Massacre do Carandiru completa 30 anos: “Que democracia queremos?”
- Detalhes
- Raphael Sanz, Revista Fórum
- 07/10/2022
Corredor do Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo após o massacre de 2 de outubro de 1992.Créditos: Divulgação.
Este 2 de outubro marcaram não apenas as eleições nacionais, talvez as mais importantes da nossa recente democracia, mas o aniversário de 30 anos do Massacre do Carandiru, o mais importante no sentido de entender tanto os rumos das políticas de segurança pública, como o surgimento das principais facções criminosas e todo o espectro da violência estatal e geral que assombram a maioria da população. Temas que inspiraram e fundamentaram na sociedade brasileira discursos como “bandido bom é bandido morto” e todo um imaginário punitivista e belicoso que coloca sobretudo o pobre como inimigo interno, esteja ele nas ruas ou no sistema prisional. O lugar onde tais narrativas desembocaram talvez seja o grande ponto das eleições, fazendo com que neste dia 2 de outubro, quando vamos definir os rumos dos próximos quatro anos, pareça ser de extrema importância relembrar o maior massacre penitenciário da história do país, seus desdobramentos e as reflexões que propõe sobre que tipo que democracia queremos construir.
Números oficiais deram conta de que a ação da Polícia Militar na Casa de Detenção de São Paulo, buscando conter uma suposta rebelião iniciada em quadra de futebol, deixou 111 internos mortos no então maior presídio da América Latina, localizado a poucos quilômetros do centro de São Paulo e a alguns metros da principal rodoviária, no coração da zona norte da capital. À época, a TV Globo denunciava que a prisão vivia superlotação. Com capacidade para cerca de 4 mil presos, o Carandiru abrigaria na semana do Massacre quase o dobro disso.
Nesse contexto de uma prisão superlotada, onde carecem recursos e atenção adequada aos detentos, um desentendimento na quadra de futebol entre grupos rivais teria levado um preso a tomar uma paulada, ao que seus amigos reagiram, desencadeando uma briga generalizada. “Ele não queria brigar, daí o outro deu uma facada nele e os amigos entraram. Os funcionários tentaram apartar, mas não conseguiram - e ficaram assustados por terem sido muitos os presos envolvidos na briga naquela hora. Assim os funcionários saíram gritando que era uma rebelião”, disse um sobrevivente do massacre à reportagem da TV Globo na época dos acontecimentos. Essa e outras declarações foram resgatadas no último dia 23 de setembro, no podcast O Assunto, da jornalista Renata Lo Prete.
A notícia da ‘rebelião’ chegou às principais autoridades do Estado. Após a ordem da operação chegar às tropas da PM e à diretoria do presídio diretamente do governador Luiz Antônio Fleury Filho, toda a região foi cercada e 500 policiais armados e com cães se preparavam para entrar na cadeia. Sob ordens de “resolver o conflito”, os policiais protagonizaram o maior massacre carcerário da história do país, repleto de cenas de brutalidade extrema.
Presos relatam que os homens do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais da PMSP), liderados pelo comandante Wanderlei Mascarenhas, metralhavam presos rendidos dentro dos ‘xadrezes’, como chamam as celas. Os relatos dão conta que os policiais militares riam enquanto matavam os detentos com tiros e facadas. Entre diversas histórias de horror e brutalidade, sobreviventes contaram que policiais colocaram um grupo pelado e de bruços no chão de um pátio e iam chamando dois por vez para serem mortos a punhaladas diante dos demais. Feridos eram jogados no buraco do elevador para morrerem com a queda no fosso do mesmo. “Eu vi um holocausto”, disse um sobrevivente ao podcast.
Na sequência da matança, detentos que sobreviveram foram obrigados a alterar as cenas dos crimes. “Me tiraram de madrugada da cela, só de calção, com mais dez companheiros, nos encheram de pauladas e nos mandaram carregar os corpos, disseram que ‘esse é o futuro de vocês, a morte’”, relatou outro sobrevivente. Os corpos eram levados até a sala onde funcionava a barbearia do Pavilhão 9 e relatos dão conta de que nesse interim, homens eram mortos ao descerem com os corpos das escadas por homens da PM ou eram trancados dentro de celas para serem dilacerados por cães da polícia.
111?
Há controvérsias quanto aos números finais. José Aguiar, sobrevivente do Carandiru (ver matéria do Correio aqui), declarou em 2 de outubro de 2015, durante manifestação que rememorou os então 23 anos do massacre que “estamos cansados de saber que foram mais de 300 pessoas”. No dia do massacre, Aguiar era um dos detentos que estavam “marcados” (para morrer). Antes do massacre, ele passava seus dias no Carandiru ocupando duas funções. Durante a semana trabalhava no escritório jurídico da cadeia ajudando a revisar processos – vale lembrar que boa quantidade dos mortos não havia sequer sido julgada e condenada. Já aos finais de semana, ele era árbitro da FIFA, a Federação Interna de Futebol Amador, “criada pelo sacana do Waldemar Carabina”, como explica José Aguiar, “que sobreviveu por haver se escondido em um armário”.
Aguiar ainda conta que “no dia do massacre os policiais chegaram ao Carandiru entre 6h30 e 7h da manhã. À noite, no noticiário, isso foi divulgado como se tivessem chegado às 11 horas. Tudo o que saiu na imprensa naquele dia foi mentiroso. Os responsáveis até foram condenados mas nenhum foi pra cadeia, estão todos impunes. Estou com 73 anos, correndo atrás, pedindo reparo para que esse massacre seja esclarecido e os remanescentes dos responsáveis sejam punidos. Assim como eu passei muitos anos no Carandiru, por que esses caras ficam impunes?”, lamentou há exatos 7 anos. Não conseguimos localizar Aguiar, que teria 80 anos em 2022. De qualquer forma, vivo ou morto, ele não viu seus algozes punidos.
Aguiar esteve no Carandiru entre 1982 e 1996, quatro anos após o massacre e seis anos antes do fechamento da Casa de Detenção, que ocorreu em 2002. Após o fechamento, o local onde funcionou a Casa de Detenção de São Paulo se transformou na enorme Praça da Juventude. Ainda funciona um presídio feminino no local.
Os efeitos do massacre ao longo de três décadas
30 anos depois, o massacre ainda é lembrado e tem grande importância no debate público, sobretudo no que se refere à reorganização das políticas de segurança. É o que nos explica o cientista político Acácio Augusto, professor da Unifesp e pesquisador de tecnologias de segurança no Lasintech (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento).
“Em primeiro lugar preciso citar toda uma reorganização do sistema penitenciário paulista. Em 2002 a Casa de Detenção é desativada, mas isso significa um espalhamento dos sobreviventes em várias cadeias pelo interior de São Paulo, inclusive com o argumento de levar a essas cidades alguma movimentação econômica. Além disso, há toda uma discussão sobre direitos humanos, humanização da polícia e sobre mudanças nas regras da corporação. Grupos de pesquisa universitários vão escrever sobre isso, levar o caso do Carandiru para cortes internacionais como Corte Interamericana de Direitos Humanos, a fim de pautar mudanças no corpo policial e reformas no sistema penitenciário. Isso obviamente só significou uma expansão do sistema penitenciário uma vez que não se falava no ‘superencarceramento’, mas em ‘superlotação das cadeias’, e a resposta para isso seria a criação de mais presídios, além de uma necessidade de treinamento de Direitos Humanos sobre homens da PM e da polícia penal”, explica o pesquisador.
Para Augusto, esse aumento de unidades prisionais em combate à “superlotação” foi um dos fatores que culminaram na fundação do Primeiro Comando da Capital (PCC) em agosto de 1993 na Penitenciária de Taubaté. A facção foi fundada justamente por sobreviventes do massacre que buscavam criar uma espécie de associação que garantisse seus direitos básicos diante da impotência em relação à Justiça, imprensa e principalmente das forças de segurança que atuavam nas cadeias. “A covardia praticada pelos PMs nesse dia motivou a formação do que se conhece hoje como PCC. À época havia várias facções ou gangues no sistema carcerário paulista, cuja ‘briga entre facções’ serviu como motivação para a operação que desdobrou no massacre”, elucida Acácio Augusto.
O professor e pesquisador ainda colocou que o massacre serviu como um pontapé inicial para a entrada de agentes de segurança na política, a começar pelo comandante das tropas, o famoso Coronel Ubiratan, formando bancadas e lobbies em torno de interesses das polícias na manutenção de uma política de segurança pública truculenta.
“O comandante da tropa, Coronel Ubiratan, já em 1994 se candidata a deputado estadual por São Paulo pelo PPB. Ele não ganha, mas fica com suplência e, por conta da saída do titular, vai exercer o cargo de 97 a 98, até ser eleito em 2002. Isso obviamente o ajudaria a não ser preso, mas também como a própria atuação dele enquanto deputado mostra, há a formação de um lobby da segurança pública – ele próprio compôs todas as comissões da pasta enquanto esteve na Alesp, como vários policiais que viraram políticos e se organizaram no que é chamado jornalisticamente de ‘bancada da bala’”, pontua.
Ubiratan foi assassinado em 10 de setembro de 2006 em circunstâncias ainda hoje muito mal explicadas. O crime que o vitimou, supostamente cometido por uma amante, segue sem uma resolução e ele morreu sem prestar esclarecimentos à sociedade sobre o ocorrido em 1992. Fica na memória a reivindicação da memória da matança por parte de Ubiratan através do uso do número 111 (na sequência do 14 de seu partido) na campanha que o levou ao cargo de deputado estadual por São Paulo em 2002. Ele foi condenado em 2001 a 623 anos de prisão por 102 mortes.
Já Wanderlei Mascarenhas, que comandou os homens do Gate durante o massacre, seguiu carreira acadêmica e tornou-se professor dos cursos de pós-graduação de Políticas de Gestão em Segurança Pública na PUC-SP. Também é autor de livros sobre o tema e escreve para sites especializados em segurança pública.
Idas e vindas na Justiça; Deputado Capitão Augusto (PL-SP) quer anistiar responsáveis
Em 1993 o Ministério Público de SP acusou os policiais pelo massacre e em 1998 tornou réus 85 desses policiais. Mas no final das contas, 74 PMs foram condenados pela morte de 111 presos no Massacre do Carandiru após passarem por cinco julgamentos. O primeiro ocorreu em 2001, quase dez anos após o massacre, e os outros 4 juris foram entre 2013 e 2014, quando houve forte pressão popular contra a violência policial no país, além do desenvolvimento de movimentos específicos de vítimas de massacres perpetrados por agentes do Estado.
Em todos os juris os réus foram condenados a penas que vão de 48 a 624 anos de prisão. As condenações chegaram a ser anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em 2016 e novamente em 2018 mas foram restabelecidas em junho de 2021 pelo próprio TJSP. Em 1 de agosto desse ano, o ministro Luís Roberto Barroso, do Superior Tribunal Federal (STF) negou recurso dos policiais que buscavam derrubar as condenações e reafirmou a sentença da Justiça paulista. No entanto, até hoje, nenhum policial foi preso.
No dia seguinte da decisão de Barroso, em 2 de agosto desse ano, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou o PL 2821 de autoria do deputado Capitão Augusto (PL-SP) que busca anistiar os PMs processados por envolvimento no massacre. O projeto de lei ainda passará pelos plenários da Câmara e do Senado antes de ser sancionado e tem como fundamento anistiar quaisquer crimes praticados naquela data que estejam previstos no Código Penal, nas leis penais especiais, no Código Penal Militar e as infrações disciplinares correlatas.
Que democracia queremos?
“É preciso lembrar dois aspectos sobre as consequências do massacre”, nos diz o cientista político Acácio Augusto: “primeiro como a formação do que se conhece como facção criminosa é um produto do próprio sistema carcerário e da própria atuação das forças de segurança, incitando esse tipo de conduta uma vez que ou a pessoa presa age dessa maneira [a formar facções], ou pode acabar executada. A segunda é mostrar que as políticas de reforma penal não têm efeito, pelo menos não como se anuncia, de diminuição da violência das forças do Estado, pelo contrário, distribui, reorganiza – como foi o caso da redistribuição das cadeias pelo interior de São Paulo – e renova esses episódios que acabam ganhando notoriedade pelo nível de brutalidade que mostram à sociedade”.
Os reflexos disto estão aí para serem vistos. Se olharmos para o cotidiano das periferias, especialmente de São Paulo e Rio de Janeiro, são diários os relatos de homicídios perpetrados pelas polícias contra a juventude pobre e essencialmente não-branca. Na sequência do Massacre do Carandiru houve, em 1996, o Massacre de Eldorado dos Carajás, em que operação da PM deixou 21 mortos em assentamento do MST na cidade paraense de mesmo nome. Depois, em 2004, o Brasil acompanhou a matança de 7 moradores de rua na Chacina da Sé, em São Paulo. Também na capital paulista ocorreram os chamados “Crimes de Maio”, quando um verdadeiro massacre foi perpetrado pela Polícia Militar nas periferias da capital e deixou 564 mortos a pretexto de retaliar ataques do PCC – dessa matança surge o movimento das Mães de Maio.
Em 2015, entre 17 e 21 pessoas morreram na Grande São Paulo, na Chacina de Osasco e Barueri, novamente orquestrada por agentes de segurança em vingança contra morte de policial – há divergência na contagem das vítimas. Entre 2017 e 2019, 177 internos morreram em cinco diferentes massacres carcerários. Sem contar, é claro, a Chacina do Jacarezinho que deixou 23 mortos no ano passado no Rio de Janeiro.
Todos esses massacres são denunciados anualmente pela Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo, na ocasião dos aniversários do Massacre do Carandiru. No entanto, por conta das eleições nacionais ocorrerem neste mesmo dia, a associação não preparou manifestações para a data. “Resolvemos não fazer nada na data porque não teria a reverberação que gostaríamos por conta das eleições. A Frente pelo Desencarceramento de São Paulo fez um evento no final de semana anterior ao aniversário do massacre, porém de caráter mais interno, a fim de discutir como serão as lutas antiprisionais no próximo período. O que fizemos de público foi o lançamento da carta pública ‘2 de outubro: um marco na democracia dos massacres’ fazendo uma reflexão sobre qual democracia queremos construir”, afirmou uma integrante do grupo para a Revista Fórum.
“Este ano, essa data que é historicamente marcada por manifestações em memória do Massacre, será também a data do primeiro turno das eleições. Para aqueles que redigiram e assinaram a ‘Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito’, lida no dia 11 de agosto em frente à Faculdade de Direito do Largo São Francisco, as urnas deveriam ser o momento de ‘ápice da democracia’ (...) A Carta diz: ‘ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momentos de imenso perigo para a normalidade democrática’. Cabe a nós questionar: que normalidade é essa? De que democracia estão falando? O Estado Democrático de Direito normalizou a barbárie cotidiana, e se orgulha de ter no centro do seu sistema de justiça uma invenção como a prisão: lugar de tortura e morte, como há anos denunciam as mães, familiares e sobreviventes dessa máquina genocida”, diz trecho da carta das associações de vítimas e presos que faz crítica à Carta aos Brasileiros em Defesa da Democracia.
A carta dos movimentos ainda coloca que “Bolsonaro e seu governo provam o que a história sempre nos mostrou: vivemos em um sistema que se alimenta do genocídio contra o povo negro e os povos originários, e nessa chamada ‘democracia’ os massacres estão na ordem do dia”.
E, dessa maneira, a Frente pelo Desencarceramento, juntamente com as Mães de Maio e outras associações de vítimas do Estado tentam nos convidar para refletir que democracia iremos construir a partir do próximo 2 de outubro. Cobram, de todos nós, esse posicionamento: se iremos nos contentar com uma democracia eleitoral e fechar os olhos para tanta matança, tomando-as como “danos colaterais”, ou se aproveitaremos os bons ventos progressistas para, além de retomar valores democráticos perdidos em tão pouco tempo, colocá-los em prática.
“Interrompemos a atmosfera eleitoral para pedir ao menos 1 minuto de silêncio. É um momento de entoar luto coletivo por todas as vidas interrompidas sob o manto do regime democrático. Derrubar o genocida que está na presidência hoje não será suficiente para que a tão reivindicada democracia de fato se realize. É preciso parar imediatamente o projeto de extermínio sistemático”, finaliza a carta.
Raphael Sanz é repórter da Revista Fórum, onde esta matéria foi originalmente publicada, e editor do Correio da Cidadania.