Ficção ou realidade?
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- Marcelo Pompêo
- 15/08/2020
Recentemente, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) apresentou aos coordenadores dos programas de pós-graduação o documento intitulado Proposta de Aprimoramento da Avaliação da Pós-Graduação Brasileira para o Quadriênio 2021-2024 – Modelo Multidimensional (1). O documento visa apresentar proposições sobre o SNPG (Sistema Nacional de Pós-gradução) e o modelo multidimensional e seus respectivos indicadores, já delineados pela Comissão em relatório anterior, o qual foi aprovado pelo Conselho Superior da Capes em 2018.
Ao ler esse documento é possível observar algumas inconsistências com o que hoje está em prática na área da pós-graduação e na pesquisa no país. A pesquisa há tempos está subfinanciada no Brasil. A pós-graduação cresceu muito no país, mas os recursos financeiros não cresceram à altura, pelo contrário, têm sofrido reduções significativas nos últimos anos.
Há muito ocorrem bancas de defesas por vídeoconferência e a pandemia só veio consolidar esse cenário pouco produtivo, visto que exclui a possibilidade do importantíssimo contato cara a cara dos estudantes com os membros da banca, normalmente experientes pesquisadores na área. Há pouca verba para idas ao exterior, seja para alunos ou mesmo professores. Para ampliar a internacionalização há que disponibilizar mais verbas para bolsas de longa e de curta duração (sanduíche), para professores e alunos brasileiros irem ao exterior.
A internacionalização não crescerá só com o autofinanciamento, contando com os parcos salários dos professores e pesquisadores, e com base nos atuais valores de bolsas praticados pela CAPES e pelo CNPq, será algo impossível de ser realizado pelos alunos bolsistas. Mas ao mesmo tempo é fundamental ter mais verbas para receber colegas estrangeiros. Na ciência, a troca de experiência é basilar para o crescimento profissional e para a própria ampliação do conhecimento.
As verbas do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) cada vez mais não atendem à crescente demanda da pesquisa e inovação, mas neste governo sofreram mais cortes ainda. Tanto no CNPq como na CAPES, bolsas de estudos em vários níveis foram cortadas desde 2019. Os valores das bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado da CAPES e do CNPq, há tempos não são adequadas, são valores irrisórios para a manutenção dos estudantes e profissionais em período integral na pesquisa. São mais uma ajuda de custo. Como fazer pesquisa de qualidade sem adequado fomento à formação de recursos humanos e de verbas para a pesquisa?
Nossas próprias instituições pouco investem em pesquisa. Na realidade paulista, em outros momentos já tivemos recursos até para a manutenção de equipamentos. Hoje nos departamentos brigamos pela divisão da reserva técnica institucional, oferecida como contrapartida pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo). Esta nem deveria existir, já que não caberia a ela custear a manutenção da própria universidade ou dos institutos de pesquisas. Também pagamos diárias (com e sem pernoite) para técnicos e motoristas da instituição, bem como combustível para as saídas para os trabalhos de pesquisa a campo.
Com base em recente norma do governo federal, dificilmente haverá progressão na carreira, nem mesmo serão computados os tempos para biênios, quinquênios ou para licenças prêmios, por exemplo, até final de 2021 (2 e 3). Mas também recentemente fomos brindados com aumento nas alíquotas para efeito de recolhimento visando à aposentadoria, representando redução no vencimento líquido mensal. Para este ano, tivemos zero de aumento salarial, e provavelmente o zero seguirá para o próximo ano também, mas foram porcentagens irrisórias de aumentos em anos anteriores recentes.
Tudo isso é um conjunto de desestímulos ao bom desenvolvimento de nossas atividades de ensino, pesquisa e extensão. As universidades e institutos públicos, principalmente, são as mais importantes linhas no enfrentamento da pandemia, mas seguem penalizados com diminuto orçamento para a pesquisa, e também com diminutos salários, mas principalmente mais sentido nos níveis iniciais da carreira docente, o que é um desestímulo aos jovens doutorandos. E o que dizer do ministro da Educação recém-saído? No mínimo, se mostrou inábil para a condução de importante ministério, que em muitos aspectos, define o futuro do Brasil.
Na página 5 desse documento temos: "o Brasil precisa ampliar os investimentos na formação qualificada de recursos humanos, infraestrutura e continuidade de ações para alcançar o nível de doutores por 100 mil habitantes dos países desenvolvidos". Como atingir essa meta se a própria CAPES cortou bolsas de estudos e verbas para a pesquisa? O cenário atual não é promissor e já indicam que no futuro essa meta não será atingida.
Relativo às bolsas, a própria CAPES não reconhece os esforços de pesquisas de colegas, que questionam as recentes alterações nos critérios para as concessões de bolsas no país. Segundo a CAPES, as novas normas vigentes privilegiam regiões com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), mas segundo esses colegas, que com minúcia analisaram dados, pelo contrário, seguem privilegiando regiões com maiores IDH, além de privilegiar programas avaliados com notas 6 e 7, em detrimento de programas com notas 3 e 4. Como melhorar os indicadores de qualidade sem investimentos em todos os programas de pós-graduação?
Nesse documento da CAPES, na página 6 temos: "Enquanto em 1998 cientistas brasileiros publicaram pouco menos que 12 mil artigos, número que colocava o país em 20º lugar no ranking mundial, menos de vinte anos depois, saltamos para 13º posição, com mais de 65 mil artigos. Ainda de acordo com os dados fornecidos pela Web of Science Group no referido relatório de 2019, o Brasil publicou mais de 360 mil artigos no período de 2013 a 2018, ficando assim à frente, por exemplo, dos Países Baixos, da Suécia, Suíça e da Rússia, para citar alguns com mais longa trajetória científica e de formação de recursos humanos. O aumento no número de artigos não deve, entretanto, ser avaliado sem se considerar o número de citações que cada publicação recebe. Quanto ao fator de impacto, o Brasil aumentou de 0,73 em 2011 para 0,86 em 2018 (Web of Science 2019). Portanto, o desafio do SNPG deve ser continuar a expansão com foco na qualidade das produções acadêmicas".
A CAPES quer mais e melhores pesquisas com menor número de bolsistas na pós-graduação e baixos recursos para as pesquisas? Quer maior número de publicações, com maior qualidade, reduzindo o número de bolsas e com subfinanciamento da pesquisa? Relativo às universidades públicas federais, estas passam por grave estrangulamento financeiro, o que sem dúvida impactará de modo negativo no número e na qualidade das publicações brasileiras, mas também na manutenção e na atualização de seus laboratórios de pesquisas. Com base na sólida queda do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) observado este ano, esse estrangulamento também será sentido nas universidades estaduais públicas paulistas.
Segue também na página 6: "Espera-se que o novo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, com as novas regras favorecendo a criação de um ambiente de inovação mais dinâmico no Brasil, possa alterar rapidamente esse cenário". De fato, com o que tem sido aplicado como política pública pelo Ministério da Educação, CAPES e CNPq, no futuro imediato o cenário será bem alterado, mas não para melhor. Como criar ambiente de inovação com restritos recursos financeiros para subsidiar o fomento à pesquisa?
Algumas instituições na instância federal têm atribuído balbúrdia às universidades públicas, insistem sobre plantações ilegais de maconha, que estas estão recheadas de drogados, que têm pervertidos sexuais e onde o nudismo é moda. Como criar esse ambiente de inovação quando as próprias instâncias superiores federais geram instabilidade na gestão das universidades federais? Têm até interferindo nas indicações de reitores, não acatando as indicações de suas respectivas comunidades, mas indicado alinhados aos interesses do Ministério, quase uma intervenção. Nesse cenário, como fazer mais e melhor com menos? Ou essa frase da pág. 6 dá claras indicações de que há que acelerar a entrega das instalações de pesquisas das instituições públicas aos interesses da iniciativa privada?
Segue na página 7: "ao longo das últimas décadas o foco da pós-graduação brasileira foi, basicamente, a formação de docentes e pesquisadores para o próprio sistema acadêmico nacional. Diante dos novos cenários, o SNPG deve ampliar a sua atuação na formação de pessoal qualificado para todos os segmentos da sociedade, com foco no desenvolvimento econômico, social e ambiental." Como atingir essa meta sem investimento em sociologia e filosofia, por exemplo?
A clássica pós-graduação stricto sensu compreende ”programas de mestrado e doutorado abertos a candidatos diplomados em cursos superiores de graduação e que atendam às exigências das instituições de ensino" (4), e assim seguirão, formando pensadores e pesquisadores, que empregam o método científico, baseado em evidências e em comparativo com o já conhecido na área, as famosas referências bibliográficas. Os mestrandos e doutorandos no presente já são bem formados e podem atuar em todos os segmentos da sociedade, mas com cada um na sua área de formação.
Há mais para comentar sobre esse documento da CAPES, mas hoje vivemos num país sem prioridades para a ciência e a tecnologia. Falar ou escrever não basta, há que liberar mais verbas.
O desejável é que o Ministério da Educação, a CAPES e o CNPq sejam compostos por quadros vindos e comprometidos com a ciência e tecnologia, com a formação dos pesquisadores brasileiros e com as instituições que desenvolvem pesquisas, mas que também ouçam os pesquisadores e que levem em consideração seus estudos para balizar as políticas nacionais relacionadas à ciência e tecnologia.
Na ciência, não há porque virem coisas goela abaixo e desconectas da realidade da bancada do laboratório. Há que ser um somatório de forças, em direção ao bem comum.
Notas:
1) http://www.posecologia.ib.usp.br/noticias/352-mudancas-na-avaliacao-capes.html
2) https://www.adusp.org.br/index.php/carreira-docente/3745-garantia-contagem
3) https://www.adusp.org.br/index.php/juridico/noticias-gerais/3738-progressao-acao
4) http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=13072:qual-a-diferenca-entre-pos-graduacao-lato-sensu-e-stricto-sensu
Marcelo Pompêo é professor do Instituto de Ecologia da USP.