Correio da Cidadania

Orçamento 2023: a Saúde financia a farra fisiológica

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Os ziguezagues não cessam. Depois de deixar sem apoio algum, por muitos meses, a população vitimada pela pandemia, Jair Bolsonaro aprovou, às vésperas da eleição, um auxílio emergencial de R$ 600. Além disso, permitiu, ao longo de três anos e meio de mandato, que os preços dos combustíveis disparassem – para promover uma pequena redução pré-pleito. E para garantir estas reviravoltas, “engraxou” a maioria fisiológica do Congresso Nacional com bilhões de emendas parlamentares – inclusive as do Orçamento secreto. Quem paga a conta de tantas contradições?

Sanitarista, pesquisador do IPEA e membro da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), Carlos Ocké buscou a resposta no Projeto de Lei Orçamentária para 2023 (PLOA), que o Palácio de Planalto enviou ao Congresso no início do mês. Sua conclusão, expressas em entrevista a Outra Saúde, é clara: logo mais, o boleto chegará para a população. Enquanto a sociedade pede melhor financiamento para os serviços públicos, a PLOA oferece sangria. No caso da Saúde, são R$10 bilhões a menos para o ministério, com cortes drásticos em rubricas como a Farmácia Popular, Saúde Indígena e o Programa Nacional de Imunização.

A lógica por trás deste movimento, que dá com uma mão para tirar com outra, é uma “austeridade fiscal seletiva”, dispara Ocké. Ele explica: “A regra do teto de gastos funciona como instrumento político de contenção e asfixia de políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento econômico e à proteção social”. A Emenda Constitucional 95 é a tesoura que corta, no atacado, os gastos que permitiriam melhorar as condições de vida da maioria e mitigar a desigualdade. Contudo, ela é seletivamente contornada no “varejo”, para absorver os interesses da base parlamentar e do próprio governo.

A relação entre cortes na saúde e financiamento do fisiologismo parlamentar, com generosas emendas que tornam cada congressista uma espécie de ministro informal, é direta. São pelo menos R$ 6,6 bilhões a menos nas chamadas despesas discricionárias, que se referem às ações sanitárias acima elencadas. Soma-se a isso a nova política de ICMS a desfalcar estados e municípios, que já vinham aumentando sua participação no financiamento da saúde, de forma desproporcional à sua participação no bolo da arrecadação fiscal do Estado brasileiro.

A ocasião dos cortes não poderia ser pior. “A queda de recursos ocorre em um momento no qual há pressões crescentes sobre o SUS, relacionadas às filas para exames e cirurgias, aos efeitos prolongados da covid-19, às demandas reprimidas e à falta de insumos e remédios”, lembra Ocké. Ou seja: para além das despesas regulares, é preciso ampliar a envergadura do sistema. Investir em mais contratações. Ampliar a capacidade do SUS para oferecer consultas e exames. Valorizar os profissionais da área. Honrar a lei que cria o Piso Nacional da Enfermagem.

Como reagir, diante deste quadro? O primeiro passo é, obviamente, afastar nas eleições o governo que promove tais desmandos. Ocké quer ir além. Havendo vitória da oposição, será necessário aprovar no Congresso Nacional, ainda este ano, recursos emergenciais para a saúde em 2023. O fim da EC-95 é um desdobramento inevitável. “Para atender às demandas populares nesta área no próximo ano, precisaremos gastar acima do teto”, explicou o pesquisador do IPEA. Devem vir em seguida mudanças estruturais, como “uma Reforma Tributária que amplie o gasto público per capita em saúde e reduza os gastos das famílias e dos trabalhadores com bens e serviços privados de saúde”.

Ocké não se furtou a responder uma questão sobre a natureza do bolsonarismo. Por que, às vésperas de uma eleição em que se encontra em desvantagem, o presidente envia ao Congresso uma peça orçamentária repleta de políticas antipopulares, como a redução do Auxílio-Brasil?

Como disse Marcos Nobre, presidente do Cebrap, o bolsonarismo age dessa forma por fidelidade a seu projeto autoritário”, diz o sanitarista. E prossegue: “A lógica não advém da racionalidade política, mas da política da guerra e da morte que a orienta.” Na atual conjuntura, poderia haver algo mais repulsivo do que a negação da pandemia?

Como Ocké detalha na entrevista, não há racionalidade na narrativa neoliberal que prega a insustentabilidade das políticas públicas. Este discurso não se sustenta tecnicamente, conforme mostram as diversas possibilidades de aumento do investimento público. Revela, ao contrário, uma dupla moral abjeta, pois se submete às manobras da atividade política mais fisiológica e corruptora. Em suma, a saúde pública e seu financiamento são ilustrativas das lutas que se abrem no horizonte político brasileiro.

Fique com a entrevista completa.

Em artigo recém-publicado na Carta Capital você e os demais autores falam que “o projeto orçamentário de 2023 é o apogeu da captura do orçamento de saúde pelo clientelismo em contexto de austeridade fiscal. A combinação de fisiologismo e austeridade fiscal seletiva ganha novos contornos em 2023”. O que isso significa? E, mais especificamente, o que é a austeridade fiscal seletiva?

O quadro fiscal deve ser apreendido em sua totalidade, em especial a partir da correlação de forças que sustenta o governo federal. De um lado, o teto de gastos atende às expectativas de mercado, ao constituir um regime fiscal com redução estrutural de investimentos públicos e gastos sociais por até vinte anos. De outro, desde a promulgação da Emenda Constitucional (EC) 95, flexibilizam-se pontualmente certas restrições fiscais e inscrevem-se no orçamento despesas dos grupos de interesse próximos a Bolsonaro. Conforme apontou o professor e economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, é como se o teto de gastos, simultaneamente, existisse e não existisse.

Não é “letra morta”, uma vez que a regra funciona como instrumento político de contenção e asfixia de políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento econômico e à proteção social; contudo, ele é seletivamente contornado no “varejo”, para absorver os interesses da base parlamentar e do próprio governo, ainda que esses mesmos setores chancelem posições fiscalistas no “atacado”.

O teto mantém gastos como os de saúde sob ajuste permanente, ao passo que a flexibilização fiscal acaba favorecendo interesses eleitorais e clientelistas. Denominamos esse processo de austeridade fiscal seletiva, que se desenvolve em meio à falta de planejamento e de coordenação nacional para o enfrentamento da covid-19, bem como da captura do fundo público da saúde pelo mercado e pelo clientelismo dentro da casa legislativa.

Qual peso você vê na redução das despesas discricionárias, a exemplo de saúde indígena, campanhas de vacinação e compra de remédios através do programa Farmácia Popular, entre outras?

Sem dúvida, atribuímos um peso significativo, que pode comprometer o funcionamento do ministério da Saúde no próximo ano. Pode-se observar, por meio da avaliação do PLOA, que a combinação entre austeridade e clientelismo está impactando as despesas discricionárias do ministério, que caíram 40% entre 2022 e 2023, passando de R$ 16,3 bilhões em 2022 para R$ 9,7 bilhões em 2023. Desse modo, algumas despesas relevantes para a garantia do direito social à saúde estão sendo substituídas pelas emendas de relator, que procuram atender a demandas particulares às vésperas das eleições presidenciais.

Estamos ainda num contexto em que já se assimila mais amplamente a questão das demandas represadas no SUS, em função da pandemia. Com este orçamento, que consequências devemos ter no sistema de saúde no período próximo?

A queda de recursos ocorre em um momento no qual há pressões crescentes sobre o SUS, relacionadas às filas para exames e cirurgias, aos efeitos prolongados da covid-19, às demandas reprimidas e à falta de insumos e remédios. No caso da vitória da oposição, será, portanto, necessário aprovar ainda este ano no Congresso Nacional recursos emergenciais para a saúde em 2023. Em outras palavras, para atender às demandas populares nesta área no próximo ano, precisaremos gastar acima do teto.

A partir daí, será fundamental a previsão de novas regras fiscais e de financiamento do SUS em 2024, revogando a EC 95, que sejam sustentáveis e capazes de inverter o quadro atual em que, apesar de termos um sistema universal e integral, mais da metade dos gastos em saúde é privada no Brasil.

Em resumo, falta discernimento sobre a necessidade da mudança das regras fiscais em linha com a experiência internacional (veja o plano Biden), bem como falta entendimento sobre a importância de se ampliar o gasto público per capita em saúde e reduzir os gastos das famílias e dos trabalhadores com bens e serviços privados de saúde.

Em resumo, sairiam do SUS as condições de sustentação do mecanismo de governabilidade desenvolvido por Bolsonaro que se popularizou chamar “orçamento secreto”?

Pode ser visto dessa maneira. No PLOA 2023, o SUS perdeu o controle sobre cerca de R$ 10 bilhões do orçamento, uma vez que parcela do piso de saúde está alocada nas emendas de relator, que não estão sujeitas a critérios populacionais e epidemiológicos. Desse modo, por exemplo, defendo que os recursos do “orçamento secreto” sejam em particular transferidos da União para estados e municípios custearem o piso da enfermagem.

Para quem quer se reeleger e sustentar outros quatros anos de governo, essa agenda em saúde parece má estratégia. Quem seriam os beneficiários de um orçamento com este perfil no setor?

Como disse Marcos Nobre, presidente do Cebrap, o bolsonarismo age dessa forma por fidelidade a seu projeto autoritário. A lógica não advém da racionalidade política, mas da política da guerra e da morte que o orienta. Na atual conjuntura histórica, poderia haver algo mais repulsivo do que a negação da pandemia? Como sugere a CPI da Covid-19, essa atitude levou a centenas de milhares de mortes evitáveis.

Há condições financeiras objetivas de o Estado brasileiro fazer um orçamento melhor para a saúde pública?

Sim. Os neoliberais se apoiam na tese do país quebrado, mas ela é falsa. Além dos equívocos da atual política monetária (“inflação de demanda”), que tem aumentado os encargos financeiros do governo federal com a subida da taxa de juros, os limites fiscais são artificiais. A autonomia do Banco Central é um obstáculo, mas a dívida pública está lastreada em reais, as reservas internacionais estão elevadas, o balanço de pagamentos se mantém estabilizado e, até agora, os fundamentos macroeconômicos não apontam um descontrole da relação dívida/PIB.

Além do mais, se contarmos com recursos do pré-sal, é possível melhorar essa relação com a redução da taxa de juros no curto prazo e o crescimento da economia, sem desistir de recompor as necessidades de financiamento do setor público no médio prazo, com a aprovação de uma reforma tributária progressiva e o alongamento do perfil da dívida interna prefixada. Da nossa parte, o mais importante, nos planos político e ideológico, é desnaturalizar o pressuposto de que a austeridade fiscal reflete a falta de capacidade financeira do Estado brasileiro, bem como que o aumento da despesa requer arrecadação prévia. É preciso que compreendamos definitivamente a natureza e o tamanho da expansão fiscal ocorrida durante a pandemia.

Reiteramos: o governo federal liquida sua dívida na moeda que emite, sendo capaz de efetuar sua rolagem. Os dados de junho de 2022 mostram que a reserva de liquidez do Tesouro para pagamento da dívida pública segue em níveis confortáveis, mais de duas vezes acima do limite prudencial. Ademais, o setor público dispõe de ativos (especialmente as reservas internacionais), que melhoram substantivamente sua posição do ponto de vista líquido. Desse modo, as restrições fiscais brasileiras não refletem um problema técnico ou financeiro, mas um projeto político ultraliberal de redução do Estado e da oferta de serviços públicos, especialmente os universais, para induzir seu fomento pelo mercado. O terrorismo fiscal não pode subjugar o horizonte estratégico do bloco histórico sanitarista.

Gabriel Brito é editor do Correio da Cidadania e jornalista do Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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