale of outbreaks and the number of deaths around the world https://www.ft.com/content/a26fbf7e-48f8-11ea-aeb3-955839e06441
José Eustáquio Diniz Alves, sociólogo, mestre em economia e doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É colunista do Portal Colabora, onde este artigo foi originalmente publicado.