O esgotamento da saúde brasileira em 2020
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- Paulo Spina
- 23/12/2020
A pandemia da Covid 19 produziu uma situação completamente inesperada e abalou formas de organização da sociedade em diversos espaços-tempos. Uma crise sanitária que evidenciou uma crise econômica, que já existia, e ambas apontam para uma crise de saúde mental em curso. Apesar dos desdobramentos rápidos e inesperados que nos atingiram, a pandemia está diretamente vinculada ao metabolismo social da normalidade da estrutura capitalista e interligada a problemas como as desigualdades sociais e as mudanças climáticas.
É verdade que o esgotamento sentido com a realidade pandêmica atingiu simultaneamente o conjunto da sociedade, mas também é verdade que atingiu as pessoas em intensidades diferentes. A interseccionalidade de opressões amplificou o contexto trágico para a população mais pobre, sobretudo, para as mulheres onde o aumento da violência doméstica escancarou que a nossa suposta normalidade escamoteava formas de sofrimento históricas e estruturais.
A ciência – base da organização da saúde púbica – nunca antes na história deste país foi tão atacada. No território nacional, o fenômeno internacional das notícias falsas, tem figura pública influente que dissemina muitos absurdos como se fossem piadas inofensivas feitas no churrasco com amigos. Enquanto as evidências da realidade causavam a descida vertiginosa na bolsa de valores e diversos locais do mundo realizavam o necessário distanciamento, a nossa saúde ia sendo atacada pela mentira, pela disputa política, pelo caos em forma de arroubos verborrágicos.
No meio desse pandemônio (1) nos vimos a nos segurar na figura de um ministro da saúde de origem ruralista que diante de tanta irracionalidade buscava equilibrar-se entre os delírios criminosos do seu chefe e as evidências científicas trazidas por sua própria equipe do ministério que, em geral, fizeram carreiras estruturando o Sistema Único de Saúde.
Enquanto o número de morte aumentava exponencialmente no país, a maneira que as pessoas encontravam de protestar era batendo panelas nas janelas. Os trabalhadores da saúde, por anos desprezados, foram alçados a heróis nacionais por não terem outra opção do que a de se arriscarem em meio ao caos, por vezes sem os equipamentos de proteção individuais adequados.
Em contraposição as panelas, nós trabalhadores da saúde ouvíamos exaustos – quando não estávamos trabalhando – os aplausos nas janelas que expressavam reconhecimento, mas que não mudaram a nossa difícil realidade com inúmeras vidas perdidas de profissionais da saúde. É bom que se diga que – para além de uma suposta linha de frente formada por médicos e enfermeiros – toda uma gama de outras categorias como, por exemplo, trabalhadores da limpeza dos hospitais, arriscaram suas vidas e de suas famílias sem ouvir aplausos, mas apenas o “e daí?”.
Para mim – mas com certeza para muitos outros trabalhadores da saúde – o medo virou algo cotidiano que me assombrava de dia e nos pesadelos à noite. Sonhar que estava sem máscara era algo constrangedor que interrompeu meu descanso abruptamente em algumas noites. O sofrimento adquiria contornos dramáticos ao pensar sobre levar a esta complexa doença para minha família.
Neste momento eu sentia o esgotamento de inúmeros cálculos e microdecisões para manter uma mínima distância supostamente segura para realizar meu trabalho. Entendi que promover o bem comum neste momento significava conversar o mínimo possível com outras pessoas, repetir inúmeras vezes e detalhadamente rituais de limpeza, jamais dar carona para os colegas de trabalho, comer minha comida no refeitório o mais rápido possível, enfim, tornar-me uma pessoa estranha para mim mesmo, um ser antissocial.
Em algum momento a categoria de trabalhadores da saúde encontrou forças para reunir-se (virtualmente) e escrever um necessário e ainda atual manifesto – A Vida Acima do Lucro. Apesar do esgotamento apontamos um caminho que parte da sociedade parece compreender de forma mais nítida depois dessa realidade pandêmica: o necessário fortalecimento do SUS e não transformação da saúde em mercadoria.
Enquanto passavam os meses e a contagem do número de mortos atingiam números catastróficos nós vivemos a militarização do Ministério da Saúde com um representante da barbárie a injetar doses cavalares de paralisia nas políticas de saúde, potencializando os riscos para todos os brasileiros. Sem políticas integradas e promovendo disputas sem pé nem cabeça o resultado foram vidas perdidas para a pandemia, testes desperdiçados e uma batalha sobre as vacinas em que a promoção da desinformação é o legado mais perverso para o país. Sem falar ainda do recente e gravíssimo ataque as políticas de saúde mental.
Ao olhar – como trabalhador da saúde – para a saúde pública em 2020 não há como não sentir-se completamente esgotado. Não há qualquer forma de reconhecimento material para esta nossa classe que se mostrou tão essencial.
Nem, ao menos, qualquer boa notícia em vista. Continuamos a resistir. O campo de luta agora é levar verdades para a população sobre as vacinas. Só posso dizer que demissão e impeachment são pouco para os que comandam a desordem e o regresso.
Nota:
1) Paulo “Galo” Lima, líder dos entregadores antifascistas, fez a formulação de que antes da pandemia já vivíamos o “pandemônio”.
Paulo Spina é trabalhador da saúde mental e autor do livro publicado “Ofensivas - a potência do não retorno à normalidade”