Correio da Cidadania

“Pandemia coloca ‘novo normal’ em que se naturaliza a desorganização, a desestruturação e o desmonte da saúde pública”

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A explosão de casos de covid-19 a partir de sua variante ômicron já é uma realidade e o ano de 2022 no Brasil parece condenado a mais uma etapa da luta por sobrevivência. Apesar de a vacinação segurar sua taxa de mortalidade, a ausência de políticas públicas de combate ao vírus volta a pressionar o sistema de saúde. Em São Paulo, são 5000 profissionais afastados e um estado de esgotamento físico e mental generalizado. Na quarta, 19, os médicos tentaram realizar uma greve de um dia, proibida pela justiça após ação impetrada pela prefeitura. De toda forma, a crise continua e é sobre ela que entrevistamos Victor Dourado, presidente do Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo.

Na conversa, o médico afirma que os planos de contenção da prefeitura são tanto insuficientes como conceitualmente equivocados. “Dizem que constroem leitos de hospital, mas não entenderam que é a atenção primária que entra em colapso. A variante é muito transmissível e por ora não há lotação de enfermaria e UTI, provavelmente haverá pressão sobre outros níveis da atenção de saúde nas próximas semanas, mas no momento são as UBS e prontos-socorros, a porta de entrada do sistema de saúde, que estão sobrecarregados e não têm condições necessárias para garantir o atendimento. É a principal demanda”.

Em suma, além de considerar insuficientes as 700 contratações prometidas pela prefeitura, critica as escolhas na aplicação de recursos financeiros e humanos. Em linhas gerais, considera que não há políticas públicas concretas de prevenção e estrutura para lidar com o aumento de casos. E, a despeito de certo “negacionismo” da Secretaria de Saúde, que de forma inexplicada não adquire testes de covid em quantidade suficiente, as contaminações irão aumentar exponencialmente nas próximas semanas.

“Se você não testa, realmente não tem caso. O nome disso é subnotificação, não é política de saúde pública. Em vez de se construírem tendas, gripários, ampliar equipes, aplicam medidas restritas, insuficientes, que se somam a uma previsão, tirada não se sabe de onde, de que deveremos ter uma redução de casos nas próximas semanas. Se olharmos globalmente, a ômicron tem crescimento exponencial e aqui estamos bem no começo da curva. Infelizmente, ainda vai aumentar muito”.

Na conversa, Dourado critica o histórico privatista dos governos e sua preferência pelo financiamento de Organizações Sociais, que descumpririam os próprios contratos assinados com o poder público e, já há muito tempo, operam a gestão do serviço na linha da precarização e da superexploração do trabalho.

“Vemos um cenário tenebroso de congelamento de investimentos na saúde, privatizações no setor e diminuição do financiamento geral na área. Entramos na pandemia dentro de tal cenário. Estamos diante do desmonte de setores estratégicos, desde a produção de vacinas a hospitais de referências. Nossa perspectiva é estancar o desmonte e avançar no sentido contrário: expandir a saúde pública e fortalecer o SUS. Vimos o reforço de uma identificação geral da população com o SUS, em relação à vacinação e à necessidade de um sistema que garanta atenção, internações, vacinas etc. É o legado que gostaríamos de ver”.

A entrevista completa com Victor Dourado pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: O que levou a categoria dos médicos a iniciar um movimento de greve, por ora impedida pela justiça?

Victor Dourado: Falo mais pelos médicos, mas acredito que a análise geral vale para os demais profissionais da saúde. Desde 2021, há um crescente desfalque nas equipes de atenção primária. As unidades de saúde contam com três ou quatro médicos, sendo que os contratos das Organizações Sociais (OS) preveem certo número de profissionais por Unidade Básica de Saúde (UBS). Muitas unidades não cobrem o número de profissionais determinado em contrato e, de outro lado, não há uma cobrança sobre suas gestões para que cumpram tal determinação e efetivem contratações.

Em dezembro, começamos a tentar diálogo com a prefeitura, pois além da falta de profissionais aumentou muito a quantidade de pacientes com sintomas de problemas respiratórios. E desde então tivemos uma explosão da demanda espontânea por casos de covid na sua variante ômicron.

Portanto, já tínhamos ao longo de 2021 uma equipe desfalcada e, de três semanas pra cá, uma crescente quantidade de profissionais foi afastada, o que sobrecarrega ainda mais o serviço de saúde, com um aumento de demanda nas UBS.

Para se ter uma ideia, num cálculo aproximado de desfalque de profissionais, temos no mínimo dois médicos deslocados pra atendimento de covid-19, sendo que as UBS existem para garantir também atendimento a gestantes, crianças, diabéticos, hipertensos, enfim, fazer o atendimento da chamada longitudinalidade (1). Agora, as unidades precisam dar conta de atender nas duas frentes: os casos de covid e aqueles de praxe da atenção primária.

Precisaríamos, no mínimo, de dois novos contratados por unidade. São 469 UBS na cidade, ou seja, já seriam mais de 900 médicos para tais atendimentos. Isso sem falar no desfalque das equipes. No dia 13, tínhamos 3160 profissionais afastados, sendo que uma semana antes eram 1000 afastados, considerando todas as funções (médicos, psicólogos, enfermeiros, auxiliares, agentes comunitários, funcionários técnicos e administrativos). Agora, de acordo com a última atualização de dados, são 5000 afastados.

Assim temos o desfalque nas equipes, que vem desde 2021, e o aumento da demanda dos serviços de saúde por problemas respiratórios.

Com este cenário, começamos a nos mobilizar e pressionar por mais medidas, concretas e urgentes, de contratação de profissionais. A principal pauta é a contratação de profissionais. Não dá pra estender as jornadas de trabalho, estão todos sobrecarregados tanto em ritmo como em horas trabalhadas. Não tem como sustentar a ideia de fechar as unidades mais tardes e abrir aos sábados. Não somos contra a expansão do atendimento, pelo contrário, é nosso desejo, mas não é possível sem contratar mais gente.

Finalmente, depois do aumento da visibilidade desta pauta, a Secretaria de Saúde aceitou se reunir conosco e anunciou a contratação de 700 profissionais, sendo 140 médicos. Mas isso não repõe nem o plano de contingência pra compensar os afastamentos por covid-19. Não garante nem o atendimento do aumento da demanda. É um número completamente insuficiente. E tais profissionais são voltados para as AMAS (Assistência Médica Ambulatorial); as UBS ficaram excluídas da iniciativa. Zero contratações nas UBS.

Dizem que constroem leitos de hospital, mas não entenderam que é a atenção primária que entra em colapso. A variante é muito transmissível e por ora não há lotação de enfermaria e UTI, provavelmente haverá pressão sobre outros níveis da atenção de saúde nas próximas semanas, mas no momento são as UBS e prontos-socorros, a porta de entrada do sistema de saúde, que estão sobrecarregados e não têm condições necessárias para garantir o atendimento.

Correio da Cidadania: Parece um erro administrativo muito grave não reforçar os postos de atenção primária, sabendo-se que há muitos meses ocorre um transbordamento de casos que seriam das AMAS e unidades mais emergenciais de atendimento para tais estabelecimentos primários.

Victor Dourado: É a principal demanda. No ano passado precisamos de leitos de UTI, ventiladores mecânicos etc. No momento, precisamos de mais profissionais na atenção primária. E, como dito pelo secretário na reunião, não tem teste de covid pra todo mundo. Vão parar de testar todo mundo e concentrar somente nos grupos de risco. Os pacientes que procuram as UBS em grande parte vão sair das estatísticas como casos de covid. Vão ser registrados como sintomáticos respiratórios, com síndrome gripal etc.

Este é outro problema, pois na avaliação da secretaria já há uma “estabilidade” com tendência de diminuição nas próximas semanas. No entanto, os próprios gráficos que nos foram mostrados apontam um aumento. Mas se você não testa, realmente não tem caso. O nome disso é subnotificação, não é política de saúde pública. Nossa preocupação é que não há medidas para garantir o suporte do sistema de saúde em meio ao aumento de casos.

Tememos que tais medidas demorem pra acontecer, mas a reunião deixou claro que não há plano para fazer a expansão do atendimento. Visa-se atender AMAS e negligenciam-se as UBS. Inclusive dizem que se a demanda diminuir volta-se ao funcionamento normal, quando estamos diante do aumento exponencial do número de casos e da demanda. É uma negação muito grande da realidade e a intenção da mobilização grevista foi dar visibilidade pra isso.

Outras categorias como enfermeiros, auxiliares, psicólogos, agentes comunitários, farmacêuticos, nutricionistas, se juntaram em apoio à manifestação em favor de contratações, mas até agora não tivemos nenhuma medida concreta.

O número de casos agora não é tão grande, mas nos EUA, onde o índice de vacinação completa é parecido com o nosso, ainda que o ritmo de aplicação seja lento, tivemos mais de 2500 mortos por dia na última semana. O número de mortos por dia é compensado por uma baixa letalidade entre vacinados, mas a partir de um número de casos muito grande acaba-se tendo alto número de mortes em números absolutos.

Isso preocupa e pode levar à sobrecarga a outros campos de atenção em saúde, além da primária. E com a falta de testes de covid, medicamentos e insumos, ficaremos sem a real noção do número de casos.

Correio da Cidadania: E por que não vai ter teste pra todo mundo?

Victor Dourado: Aí precisa perguntar ao secretário. Em vez de se construírem tendas, gripários, ampliar equipes, aplicam medidas restritas, insuficientes, que se somam a uma previsão, tirada não se sabe de onde, de que deveremos ter uma redução de casos nas próximas semanas.

Enfim, estipula-se um cenário totalmente fora da realidade do nosso dia a dia e também dos outros países. Se olharmos globalmente, a ômicron tem crescimento exponencial e aqui estamos bem no começo da curva. Infelizmente, ainda vai aumentar muito.

Correio da Cidadania: Ao que parece, diante das condições de trabalho e sobrecarga do sistema, não há tantos profissionais, em especial médicos, se disponibilizando a aceitar as ofertas de contratação. Ou seja, mesmo considerando que 700 contratações sejam suficientes, as vagas serão de fato preenchidas?

Victor Dourado: Com certeza também existe essa dificuldade de efetivar as contratações. Vimos muitos profissionais das UBS, que fizeram residência de família e comunidade, que gostam dessa área, abandonarem as unidades de saúde ao longo de 2021. Isso porque houve uma descaracterização do serviço. A ideia é fazer o atendimento longitudinal, isto é, acompanhar a vida e a família do paciente, com visão do todo. E o que se tornou constante foi o atendimento de pronto-socorro em unidades básicas. Isso gerou muita desmotivação, com muitos profissionais abandonando seus postos de trabalho.

Além disso, havia uma sobrecarga resultante da cobrança de metas das OS. A população sente que os atendimentos são muito rápidos, as pessoas dizem que “os médicos nem me olham direito” etc. Isso porque as OS cobram metas cada vez maiores, e com a diminuição dos profissionais a meta para os que ficam só aumenta. Em suma, as metas são muito altas e, assim, o tempo de consulta diminui. O atendimento longitudinal se descaracteriza e dá lugar ao atendimento de pronto-socorro.

Isso tudo gerou o desfalque crônico no atendimento em 2021 e as OS não se preocupam seriamente em repor a força de trabalho. Simplesmente não repõem.

Correio da Cidadania: No plano politico, vemos que esses administradores públicos se apresentam como opositores da gestão federal bolsonarista, marcada pelo negacionismo científico e até sabotagem ativa de qualquer política sanitária. Seriam “amigos da ciência”, “amigos da saúde pública”, diferentemente da extrema-direita. Mas no plano prático parece que continuam a submeter politicas e orçamentos públicos ao mero interesse dos mercados. Como você enxerga isso no plano estrutural?

Victor Dourado: Em São Paulo, antes da pandemia, o que estava em debate era a privatização de setores do Instituto Butantan. Começa por aí. Nosso principal instrumento público de combate à pandemia e produção de vacinas tinha sua privatização na mesa. Outro hospital emblemático é o Emilio Ribas, que já teve seu setor de UTI privatizado em favor da SPDM, uma OS. E é interessante notar, conforme estudo já realizado, que a taxa de letalidade na UTI administrada aumentou em relação à administração anterior dos médicos.

A precarização do trabalho e das condições de atendimento é a tônica dos governos municipal e estadual. Claro que o governo federal é o mal maior, é onde vemos as atitudes mais absurdas, como comemorar a chegada da variante ômicron. Mas aqui lidamos com uma afirmação de que o número de casos tende a se estabilizar. De onde tiraram essa noção? É simples: não vão mais fazer testes. Assim diminui mesmo.

E quais as medidas gerais? Deixar a população circular. Não há mais medidas de restrição de trânsito, medidas de isolamento, aumento da proteção das pessoas. As medidas apenas sobrecarregam e precarizam os profissionais de saúde. As filas de 5, 6 horas que as pessoas têm enfrentado nos locais de atendimento é produto de tal política, que nega o aumento do número de casos.

Na reunião com o secretário de saúde ele disse, na nossa cara, que não há sobrecarga e o aumento de casos era tudo mentira. Disse textualmente que os profissionais de saúde mentem. Assim é fácil administrar. Basta ignorar a realidade que as coisas “se resolvem”.

É a situação toda que enfrentamos e por isso nos mobilizamos, pra sermos escutados pelos administradores públicos e fazermos nosso clamor chegar à população.

Correio da Cidadania: Na visão de vocês, o que poderia configurar uma agenda positiva de políticas públicas para a saúde no contexto, e também além, da pandemia?

Victor Dourado: Vemos um cenário tenebroso de congelamento de investimentos na saúde, privatizações no setor e diminuição do financiamento geral na área. Entramos na pandemia dentro de tal cenário. Deveríamos usar a pandemia pra repensar os rumos da saúde no Brasil. Estamos diante do desmonte de setores estratégicos, desde a produção de vacinas a hospitais de referências. É um processo anterior à pandemia.

Nossa perspectiva é estancar a sangria, estancar o desmonte e avançar no sentido contrário: expandir a saúde pública e fortalecer o SUS. Vimos o reforço de uma identificação geral da população com o SUS, em relação à vacinação e à necessidade de um sistema que garanta atenção, internações, vacinas etc. É o legado que gostaríamos de ver.

Porém, infelizmente, o que vemos é avanço das OS, da transferência de recursos públicos para o setor privado e desestruturação de setores estratégicos em relação à saúde no Brasil. Infelizmente, vemos neste momento mais agudo a necessidade da contratação de profissionais de saúde primária e nem isso é garantido. Prevalece a desassistência: faltam exames laboratoriais, estrutura, profissionais que atendam a população; vemos contratação via Pessoa Jurídica, mais barata e com menos garantia trabalhista, isto é, estamos diante de uma organização do sistema de saúde pela via mais precária. Não se tem em vista a qualificação mais sólida do sistema de saúde, tanto agora como para depois da pandemia.

Devíamos contratar profissionais, estruturar uma rede de saúde de qualidade, com equipes multiprofissionais, ampliação da contratação de profissionais para atenção primária, fortalecimento de laboratórios públicos, fortalecimento da pesquisa. Mas vemos o contrário, infelizmente: o enfraquecimento de todas as políticas, desorganização da saúde, descoordenação dos níveis de atenção. Tudo ao contrário do que deveria ser. Infelizmente, a pandemia coloca um “novo normal” onde se naturaliza a desorganização, a desestruturação e o desmonte da saúde pública.

Nota:

1) De acordo com o estudo de Ligia Giovanella e Elenice Machado da Cunha, publicado pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), o conceito de longitudinalidade pode ser entendido a partir da “identificação da unidade básica como fonte regular de cuidado, vínculo terapêutico duradouro e continuidade informacional”. Ver PDF aqui.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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