Rede privada: “professores se tornaram produtores de conteúdo digital da noite para o dia”
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- Raphael Sanz, da Redação
- 03/08/2020
Desde o início da pandemia – que já passa dos 90 mil mortos – e as primeiras suspensões de atividades convivemos diariamente com incertezas em relação ao ano letivo, assim como vemos a precarização da atividade dos professores e educadores nas redes públicas. No setor privado não é diferente, os trabalhadores têm sofrido cortes de salários, aumento de tarefas e funções, além de incertezas em relação à realização do processo de aprendizado. Para entender melhor esta categoria específica dentro da educação e o que pensam a respeito do momento, enviamos perguntas para o Coletivo de Professores Autoconvocados* do ensino privado, formado em 2017 em São Paulo, que nos respondeu coletivamente.
“A maior preocupação agora é com o retorno às aulas marcado para 8 de setembro no estado de SP. Se programar para um retorno das aulas presenciais em um contexto ascendente de mortes e de ampliação de casos de infectados é uma insanidade. Não há justificativas para promover a exposição de tantas pessoas. É necessário lembrar que cada professor entrará em contato com pelo menos 30 a 35 estudantes por hora de aula. Serão os mais expostos”, analisam os professores.
Sobre o atual regime ‘mambembe’ de educação remota, exaustivamente colocado na imprensa e pelas autoridades, são enfáticos ao dizer que isto não é Ensino a Distância (EaD), uma vez que demandaria uma adaptação sob diversas ordens. Ao longo da entrevista desenvolvem o argumento sempre em paralelo com a ‘oportunidade’ que os empresários encontraram para justificar sua precarização, jogando sobre professores e trabalhadores o ônus das dificuldades impostas pela pandemia no setor.
“Aproveitamos o espaço para fazer uma denúncia: escolas de elite, de grande porte, colocaram seus professores na MP 936 (da suspensão do contrato de trabalho), reduziram salários ou suspenderam contratos de trabalho tendo uma diminuição de receitas com as mensalidades muito pequena, mas aproveitando para colocar sua folha salarial na conta do Governo Federal. As escolas encontraram seus caminhos para seguir gerando lucro mesmo nesse contexto de pandemia”.
Leia a entrevista completa a seguir.
Foto tirada em uma escola pública, a E.E. Maria José (São Paulo, centro), em 2015, durante a ocupação estudantil ocorrida por lá. Está aqui, fora do seu contexto original, apenas como ilustração de uma sala de aula vazia.
Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Correio da Cidadania: Como tem sido o dia-a-dia de vocês, professores da rede privada, desde que a pandemia se instalou?
Professores autoconvocados: Primeiramente, cabe informar aos leitores que não pertencem à área da educação que a realidade de cada rede, escola, etapas da escolaridade e até mesmo de acesso a recursos como a internet é muito diversa e temos muita dificuldade em ter conhecimento do que acontece em outros espaços por conta da dificuldade que o isolamento social impôs para uma maior articulação entre os professores. O esforço que faremos agora em descrever alguns fatos se refere a um contexto muito específico que está relacionado aos colégios de médio a grande porte e de uma fatia muito específica e elitizada dentro do mercado das escolas privadas da capital paulista.
Sobre o dia-a-dia, procuraremos generalizar algumas das situações e muitas vezes referenciar nossas experiências como professores dentro da realidade da rede privada na cidade de São Paulo.
Desde o início das notícias de casos de covid-19 na cidade de SP alguns estudantes apresentaram sintomas ou tinham parentes diagnosticados. Ao surgirem os primeiros casos entre os docentes, as escolas demoraram a estabelecer medidas protetivas e em muitas unidades foi necessária a mobilização dos professores no intuito dos colégios atentarem para a urgência em interromper as aulas presenciais.
Em meados de março, a partir da terceira semana, a maioria dos colégios já estava atuando no sistema de educação remota, com estudantes em casa, mas exigindo a presença de parte do corpo docente ainda nas escolas. Foi necessária a interrupção de forma institucional por parte do Governo do Estado para que os professores também pudessem deixar de se expor ao perigo da pandemia.
O processo de educação remota varia muito de acordo com a estrutura disponibilizada pelas escolas. Existem escolas que estão promovendo aulas por meio de lives, que ocorrem obedecendo a grade horária das aulas presenciais, outras escolas optaram por disponibilizar materiais em plataformas online e promover lives em horários e dias específicos para cada disciplina e série (por exemplo, a aula de Língua Portuguesa ocorre às 7h da manhã com todas as turmas do 8º ano, e assim por diante com outros anos e matérias) e também há escolas que não conseguiram encontrar uma ferramenta para promover um sistema de aulas síncronas (que são as lives), oferecendo apenas vídeoaulas produzidas pelos professores, que se tornaram produtores de conteúdo digital da noite para o dia, sem treinamento adequado para isso.
Os principais problemas enfrentados pela categoria podem ser listados de forma sintética pelos seguintes pontos (mas cada escola está atuando de uma maneira diferente): sobrecarga de trabalho, grupos de comunicação (whatsapp e semelhantes) com mensagens fora do horário de trabalho, excesso de obrigações com o trato em novas ferramentas para viabilização das aulas, direitos trabalhistas atropelados com a redução salarial (muitas vezes sem a redução efetiva da jornada de trabalho), medo constante em relação a cortes e demissões ou suspensão dos contratos de trabalho, pressão exagerada sobre os profissionais pelo “sucesso” do trabalho à distância, alteração do calendário de férias, horas de trabalho não remuneradas, uso de imagem dos profissionais sem os devidos termos discutidos entre a categoria ou expressados em contrato, a invasão da privacidade de todos os envolvidos no processo educativo, longas horas em frente à luminosidade de telas (ainda que contrariando recomendações de especialistas), entre outros pontos.
O Sindicato dos Professores (Sinpro) na cidade de SP não está atuando como acreditamos que deveria ser o papel de um sindicato. Há relatos de que alguns professores denunciaram a intenção dos colégios em reduzir o salário dos professores apesar da sobrecarga de trabalho e o sindicato se comunicou com a escola informando que “poderiam intermediar a relação para facilitar a entrada dos professores na MP”.
Brasil afora os sindicatos de professores têm convocado em muitos lugares assembleias online. Tiveram algumas assembleias do Sinpro de BH, por exemplo, também em outras cidades. No entanto, o Sinpro de São Paulo não chamou nem uma assembleia nesse período inteiro. É lamentável.
Correio da Cidadania: Que outras mudanças a classe tem vivenciado no âmbito do regime de trabalho e qual o impacto dessas mudanças no cotidiano?
Professores autoconvocados: Além da quantidade de horas dedicadas ao replanejamento de aulas e atividades, toda estrutura do trabalho fica abalada pela conversão forçosa a um regime de educação em que praticamente ninguém teve treinamento, nem expertise para dar seguimento de maneira tão imediata ao ano letivo.
Algumas escolas optaram por decretar férias diretamente no primeiro mês de interrupção das aulas presenciais, pois acreditavam que seria algo passageiro ou para se adequar minimamente enquanto estrutura para as aulas remotas. A antecipação das férias em muitos casos não foi debatida com o corpo docente, e a partir de agora muitos terão que se desdobrar em dar aulas de maio a dezembro sem descanso.
Muitas escolas estão alegando problemas financeiros pois as famílias estão com dificuldades em arcar com as mensalidades, algumas escolas têm números grandes de inadimplentes e outras negociaram a diminuição dos valores das mensalidades, mas esse ônus está sendo repassado aos funcionários das escolas por meio de reduções salariais que não acompanham a redução da jornada de trabalho que na maior parte dos casos triplicou. Não é raro nas assembleias autoconvocadas e nos fóruns de discussão professores que apresentam jornadas diárias, incluindo finais de semana, maiores que 10h, 12h de envolvimento com atividades escolares.
Professores estão se convertendo em produtores de conteúdos digitais, youtubers, gravando e editando vídeos por horas a fio, sem nenhuma garantia de que esse trabalho será remunerado e até mesmo protegido com relação aos seus direitos de imagem.
Correio da Cidadania: Como avaliam a questão do EAD (Ensino A Distância), exaustivamente em pauta durante a quarentena?
Professores autoconvocados: Não existe EaD como exaustivamente vem sendo divulgado pela mídia, governos e principalmente instituições educacionais. Para classificarmos um processo educacional dessa maneira o curso, as aulas, as atividades, o planejamento, o formato avaliativo, os objetivos e tipos de resultados buscados deveriam ser adequados a esse processo. Nunca houve uma formação obrigatória dentro dos cursos de licenciatura para esse tipo de processo educacional. Não houve reciclagem ou cursos de formação continuada oferecidos para os profissionais com esse intuito, logo não podemos chamar esse processo educacional de EaD. O que nós estamos implantando de maneira completamente apressada e vazia de criticidade é um processo de educação remota da qual não temos garantia da sua efetividade e nem mesmo da sua executabilidade.
As autoridades se apresentam nesse contexto apenas com a demagogia típica de seus cargos, apresentando soluções mirabolantes, muitas vezes caríssimas, oferecidas por grandes empresas que estão de olho em como lucrar com contratos sem licitação em seu caráter emergencial, fazendo o que de melhor eles fazem: oferecer soluções para a educação sem nunca consultar os principais envolvidos na comunidade escolar. São impostas formas de trabalho por aqueles que nunca pisaram em uma sala de aula e muito menos possuem qualquer proximidade com a atuação docente ou formação pedagógica.
Correio da Cidadania: O que comentam sobre os vaivéns do Ministério da Educação?
Professores autoconvocados: Com relação ao ministro da Educação, enquanto existiu alguém ali, não é necessário levantar que o papel que cumpriu frente a esse cargo foi apenas de desmoralizar a categoria dos profissionais da educação, promover a destruição das universidades públicas, em especial as federais, além da ausência completa em debater a urgentíssima renovação do FUNDEB.
Isso se tratando de um governo que se elegeu com uma suposta bandeira de investimentos na educação de base, principalmente nos anos iniciais, em detrimento do financiamento da educação em nível superior e fundamentalmente em pesquisa. Arriscaríamos dizer que estamos melhores sem alguém a frente do Ministério dentro desse governo que é claramente anti-intelectual e obscurantista.
Correio da Cidadania: Como surgiu o coletivo pelo qual vocês estão se organizando e que alternativas às tele-aulas são discutidas?
Professores autoconvocados: O coletivo surgiu em discussões e manifestações durante a proposição do governo Temer para a MP da terceirização no ano de 2017. De lá para cá, sempre se discutiu em fóruns autonomamente organizados as condições de trabalho e os temas relacionados à categoria. No contexto do isolamento social nos vimos em uma situação aterrorizante ao ver se multiplicarem nos fóruns de discussão casos relatados por profissionais da educação que iam desde o assédio moral e pressões por entrega de materiais digitais, vídeos e afins, até casos de escolas que iriam demitir os professores e esperar a pandemia terminar para recontratá-los (no contexto da MP 936 da suspensão do contrato de trabalho).
O coletivo também se fortaleceu bastante na luta pela convenção coletiva em 2018; a convenção ia perder a validade e então nos fortalecemos para pressionar pela sua renovação, o que fortaleceu nossas assembleias autoconvocadas.
Muito se discute sobre as alternativas a esse esquema de aula remota. Entre os professores a questão se divide entre o cancelamento do ano letivo em 2020 bem como a sua junção ao calendário 2021, para uns. Já outros ponderam a possibilidade de uma educação remota, mas em condições de salubridade e descanso tanto para estudantes como para docentes. Mas o debate não pode ser feito apenas por nós como categoria, sem considerar outros atores importantes que são os estudantes e o envolvimento da sociedade como um todo nessa discussão (incluindo o papel informativo que a mídia deveria assumir).
Estamos completamente apartados das universidades por exemplo, que são aquelas que criam diretrizes que muitas vezes são observadas por nós, docentes, e pelas escolas, na preparação dos estudantes para os vestibulares. Muitas universidades não se pronunciaram sobre as mudanças que ocorrerão nos exames de ingresso e esse é o momento de repensarmos formas mais democráticas e menos conteudistas.
Estamos vendo escolas que estão massacrando seu corpo docente e estudantes em jornadas longuíssimas em frente aos seus computadores e outros estudantes no mais completo abandono do seu direito de acesso à aprendizagem de qualidade por não terem acesso às ferramentas de comunicação necessárias.
Correio da Cidadania: A Carta Aberta da categoria para a sociedade começa com a fala de uma mãe de aluno dizendo à imprensa ser impossível continuar o ano letivo. A quais dificuldades ela se refere e como os alunos sentem essas mudanças?
Professores autoconvocados: Acredito que a maior dificuldade que vemos é a discrepância de acesso e de efetividade do processo entre as escolas particulares de elite e as demais, principalmente as redes públicas Brasil afora. Ainda que os estudantes tenham acesso a conteúdos, como podemos aferir verdadeiramente o aproveitamento de um processo de aprendizagem que não seja apenas bancário (fazendo referência ao patrono da educação brasileira Paulo Freire), que tem como pressuposto um estudante inerte, apenas como espectador, mas não como parte integrante e realmente importante do processo de aprendizagem que se desenvolve em uma relação horizontal e permanentemente construída. A educação não pode ser mecanizada, o estudante não está assistindo uma série, “maratonando” conteúdos que devem ser memorizados de maneira acrítica.
Correio da Cidadania: Quais as principais preocupações da categoria no momento presente?
Professores autoconvocados: A maior preocupação agora é com o retorno às aulas marcado para 8 de setembro no estado de SP. Se programar para um retorno das aulas presenciais em um contexto de mortes ascendentes e de ampliação de casos de infectados é uma insanidade. Não há justificativas para promover a exposição de tantas pessoas. É necessário lembrar que cada professor entrará em contato com pelo menos 30 a 35 estudantes por hora de aula. Serão os mais expostos. Como faremos com aqueles que possuem algum tipo de comorbidade? E os estudantes que não poderão por razões de saúde estarem nas aulas presenciais? Não existem diretrizes, não há um planejamento adequado nem há um debate com as comunidades escolares ou com a sociedade.
O ENEM marcado para janeiro de 2021 acaba exercendo uma pressão extra sobre os docentes das escolas particulares, principalmente em um ano atípico como esse. Os colégios estão abertamente querendo mostrar através de índices, de aprovações, de resultados, uma justificativa para todo excesso de trabalho que estamos enfrentando, principalmente professores que atuam no Ensino Médio.
Não existe possibilidade de retomar o tempo perdido, deveríamos repensar a necessidade de dar conta de todos os conteúdos. Deveríamos questionar o modelo educacional que estamos promovendo, o valor do currículo uniformizado e engessado, a quantidade de dias letivos, os objetivos que buscamos como sociedade ao promover a educação.
A patronal no momento ajuda as escolas a extrair benefícios dessa situação. Aproveitamos o espaço para fazer uma denúncia: escolas de elite, de grande porte, colocaram seus professores na MP, reduziram salários ou suspenderam contratos de trabalho tendo uma diminuição de receitas com as mensalidades muito pequena, mas aproveitando para colocar sua folha salarial na conta do Governo Federal. As escolas encontraram seus caminhos para seguir gerando lucro mesmo nesse contexto de pandemia.
Nota:
*As respostas foram redigidas coletivamente por um grupo de trabalho do coletivo de professores autoconvocados. Os professores pediram para não serem identificados na matéria.
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Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.