“Acredito que justiça pacificará entendimento sobre vínculo empregatício entre empresas de aplicativos e trabalhadores”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 09/02/2022
Em meio ao caos permanente sob o qual vivem os brasileiros, alguns fatos do interesse de milhões de trabalhadores passaram despercebidos no final de 2021. Em Brasília, a 3ª turma do Tribunal Superior do Trabalho formou entendimento a respeito do vínculo empregatício entre empresas de aplicativos e seus prestadores de serviço, tais como Uber, Ifood e transportadoras. Já em São Paulo, a Câmara Municipal da cidade promoveu a chamada CPI dos Aplicativos, que inquiriu executivos de tais empresas a respeito de suas contribuições tributárias e resvalou para questões trabalhistas. Em entrevista ao Correio, o advogado Ruslan Stuchi comentou as novidades neste ramo da relação Capital e Trabalho.
“O direito é o conjunto de normas que regula a sociedade, que passa por transformações, a exemplo das transformações digitais, que vão chegar ao campo do direito. São casos novos e as decisões de tribunais interferirão de forma positiva ou negativa na sociedade. Mas acredito na existência de vínculo empregatício e que a justiça pacificará entendimento de que, ao preencher requisitos de vínculo, o empregado adquire direitos e as empresas devem contribuir sobre isso”.
Favorável à regulamentação do vínculo entre empresas digitalizadas e seus prestadores de serviço, Stuchi afirma haver motivos suficientes para reconhecimento da relação entre ambos, algo que tem avançado em outros países, e ressalta que legislações trabalhistas não podem ser feitas sem observação do bem estar de trabalhadores.
“Há uma relação de subordinação e necessidade de respeito às normas do aplicativo. Existem prazos a cumprir, atividades a realizar, o que caracteriza subordinação. Por isso deve se enquadrar tais prestadores como empregados”.
A entrevista completa com Ruslan Stuchi pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você acompanhou a CPI dos aplicativos na Câmara Municipal de São Paulo? A CPI não se limitou demais a um foco meramente fiscal?
Ruslan Stuchi: A CPI enfatizou a segurança do passageiro/usuário e a segurança do prestador de serviço, tendo questionado a tais empresas de aplicativos se eles passam por cursos ou capacitações e coisas do tipo. E teve também um foco sobre os impostos, algo pouco debatido até agora.
Já o debate sobre a questão trabalhista não teve muita efetividade, pois o legislativo da cidade não pode determinar se há obrigatoriedade de vínculo empregatício ou não entre essas empresas e seus prestadores de serviços, já que a lei trabalhista é federal. Mas o judiciário julgará essa questão futuramente.
Correio da Cidadania: Um dado que impressiona é que cerca de 5% da população da maior cidade do país está cadastrada como motorista do aplicativo. Como enxerga o avanço do entendimento jurídico sobre vínculo de trabalho entre empresas de aplicativos e trabalhadores?
Ruslan Stuchi: É um número impressionante, muita gente. O percentual de ativos é até menor, já que alguns só desempenham o trabalho aos finais de semana ou no momento estão parados.
Certamente, os entendimentos jurídicos são uma novidade. O direito é o conjunto de normas que regula a sociedade, que passa por transformações, a exemplo das transformações digitais, que vão chegar ao campo do direito. São casos novos e as decisões de tribunais interferirão de forma positiva ou negativa na sociedade.
Mas acredito na existência de vínculo empregatício e que a justiça pacificará entendimento de que, ao preencher requisitos de vínculo, o empregado adquire direitos e as empresas devem contribuir sobre isso.
Correio da Cidadania: Para além das empresas investigadas, temos visto outros serviços de entrega e transporte fornecido por empresas privadas que prometem prazos cada vez mais curtos de entrega ao consumidor. Como é o cotidiano de um trabalhador de aplicativo nesta relação?
Ruslan Stuchi: Penso que vale falar do requisito de vínculo empregatício. Um dos requisitos do vínculo é a pessoalidade. O prestador de serviço não pode terceirizar sua função. A pessoa cadastrada tem de trabalhar por si própria, nunca pode passar o serviço para alguém, mesmo que a empresa para a qual presta serviço não a supervisione pessoalmente. Há, portanto, uma relação de subordinação e necessidade de respeito às normas do aplicativo. Existem prazos a cumprir, atividades a realizar, o que caracteriza subordinação. Por isso deve se enquadrar tais prestadores como empregados.
Correio da Cidadania: A conjuntura política é de governos que avançam contra direitos trabalhistas e atuam invariavelmente em favor do interesse empresarial. Não está na hora de debatermos novas legislações trabalhistas à luz de novas relações de trabalho ao invés de simplesmente eliminar legislações trabalhistas?
Ruslan Stuchi: Certamente. Temos essa ideia dominante, como na Reforma Trabalhista de 2017, que acabou tolhendo muitos direitos trabalhistas, sob a ilusão de que geraria mais empregos, como alegado. Uma falácia, uma mentira. Eliminar direitos não gera empregos. Claro que fatores como a pandemia entraram em cena, mas o desemprego seguiu alto apesar da reforma.
Produzir leis trabalhistas não voltadas ao bem estar do trabalhador é uma ideia muito errada. Em resumo, continua necessária a fiscalização dentro das empresas em relação a seus deveres com os empregados, da mesma maneira que os empregados têm seus deveres frente à empresa.
Correio da Cidadania: O que esperar daqui pra frente? As empresas envolvidas neste universo de prestação de serviços tendem a encolher ou se tornarem insustentáveis?
Ruslan Stuchi: Não é porque uma empresa não contribui sobre direitos trabalhistas que fica insustentável. Ela terá, sim, de ter seus custos analisados. Hoje, muitas empresas têm faturamentos positivos pagando todos os encargos trabalhistas. O que acontece é que, talvez, o lucro líquido caia e seja diluído nos encargos.
Correio da Cidadania: Os aplicativos de serviços podem ser ressignificados?
Ruslan Stuchi: Pode haver novas leis específicas e sindicatos para categorias. Certamente, tudo que se refere à legislação trabalhista é importante para o empregado, tanto como sobre eventuais acidentes de trabalho e responsabilização da empresa como em relação ao consumidor. Hoje, se acontece um imprevisto, um prejuízo causado pelo motorista do aplicativo, o consumidor pode acionar tanto o motorista como a tomadora de serviços. E se é assim por que não se pode responsabilizar a Uber pelos direitos da pessoa que lhe presta o serviço?
Como eu disse, existem mecanismos de subordinação, de pessoalidade, habitualidade, enfim, o prestador de serviços deve seguir requisitos obrigatórios para não ser desligado do aplicativo. As pessoas cumprem jornadas exaustivas e, portanto, considerando tudo que falamos aqui, existe vinculo empregatício entre essas empresas de aplicativos e seus prestadores. Acredito que o TST unificará entendimento neste sentido.
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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.