Correio da Cidadania

A incapacidade política de colocar a Saúde acima dos lucros

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Foto: Reprodução / Outras Palavras

À medida que aumenta a importância das vacinas nessa nova fase da pandemia, cresce o esforço para ampliar drasticamente a oferta e a distribuição de imunizantes, e também cresce o protesto contra o domínio dos oligopólios farmacêuticos sobre as decisões de proteção à saúde da população global. O secretário-geral da ONU, António Guterres, deu o tom do reclamo há uma semana. “Estamos entrando no terceiro ano da pandemia e o mundo ainda está longe de cumprir metas cruciais: vacinar o planeta, aumentar os testes, tornar os tratamentos que salvam vidas acessíveis a todos”, disse.

“A desigualdade das vacinas é a maior falha moral dos nossos tempos”, declarou Guterres, expressando também a incapacidade da comunidade internacional em impedir que a falha prevaleça. Pois não conseguiu, até agora, impor regras bem estabelecidas para evitar que os oligopólios orientem as medidas de combate global à pandemia. Guterres anuncia progresso nesse quesito, e de fato há uma ampliação do acesso da população menos abastada do mundo às vacinas. Mas só depois de 414 milhões de pessoas ficarem doentes e se acumularem 5,8 milhões de mortes.

Ceder à “big pharma” foi de fato um grande erro da comunidade internacional, comentou Nick Dearden, diretor da ong Global Justice Now, em um balanço esclarecedor do assunto no jornal The Guardian. Ele lembrou que para as grandes empresas a pandemia foi excepcionalmente boa. “Hoje”, 28/2, escreveu ele, a Pfizer “anunciou que sua vacina contra a covid faturou 37 bilhões de dólares no ano passado”. Ele cita números absurdos sobre isso, dizendo que desde o início a Pfizer deixou claro que queria ganhar muito dinheiro com a covid.

“A empresa afirma que sua vacina tem um custo de produção de menos de 5 libras por dose. Outros sugeriram que poderia ser muito mais barato. De qualquer forma, ela está vendendo suas doses com um lucro enorme”. O governo britânico pagou 18 libras por dose em seu primeiro pedido à Pfizer, e na compra mais recente ainda enfrentou aumento de 22%, pagando a dose a 22 libras. “Isso quer dizer que o NHS (serviço público de saúde inglês) pagou uma margem de pelo menos 2 bilhões de libras – seis vezes o custo do aumento salarial que o governo concordou em dar aos enfermeiros no ano passado”.

E dizem, prossegue Dearden, que a empresa inicialmente tentou vender a vacina por 100 dólares a dose, ao governo dos EUA. Tom Frieden, ex-diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, acusou a empresa de “ter lucros de guerra”. A Pfizer vendeu suas doses em massa para os mais ricos, visando lucros muito altos. Até outubro passado, exemplifica Dearden, tinha vendido míseros 1,3% de sua oferta para a Covax, o arranjo que Guterres diz agora que está avançando, e havia sido criado para tentar garantir um acesso global menos desigual às vacinas.

Nada disso faz sentido: há cálculos claros mostrando que é perfeitamente possível produzir vacina a preços civilizados, como mencionou Dearden acima. A comunidade global poderia criar centros regionais em condições de produzir oito bilhões de doses de vacinas de mRNA, o suficiente para cobrir 80% da população de países de média e baixa renda. O custo de produção, mostra um estudo demonstrativo, seria de 23 bilhões de dólares – ou cerca de 2 libras por dose, dez vezes menos que o preço cobrado pela Pfizer, conforme disse Dearden acima.

O estudo faz um levantamento detalhado das especificações. Seriam necessários 842 quilos de mRNA, por exemplo. Empregaria 4.620 funcionários trabalhando em 55 linhas de produção, que poderiam ocupar 14 instalações já existentes para outros fins. O custo de modernização das instalações seria de 3,2 bilhões de dólares, e o custo operacional de produção seria de 17,5 bilhões. E isso não é feito por quê? Porque a comunidade hesita em corrigir um desatino comercial que Guterres considera um fracasso moral.


Flávio Dieguez é jornalista e atuou na imprensa de resistência à ditadura (Movimento e Retrato do Brasil).

O artigo foi originalmente publicado em 17 de fevereiro de 2022 no Outras Palavras.

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