Correio da Cidadania

Não somos heróis

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Não somos heróis.

O herói parte de um mundo comum, algo estático, até que uma situação inusitada o chama à aventura. Os profissionais de saúde, em nossos cotidianos, encaramos jornadas exaustivas, trabalhamos com dor, saímos do velório do melhor amigo e vamos direto para o plantão, faltamos ao aniversário do sobrinho, infelizmente já é nossa rotina. Neste ano de pandemia, em particular, enquanto a saúde mental de muitas pessoas era desafiada pelo confinamento, fomos exigidos na linha assistencial, expostos ao vírus potencialmente letal. De qualquer maneira, não há aqui nem mundo comum nem aventura.

O herói titubeia, recusa o chamado. A nós, por imposição ética, não cabe qualquer hesitação. Ao plantão escalados nos apresentamos, mesmo que haja medo, mesmo que haja dor. A obrigação é estar lá.

O herói encontra seu mentor para seguir a jornada, nós muitas vezes encontramos com as nossas próprias consciências, e com nossas famílias que nos perguntam por que e até quando. Mas garanto que poucas coisas dão uma sensação maior de solidão do que ver uma linha reta em um monitor, a irreversibilidade da perda de uma vida e assinar uma declaração de óbito, principalmente em doenças que poderiam ter sido prevenidas.

O herói cruza seu limiar uma vez na história, nós vivemos no limiar, e o cruzamos e retornamos todos os dias.

O herói tem seus aliados, aqui somos muitas vezes “nós por nós” mesmos, e temos de procurar dar apoio um ao outro. Felizmente, na pandemia atual tivemos grandes aliados nas comunicações que tentaram conosco apresentar os fatos frente ao adversário comum: a desinformação como método de manter um país em caos, sob descontrole. Nos Estados Unidos e no Brasil os nossos maiores adversários foram os presidentes das nações que fizeram tudo o que podiam para a situação se tornar incontrolável.

O herói se refugia numa caverna profunda, e nós, quando é possível, na sala dos plantonistas. Ou mesmo na profundidade de nossos sentimentos.

As provações do lado de cá são corriqueiras, muitas vezes em tensão com demandas infinitas que precisam ser acolhidas, mas por falta de Estado: quando falha o acesso à educação, à assistência social, aos direitos em geral, a porta que sobra é a unidade de saúde, e que consigamos entregar o nosso melhor também quando isso ocorrer – todos os dias.

As recompensas possíveis estão guardadas, surgem olhares de gratidão, recebemos algumas cartinhas bonitas que de alguma maneira nos motivam a persistir e, enfim, os nossos ordenados e porque somos trabalhadores.

Na estrada de volta às nossas casas, sabemos que será um momento curto para estar com a família. Olhar nos olhos e muitas vezes pedir desculpas. Desculpem meus filhos pela lição acumulada, desculpem nossas companheiras e companheiros pelas noites sós, desculpem meus pais pelos dias sem nenhuma ligação, desculpem meus amigos por não receberem notícia, desculpem meus sobrinhos por nove meses sem contato, desculpem meus avós por anos sem visita.

Mas o herói renasce, ressurge, ressuscita – e nós nos despedimos de nossos amigos que não voltam, alguns por morrerem na pandemia, outros tantos porque somos o grupo de profissionais mais expostos a problemas de saúde mental e, inclusive, ao suicídio.

O herói retorna com o elixir que resolve a peste. Aí está o maior engano de todos, e muitos usam esse subterfúgio para vender falsas esperanças. Aqui não tem herói, aqui não tem anjo. Aqui tem sangue. E tem também um compromisso ético por sabermos que temos de dar o nosso melhor pelo bem comum e, aliás, isso se estende ao conjunto da sociedade. Cada vez que uma pessoa oferece o melhor de si, caminhamos para uma sociedade mais harmônica e nos aproximamos da Felicidade.

Às pessoas de boa vontade que nos têm em elevada consideração, muito obrigado, mesmo, vocês nos passam os melhores sentimentos. Mas, por favor, não nos tratem como heróis, porque quem cria esse discurso o aproveita para não nos oferecer as melhores condições de trabalho, e a narrativa de que podemos prescindir de nossas vidas desresponsabiliza quem deveria zelar por todos, inclusive por nós também. Por fim, ofende a memória de todos os que morreram e adoeceram, pela infecção, por acidentes de carro, por suicídio, por infartos fulminantes frente à tensão.

E quando lembrarem de nós, médicos, lembrem por justiça dos profissionais de enfermagem que estão lado a lado, dos demais profissionais de saúde, de serviço social, os profissionais administrativos e de manutenção que fazem os serviços funcionarem, dos porteiros, seguranças e profissionais de limpeza que são de fato a primeiríssima linha.

Aqui não tem mito. É a vida real.

Feliz 2021!


Referência: The Writer’s Journey (Christopher Vogler)

Gerson Salvador é médico, infectologista e escritor. Em 1993 foi vencedor do concurso "Centenário Mário de Andrade" da Prefeitura de São Paulo, em 2013 participou da antologia "Sobrenome Liberdade", e em 2014 lançou o livro de contos "O pior médico do mundo".

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