Correio da Cidadania

“Direção do IBGE confundiu população, mas gestão da pandemia obriga adiamento do Censo Demográfico”

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O adiamento pelo segundo ano consecutivo do Censo Demográfico brasileiro causou indignação e mais uma onda de críticas na opinião pública. Isso se explica pelo alinhamento da direção do IBGE ao governo federal e os cortes de orçamento para o estudo. No entanto, de acordo com a entrevista concedida ao Correio pela direção do sindicato dos trabalhadores do IBGE, o adiamento é correto diante da desastrosa gestão da pandemia no Brasil e do rebaixamento dos parâmetros do Censo. O problema é que sua realização parece improvável também para 2022.

“Dada a inviabilidade de realização em 2021, seria necessário um acordo político que garantisse a disponibilização da verba em 2022. Nesse sentido, a realização em 2022 está desde já ameaçada. Para realização do Censo esse ano, a prova para seleção de recenseadores, por exemplo, deveria ocorrer imediatamente, reunindo cerca de um milhão de candidatos em locais fechados. Outras etapas imprescindíveis, como o teste de homologação de equipamentos, já se encontravam atrasadas ou paralisadas, por razões sanitárias, antes da aplicação do corte orçamentário”, explica a ASSIBGE, sigla para Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatísticas.

Na entrevista, a direção da associação separa o alinhamento ideológico da direção anterior do IBGE, representada na figura da ex-presidente Susana Guerra, das condições objetivas de realização do Censo. Diante da postura de negacionismo científico e precarização do estudo, não seria possível cumprir os objetivos do trabalho, especialmente em áreas de difícil acesso, como terras indígenas e quilombolas.

“Na medida em que o Censo é um elemento estrutural do sistema estatístico nacional, informações mal coletadas prejudicariam toda a produção de informações sobre a população e a economia, ao longo da década seguinte. Além disso, na medida em que o Censo produz indicadores sociais para cada município, ele é um instrumento para avaliação de políticas públicas nesse nível de governo, o que pode incomodar poderes locais”.

E, como em outras fundações e autarquias de governo, uma análise das relações políticas e trabalhistas no contexto do governo Bolsonaro é inevitável. “Existe um total distanciamento entre os servidores, aqueles que efetivamente tocam as pesquisas da instituição e o seu alto comando. A direção do IBGE não dialoga com técnicos e muitas vezes ignora os relatórios e resultados de testes para fazer falas públicas sobre as pesquisas da instituição”.

A entrevista completa com a ASSIBGE pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como você analisa o adiamento do Censo Demográfico do Brasil, tanto em 2020 como em 2021? Qual a gravidade deste fato em si?

ASSIBGE: É um grande prejuízo, imposto pela tragédia da pandemia.

Internacionalmente, o adiamento das operações censitárias em função da pandemia foi generalizado. Entre 93 países que pretendiam realizar operações censitárias em 2020 ou 2021, ao menos 59 foram obrigados a alterar o ano de realização do Censo.

No Brasil, diante da gestão da pandemia, não haveria como ser diferente.

Correio da Cidadania: Nesse sentido, uma nota publicada pelo Instituto Questão de Ciência alega ser melhor não haver Censo em 2021, diante de todas as condições de corte de investimentos no IBGE e ainda a pandemia. Como explicar isso à opinião pública?

ASSIBGE: De forma geral, a opinião pública compreendeu bastante bem a necessidade de adiamento do Censo Demográfico em 2020. Dessa forma, não haveria, a princípio, dificuldades em comunicar a necessidade do adiamento também em 2021, uma vez que a situação neste ano é consideravelmente mais grave.

Infelizmente, a antiga presidente do IBGE, alinhada à lógica negacionista que predomina no governo federal, buscou no início de 2021 minimizar através de declarações o impacto da pandemia na operação censitária, o que gerou certa confusão na opinião pública.

Uma exposição mais transparente, por parte da nova gestão do IBGE, das razões técnicas que inviabilizam a realização do Censo em 2021 será importante para corrigir esse ruído.

Correio da Cidadania: O corte de orçamento era inevitável ou trata-se de uma demonstração do projeto de governo?

ASSIBGE: Dada a inviabilidade de realização em 2021, seria necessário um acordo político que garantisse a disponibilização da verba em 2022, bem como um patamar mínimo em 2021, que permita tocar as atividades preparatórias.

Nada disso foi sinalizado por enquanto. As verbas para 2021 eram de R$71 milhões pela proposta que saiu do congresso, mas o presidente reduziu ainda mais, para R$53 milhões. Esse valor é insuficiente para manter nesse ano o mínimo de atividades preparatórias necessárias para levar o Censo a campo no próximo ano.

Nesse sentido, a realização em 2022 está desde já ameaçada. É preciso lembrar também que o governo já havia reduzido o orçamento do Censo em duas ocasiões - a primeira ainda em 2019, ao reduzir o orçamento da operação de R$3,2 bilhões para R$2,3 bilhões. Depois em 2020, ao reduzir o orçamento para R$ 2 bilhões.

Correio da Cidadania: As condições sanitárias ditadas pela pandemia são reais impeditivos de se realizar o Censo?

ASSIBGE: É preciso lembrar que, embora o Censo estivesse previsto para o segundo semestre, as atividades preparatórias deveriam ter início com meses de antecedência. Assim, mesmo que se torça para uma evolução do cenário sanitário nos próximos meses, é preciso lidar com a calamidade atual.
Para realização do Censo esse ano, a prova para seleção de recenseadores, por exemplo, deveria ocorrer imediatamente, reunindo cerca de um milhão de candidatos em locais fechados.

Outras etapas imprescindíveis, como o teste de homologação de equipamentos, já se encontravam atrasadas ou paralisadas, por razões sanitárias, antes da aplicação do corte orçamentário.

Há dois aspectos dessa questão. O primeiro é o possível impacto da operação censitária na transmissão do vírus. Nós nos preocupamos com a saúde do pessoal ocupado no censo e na população em geral, mas entendemos que essa é uma avaliação que deve ser feita ouvindo profissionais da área de saúde pública e epidemiologia - é isso que temos tentado fazer, como sindicato.

O IBGE, como instituição, ainda não ouviu os profissionais da área, não apresentou à sociedade um protocolo de segurança sanitária, não adquiriu máscaras de proteção individual com as características consideradas importantes pelos especialistas da área.

O segundo aspecto é o impacto das condições impostas pela pandemia na qualidade da operação censitária. Como sindicato nacional, mantemos diálogo com trabalhadores de diferentes áreas do IBGE, envolvidos em diversos aspectos da preparação do Censo, e entendemos que a pandemia traz uma série de riscos à qualidade da informação que será coletada, afetando desde o processo de contratação e treinamento de recenseadores até uma eventual resistência da população em receber os recenseadores.

Correio da Cidadania: Qual a função principal de um Censo Demográfico? Que tipo de informação é solidificado e como influência na vida social?

ASSIBGE: A principal função do Censo é a contagem da população e dos domicílios. Essa informação, importante em si mesma, serve para atender a necessidades legais, como a de divisão de verbas em função da população de cada município, ou a aferição do número de deputados federais de cada estado, entre outras. Ela serve ainda para o correto planejamento e calibração de pesquisas amostrais, seja do IBGE ou de outros órgãos. Nesse sentido, o Censo é estruturante do sistema estatístico nacional.

Para além disso, o Censo coleta uma série de informações relacionadas às características demográficas e às condições de vida - características da habitação, da educação dos moradores, características do trabalho, migração, presença de deficiências física e mental, pertencimento étnico-racial, nupcialidade, fecundidade, entre outras.

Parte dessas informações é coletada regularmente pelo IBGE em pesquisas amostrais, mas coletá-las no Censo permite ofertar à sociedade uma informação desagregada para cada município, ou mesmo bairro, o que não é possível em pesquisas amostrais.

Correio da Cidadania: Movimentos indigenistas alegam que, diante do fortalecimento de suas articulações e afirmação cultural acumulados nos últimos anos, o número de autodeclarados indígenas aumentará no próximo recenseamento da população, o que não interessa ao governo Bolsonaro. Como vocês enxergam esse aspecto?

ASSIBGE: Esse é um dos motivos pelos quais o adiamento é importante. Um Censo feito de forma apressada ou improvisada tende a subestimar a população indígena, tradicionalmente invisibilizada. Recenseadores mal treinados ou mal supervisionados podem, por exemplo, classificar, erroneamente, indígenas como "pardos".

Além disso, a logística de acesso a áreas indígenas é mais difícil. A realização do Censo em 2021 exigiria deslocamento às áreas indígenas no mês de dezembro, em que a situação é particularmente agravada na região norte pelo regime de chuvas e cheias de rios. O adiamento para 2022 permite a realização em meses mais adequados, como ocorreu nos demais anos.

Lógica semelhante se aplica à população quilombola, que será quantificada pela primeira vez nessa operação censitária. Nesse caso, por se tratar de uma novidade, é preciso ainda mais rigor no planejamento, treinamento e supervisão da coleta.

Correio da Cidadania: Há outras questões sensíveis a serem levantadas pelo Censo que vão contra interesses atualmente fortes na política brasileira?

ASSIBGE: Na medida em que o Censo é um elemento estrutural do sistema estatístico nacional, informações mal coletadas no Censo prejudicariam toda a produção de informações sobre a população e sobre a economia, ao longo da década seguinte.

No longo prazo, tudo é prejudicado: apuração das taxas de desocupação, de pobreza, do PIB, da inflação etc. Nesse sentido, a precarização do Censo atende aos interesses de quem despreza e busca desacreditar a produção de dados estatísticos.

Além disso, na medida em que o Censo produz indicadores sociais para cada município, ele é um instrumento para avaliação de políticas públicas nesse nível de governo, o que pode incomodar poderes locais.

Sobre esse ponto, é preciso comentar sobre uma noção equivocada, às vezes reproduzida na sociedade civil, de que o Censo, se realizado em 2021, poderia trazer informações relevantes para o debate eleitoral de 2022. Embora algumas informações básicas e preliminares possam ser divulgadas rapidamente, como o quantitativo geral da população, a divulgação completa das informações coletadas exige um trabalho de verificação, processamento e análise bastante demorado, que inviabilizaria a divulgação antes das eleições de 2022, ainda que o Censo venha a ser realizado no final de 2021.

Basta lembrar o que ocorreu com o Censo de 2010, quando a maioria das informações, em especial as mais sensíveis politicamente, foram divulgadas mais de um ano após o fim da coleta.

Nesse sentido, esse prejuízo já estava dado desde o adiamento de 2020.

Correio da Cidadania: Qual a situação atual do IBGE, como tem sido o cotidiano dos servidores sob o governo Bolsonaro? Como é a relação com as chefias?

ASSIBGE: Existe um total distanciamento entre os servidores, aqueles que efetivamente tocam as pesquisas da instituição e o seu alto comando. A direção do IBGE não dialoga com técnicos e muitas vezes ignora os relatórios e resultados de testes para fazer falas públicas sobre as pesquisas da instituição. Isso ocorreu de forma recorrente quando a direção vendeu na opinião pública a ideia de que o censo será um censo misto do ponto de vista da coleta: parte presencial, parte por internet e parte por telefone. Os testes mostraram que essas outras formas são muito marginais e, portanto, não substituem a abordagem presencial. A coleta pela internet não alcança 3%, a coleta por telefone enfrenta inúmeros problemas, como vem revelando a Pnad Contínua em que o percentual de entrevistas não realizadas se aproximou de 50%.

O distanciamento das decisões da alta direção frente às rotinas e procedimentos consolidados e o desrespeito ao corpo técnico ficou bem claro logo depois da posse da presidente Susana Guerra em 2019 quando, diante da intervenção do projeto do censo e do corte irresponsável e injustificado do questionário, foram exonerados cerca de oito servidores de seus cargos, entre eles o diretor de pesquisa e o diretor de informática.

Esse autoritarismo na condução da casa tem se concretizado na falta de diálogo com a representação dos trabalhadores, a ASSIBGE-SN. Foram inúmeras solicitações de reunião sem retorno. Na gestão de Susana Guerra, que durou dois anos, foi feita uma única reunião. Na gestão de Eduardo Rios, que tomou posse na semana passada, já foram feitas duas solicitações de reunião até agora sem resposta do presidente.

Diante da falta de diálogo e da falta de retorno das chefias diretas aos trabalhadores, foi desencadeado um movimento conduzido por trabalhadores diretamente envolvidos no censo, principalmente pelos coordenadores de áreas. Este movimento gerou um manifesto nacional e outros de cerca de 10 unidades da federação, a demonstrar a inviabilidade de realizar os trabalhos presenciais do censo durante a pandemia, os riscos sobre a saúde dos trabalhadores e dos informantes, bem como os prejuízos técnicos de cobertura e qualidade para a pesquisa na medida em que aumentariam os domicílios fechados no censo.

Essas manifestações, assim como as manifestações do sindicato, foram ignoradas pela direção do órgão.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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