Correio da Cidadania

Litoral norte, a inércia da sociedade segregada e as próximas tragédias anunciadas

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Divulgação 

A tragédia da Vila do Sahy ainda não terminou de contar seus mortos, mas seu inventário já está amplamente concluído por especialistas e estudiosos da toada histórica de nosso desenvolvimento. Trata-se de mais um produto do arbítrio e do segregacionismo que marcam o nosso “capitalismo real”, para o qual também concorre a ideologia da “austeridade eterna”. Em linhas gerais, uma tragédia anunciada. Que será soterrada pela próxima tragédia igualmente anunciada, cujo local só espera o sorteio do deus destino.

Há exatamente um ano, o Correio publicava entrevista com o geógrafo Paulo Alentejano, a fim de discorrer sobre outras tragédias recentes, em especial a de Petrópolis, que registrou cerca de 200 mortes no verão passado. A conversa enfatizava a tragédia predecessora na cidade serrana carioca, que matara mais de 1.000 pessoas em 2011.

“É incessante, a exemplo de São Paulo, Minas Gerais e Bahia nestes últimos meses, dentro de uma lógica semelhante. Estamos numa época de fenômenos climáticos mais intensos, que se combina com um processo de ocupação das áreas urbanas marcado pela destinação de áreas precárias à população de baixa renda, em condições extremamente perigosas. O cenário geral se mantém como em 2011 e é fruto da expulsão de pessoas do campo em escala acelerada e a combinação aqui descrita, o que aumenta a cada dia a quantidade de acontecimentos como o de Petrópolis”, explicava Alentejano.

Como se vê, havia outras tragédias anunciadas no radar recente, em especial as do litoral da Bahia e parte de Minas, no Natal de 2021, que mataram outro punhado de pessoas. Em todos os casos, a imprevidência deliberada do Estado brasileiro. “A título de exemplo, em setembro deste ano (2021) o governo federal interrompeu a atuação do Sistema Nacional de Meteorologia – SNM, depois de quatro meses de sua criação. O SNM tinha com intuito realizar com maior eficiência as previsões meteorológicas, sendo coordenado pelo Instituto Nacional de Meteorologia - INMET (Ministério da Agricultura), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) e Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia - CENSIPAM (Ministério da Defesa). Para piorar a falta de perspectiva gerada pela suspensão do Sistema Nacional de Meteorologia vale ressaltar que a interrupção foi encaminhada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, e executada pela Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República – SAE”, enumerava Casé Angatu, liderança indígena, em texto publicado neste Correio à época das chuvas de Bahia e Minas.

Neste novo desastre nada natural, a omissão do poder público é ainda mais criminosa.

"Os institutos de meteorologia previram, com pelo menos três dias de antecedência, que chuvas extremamente intensas atingiriam o litoral norte de São Paulo durante o fim de semana. Na quinta-feira, o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais – Cemaden, avisou as prefeituras e a Defesa Civil estadual que as chuvas seriam excepcionais. Na sexta-feira de manhã, com a proximidade do evento, a previsão pôde ser aprimorada: a chuva mais forte ocorreria na madrugada de sábado e se concentraria entre Bertioga e São Sebastião. E no entanto, na sexta-feira à tarde e no sábado de manhã milhares de pessoas desceram para as praias. Só em São Sebastião, município com menos de 100 mil habitantes, havia no sábado quase 500 mil pessoas. A Defesa Civil do Estado de São Paulo nada fez para impedir ou ao menos desincentivar isso. As prefeituras nada fizeram. As rádios, televisões e internet não desaconselharam o deslocamento dessa enorme população em direção ao ponto onde ocorreria o dilúvio. Na verdade, o alerta foi dado mas ninguém ligou. Ninguém percebeu a gravidade. E principalmente, ninguém sabia o que fazer a partir do alerta”, escreveu o engenheiro Celso Santos Carvalho no Outras Palavras.

Como mostrou matéria de Leo Arcoverde na GloboNews, o estado mais rico da federação deixou de executar bilhões de reais em orçamento já liberado para prevenção de chuvas e enchentes. Mas o retorno triunfante do neoliberalismo como ideologia de Estado produziu a noção de que qualquer política pública é um fardo e, assim, optou-se por não fazer nada. A mentalidade de corte de “gastos” (o nome feio que os liberais deram para o cumprimento de obrigações constitucionais garantidoras de bem estar) chegou a tal nível de estupidez que mesmo quando há dinheiro em caixa os “gestores” (nome bonito que os liberais deram para autênticos sabotadores sociais) simplesmente não gastam. E um dia a água faz a lama deslizar morro abaixo.

Ainda de acordo com a entrevista de Alentejano: “o Estado brasileiro sempre tem dinheiro para pagar suas dívidas com banqueiros, financistas, assim como sempre tem dinheiro para financiar o agronegócio. Ali nunca tem crise ou faltam recursos, pois como sabemos o teto de gastos é para questões sociais, como saúde, educação, previdência, meio ambiente, prevenção de acidentes – temos uma defesa civil totalmente desarticulada. De fato, a tendência é o Estado ativamente agravar as condições para os desastres ambientais”.

Mais que isso, o Estado brasileiro sempre tem disposição de mover montanhas – neste caso é literal, como se verá ao final do texto – para favorecer interesses privados de sua burguesia, que por sua vez não se envergonha em fazer reuniões com o poder público para evitar a construção de moradias em locais mais seguros para uma população que só falta limpar-lhe a bunda.

“As mudanças da legislação dificultam um controle melhor sobre chuvas, deslizamentos, áreas de escoamento, de agricultura, enfim, a chamada ‘flexibilização de leis ambientais’ torna todas essas áreas mais vulneráveis. A tendência é que aconteça cada vez mais coisas do tipo. Trata-se dos resultados da mudança do Código Florestal, das propostas de flexibilização de licenciamento ambiental, das tentativas de se reduzir a área de preservação na Amazônia... Tudo isso só vai agravar a ocorrência de desastres ambientais. São fatos decorrentes da atuação criminosa do capital em parceria com o Estado, que cria todas as condições para isso”, criticava Alentejano.

Aqui, cabe observar que esta irracional noção de progresso deixou de ser um monopólio da direita e dos conservadores. Mesmo eleita por setores espoliados neste processo, há uma imensa dificuldade nas esquerdas em entender que tal modelo de desenvolvimento já não tem o mínimo espaço para reprodução. Liberar verbas emergenciais é bom, mas serve apenas para aliviar a dor de momento dos afetados. Que depoimentos brutais e aterradores como este aqui sirvam para uma sensibilização produtiva, porque as próximas tragédias seguem anunciadas.

“Além do combate ao neofascismo, que é essencial, é preciso avançar no debate das reformas estruturais das quais o país necessita, que também são essenciais para se romper com o ciclo de miséria e desigualdade que vivemos historicamente, coisas que, infelizmente, no período dos governos progressistas, foram negligenciadas”, resumiu Paulo Alentejano.

Leituras recomendadas

“As mudanças sociais e a cultura caiçara” – um relato de 40 anos de ocupação do litoral norte paulista e a construção da Rodovia Rio-Santos, com a devida mão do regime militar, de autoria do pesquisador Paulo Noffs.

"A rodovia e os caiçaras: a construção da Rio-Santos e suas consequências para as comunidades locais em Ubatuba" - tese de Marina de Mello Fontanelli para mestrado em História, Política e Bens Culturais da FGV.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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