Correio da Cidadania

Revogar o novo ensino médio: “a realidade já mostra que esta reforma não tem condições de melhorar nada”

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Apesar do golpismo militante de setores da sociedade, cujos crimes continuam a se avolumar, as necessidades reais da maioria da população voltam a protagonizar o noticiário. A educação é um dos principais campos de embate deste início de ano, quando ganhou força o movimento pela revogação do Novo Ensino Médio (NEM), uma das primeiras medidas aprovadas pelo governo Temer, ao gosto das fundações empresariais do setor. Sobre isso, o Correio da Cidadania entrevista Fernando Cássio, pesquisador de Educação, que faz uma crítica demolidora sobre o caráter de uma reforma que, como explica, só serve para ampliar desigualdades.

Na conversa, o também doutor em Ciências e professor da UFABC, desmente todas as promessas de modernização, aumento das liberdades dos estudantes e da carga horária. Em sua crítica, mentiras fabricadas por setores que mal conhecem uma escola pública. “As escolas estão totalmente sem organização e os estudantes não sabem como escolher o itinerário formativo. Não tem curso técnico, não tem professor, é uma confusão. A questão toda nem passa pelo fato de o itinerário ser esdrúxulo, com coisas como aula de ‘brigadeiro gourmet’ ou ‘oficina de unhas’. É que não tem aula mesmo. É falta de professor. É ensino a distância a rodo. Não há como sustentar isso”.

Neste sentido, Fernando Cássio explica que os setores da elite brasileira que pautaram a reforma se permitiram falar em nome dos estudantes e inventaram uma crítica à escola pública notoriamente alheia à realidade concreta, de piora absoluta das condições materiais tanto da escola como de seus membros.

“É uma falácia isso de que os estudantes não gostam da escola porque tem aula de História, de Sociologia, de Química. Os estudantes não gostam da escola porque a escola é dilapidada, não tem investimento, não tem aula, não tem política de permanência estudantil, porque a escola é feia, toda gradeada, e agora cada vez mais cheia de polícia. São muitos os fatores que afastam os estudantes das escolas, inclusive a pobreza e a necessidade de trabalhar. Não faz sentido essa ideia de que as disciplinas eram as responsáveis pelo problema. Os estudantes estão querendo de volta as disciplinas e o conteúdo que foi tirado da escola. Até porque eles sabem que esta é uma diferença crucial entre a escola privada e a escola pública”, explicou.

Dessa forma, é impossível não conectar uma reforma que promete modernização com o contexto político que impôs ao Estado fortes restrições legais a seu papel de indutor de políticas públicas e investimentos em áreas sociais, simbolizada em especial pelo teto de gastos, que congelava despesas não financeiras do Estado por 20 anos.

“Não tem melhoria salarial substantiva para professores, melhoria na carreira, nas condições de trabalho, não tem política de permanência estudantil para garantir que aquele estudante do ensino médio noturno possa de fato usufruir da tão festejada escola de tempo integral. Não existe a previsão de ampliar, por exemplo, a rede dos institutos federais ou as escolas técnicas estaduais (...). Enquanto isso, as pessoas vão continuar protestando. Não sairão das ruas, porque esta reforma está acabando com o ensino médio brasileiro. Está destruindo sonhos dos jovens do país. O Brasil tem 7,9 milhões de estudantes no ensino médio, 88% na escola pública”, contextualizou.

Mais que isso, impossível acreditar nas promessas de uma elite brasileira ainda viciada na acumulação fácil e predatória, sem interesse no desenvolvimento de sua própria população. Para além do debate técnico, portanto, há uma profunda disputa de projetos de sociedade, que se reflete numa reforma do ensino médio que não criará uma classe trabalhadora apta para os desafios do futuro. “Mesmo com o discurso manso da filantropia empresarial sobre mitigação das desigualdades via reformas educacionais, a sobrevivência dessas mesmas elites depende da perpetuação das desigualdades. (...) É por isso que temos fundação empresarial financiada por bilionário tentando formatar a educação dos mais pobres. (...) Quem está interessado em simplesmente perpetuar a desigualdade, não vai apoiar uma reforma do ensino médio que vá diminuir, por exemplo, a desigualdade no acesso ao conhecimento”, analisou.

Confira a entrevista completa com Fernando Cássio.

Correio da Cidadania: Como você observou a suspensão da implantação do novo ensino médio pelo governo federal, a fim de se fazerem novas avaliações a respeito de suas diretrizes?

Fernando Cássio: A decisão foi inevitável. Começamos 2023 com um governo que não tinha a menor intenção de discutir a reforma do ensino médio. Em janeiro, o ministro Camilo Santana postava elogios à reforma. Depois, começou a ser achincalhado por professores nas redes sociais e tomou um susto. Ser ministro da Educação é muito diferente de ser prefeito ou governador, ainda mais após um período de Temer e Bolsonaro, de terra arrasada, de governos destrutivos, cada um a seu estilo. A pressão se avolumou e vejo três aspectos para o adensamento do debate do ensino médio.

O primeiro é pesquisa, dados que mostram com muita eloquência os problemas da reforma nas redes estaduais. Onde quer que ela tenha sido implementada tem problema. Não é algo pontual, é sistêmico. Os problemas são estruturais.

A segunda coisa é que, uma vez implementada nos estados, os estudantes sentem seus efeitos. E são horrorosos. Estudantes de terceiro ano do ensino médio não sabem o que fazer na escola, porque não há aula nem conteúdo. Eles estão desesperados, não sabem o que fazer no Enem no final do ano. As escolas estão totalmente sem organização, e os estudantes não sabem como escolher o itinerário formativo. Não tem curso técnico, não tem professor, é uma confusão. A questão toda nem passa pelo fato de o itinerário ser esdrúxulo, com coisas como aula de “brigadeiro gourmet” ou “oficina de unhas”. É que não tem aula mesmo. É falta de professor. É ensino a distância a rodo. Não há como sustentar isso.

E a terceira coisa é que existe uma esperança depois que o Lula assumiu o mandato de presidente. O país elegeu um governo de perfil progressista, o que traz para as pessoas uma expectativa de mudança. É uma conjunção dessas três coisas: pesquisa, vivência prática das mazelas da reforma e expectativa de mudança. A soma desses fatores deu no movimento #RevogaNEM, um movimento nacional orgânico e importantíssimo, que envolve sindicatos de todos os estados, entidades estudantis, associações científicas, movimentos sociais, grupos de pesquisa. Só não envolve quem defende a manutenção da reforma do ensino médio: institutos/fundações empresariais, secretários estaduais de educação e, infelizmente, o próprio Ministério da Educação, hoje muito próximo ideologicamente das fundações empresariais. Recentemente vimos um movimento de tentativa de engrossar o coro pela permanência da reforma: jornalistas, editorais dos grandes jornais, Sérgio Moro, Luciano Huck, o MDB através da Fundação Ulysses Guimarães, Cristovam Buarque, toda a falange de golpistas de 2016. Somaram-se ainda as escolas privadas, o Conselho Estadual de Educação de São Paulo etc.

É uma coisa absolutamente ridícula o Conselho Estadual de Educação de São Paulo ser contra a suspensão do calendário de implementação da reforma que o MEC propôs, já que, na verdade, São Paulo concluiu a implementação da reforma do ensino médio em 2023. O Ministério da Educação lançou uma portaria que suspende o calendário de implementação da reforma. Faz sentido, considerando que o governo foi levado, por ampla pressão social, a abrir essa consulta pública. E se há uma consulta pública para discutir a mudança numa política que está em andamento, é muito lógico que se suspenda a implementação de tal política, até que se saiba se o resultado dessa consulta pública poderá mudar o futuro da política. É óbvio.

O protesto inócuo do Conselho Estadual de Educação de São Paulo visa mostrar que são contra o Ministério da Educação. É a mesma tática do Bolsonaro de romper os pactos de responsabilidades federativas, ainda que seja mero estardalhaço. Se o MEC suspender o calendário de implementação, quem não implementou a reforma tem de suspendê-la. É simples. São Paulo não tem nada a ver com isso. Mas quer participar do debate público só para tumultuar e afirmar que uma grande parte da sociedade é a favor da reforma. Isso é mentira: a maior parte da sociedade hoje deplora o Novo Ensino Médio. As mães e pais dos estudantes estão batendo nas portas dos diretores escolares querendo saber o que aconteceu com as aulas de geografia, de física, de química, de matemática, pois seus filhos não estão aprendendo nada na escola. “Tira o pé do chão” não é aula. “Making more money” não é aula. “Seja o seu próprio patrão” não é aula.

As pessoas querem aprender na escola as coisas que não aprenderiam em outros lugares. É isso o que acontece com a população comum, usuária e beneficiária da escola pública, e que deplora a reforma. Agora vemos uma reação das elites econômicas do país de tentar abafar um pouco o volume de crítica para atenuar o movimento pela revogação. E há muitos deputados federais e senadores da base do governo dispostos a pautar, tramitar e assinar projeto de lei revogatório da reforma do ensino médio. Mas quando vemos editorial do Estadão pressionando diretamente o presidente da república pela manutenção da reforma do ensino médio podemos entender quais são os interesses em jogo e quais são os grupos defensores da reforma educacional antipovo.

Correio da Cidadania: Como você disse, São Paulo já implementa a reforma. Por sinal, durante a pandemia você concedeu entrevista na qual afirmou que o estado aproveitava a crise sanitária para fazer isso sem debate real com as comunidades escolares. O NEM também promete em seu texto de lei que a carga horária aumentaria. Dois anos depois desta entrevista, o que você pode comentar da realidade apresentada?

Fernando Cássio: Na metade do ano passado, fizemos uma coleta de dados de atribuição de aulas de professores, a fim de saber mais dos itinerários formativos do ensino médio na rede estadual de São Paulo. E a gente viu que 20% das aulas não tinham professor. Isso na metade do ano. Estamos falando de milhões de estudantes sem aula durante seis meses. Vinte por cento das aulas sem professor significa que um quinto dos alunos não tem aula, ou seja, um dia por semana sem aula por falta de professor.

Se a gente projetar isso ao longo do ensino médio inteiro, temos estudantes com menos 20% do ensino médio. Se estuda de noite ou à tarde, os números sobem para quase um terço das aulas sem professor. Ou seja, é como se os/as estudantes passassem um ano a menos na escola, em comparação com quem está nas escolas privadas. Os alunos ficam jogando conversa fora, jogando truco, fazendo qualquer coisa. Tanto que tem uma coisa que está começando a acontecer agora em algumas escolas, muitas vezes com o aval das direções escolares: os estudantes pedem que seus professores deem aulas “de verdade”: “não quero ter aula de itinerário sem sentido, quero ter aula de Sociologia, quero ter aula de Química, quero ter aula de Biologia”.

O empresariado provavelmente dirá que os professores estão boicotando a reforma do ensino médio. Mas essas, na verdade, são formas cotidianas de resistência. Os estudantes não validam os itinerários, não veem aquilo como aula, sabem diferenciar uma aula com conteúdo substantivo de uma aula sem conteúdo. Aí professores e estudantes negociam e concluem que o melhor é esquecer o itinerário e trabalhar a Geografia, a História etc. Os estudantes entendem muito bem a relevância do acesso ao conhecimento humanístico, científico e da cultura que só é possível via escola.

É uma falácia isso de que os estudantes não gostam da escola porque tem aula de História, de Sociologia, de Química. Os estudantes não gostam da escola porque a escola é dilapidada, não tem investimento, não tem aula, não tem política de permanência estudantil, porque a escola é feia, toda gradeada, e agora cada vez mais cheia de polícia. São muitos os fatores que afastam os estudantes das escolas, inclusive a pobreza e a necessidade de trabalhar.

Não faz sentido essa ideia de que as disciplinas eram as responsáveis pelo problema. Os estudantes estão querendo de volta as disciplinas e o conteúdo que foi tirado da escola. Até porque eles sabem que esta é uma diferença crucial entre a escola pública e a escola privada. Nesta última, ninguém deixou de ter aula de Sociologia, de Química, ninguém perdeu aula para a inclusão daquele divertido itinerário formativo de robótica. Os estudantes sabem disso. Não é fácil fazê-los de tontos.

Correio da Cidadania: Até porque os secundaristas anos antes fizeram um grande movimento contra algumas reformas que reduziam o número de salas nas escolas públicas, existe um acúmulo de crítica à forma como o Estado trata a escola pública entre os jovens. Ao mesmo tempo, esse debate atual começou sendo retratado pela mídia como se fosse uma revolta de aparelhos tradicionais e supostamente ultrapassados que não representariam uma grande parcela das comunidades escolares. Como você pode descrever este movimento pela revogação do novo ensino médio e sua construção real?

Fernando Cássio: O movimento ainda está se desenvolvendo e ainda vai crescer. Os estudantes estão na rua rechaçando a reforma. E as fundações e institutos empresariais financiados por bilionários – que formularam a reforma e a vêm implementando junto com as secretarias estaduais de educação – seguem querendo falar pelos estudantes. “O estudante não gosta da escola, os estudantes querem uma escola que faça sentido para eles, o estudante quer uma escola do século 21”, “o estudante quer protagonismo”, “o estudante quer ser empreendedor” – um monte de platitudes sem qualquer lastro na realidade.

O caso é que a reforma do ensino médio já está nas escolas e, na vida real, nem aula tem. A coisa é muito concreta: a rede de ensino estadual de São Paulo, a maior do país, não cumpre a Lei n. 13.415/2017 da reforma do ensino médio, porque não tem professor e porque ela entrega ensino a distância no lugar de ensino presencial.

A realidade da reforma se impôs de tal forma, que já não é possível falar do “Novo” Ensino Médio em abstrato, afirmando que a reforma se baseia nas experiências de outros países, que traz a flexibilização do currículo... Isso não existe na realidade. Os defensores da reforma simplesmente não têm argumentos para refutar os dados e ir contra os estudantes que estão nas ruas exigindo a revogação do NEM. A política educacional não existe em abstrato; ela precisa ser debatida na realidade, dos sujeitos de direitos para os quais ela é destinada. Todo mundo é a favor de uma escola melhor, mas isso não significa apoiar uma reforma educacional que, embora afirme que vai trazer o ensino médio público brasileiro para o século 21, aprofunda desigualdades que remetem ao período pré-Constituição de 1988.

Correio da Cidadania: E como imaginar que teríamos uma ampliação da carga horária e da própria qualidade da formação escolar num contexto de políticas econômicas de austeridade que diminuem sistematicamente os investimentos público em áreas sociais, como é a educação pública?

Fernando Cássio: Não tem como melhorar. A reforma promete currículo flexível sem construir uma sala de aula sequer e sem concurso público para professor nas redes de ensino. A rede estadual de São Paulo não faz concurso para professor de ensino médio há dez anos, e hoje tem entre 40% e 50% de professores com contratos temporários. Trabalho precário. Essa é a realidade.

Não tem melhoria salarial substantiva para professores, melhoria na carreira, nas condições de trabalho, não tem política de permanência estudantil para garantir que aquele estudante do ensino médio noturno possa de fato usufruir da tão festejada escola de tempo integral. Não existe a previsão de ampliar, por exemplo, o sistema de institutos federais, a rede dos institutos federais ou as escolas técnicas estaduais.

Dessa forma, como querem prometer ensino técnico e profissionalizante para todo mundo? Estão refazendo aquela promessa nunca cumprida da Ditadura Militar, de que todo estudante do antigo 2º grau ia poder ter ensino técnico, como se projetou na Lei n. 5.692/1971. Hoje, como naquela época, a promessa não vem acompanhada do investimento público adequado. Sem melhorar qualitativamente as condições de escolarização no ensino médio – com financiamento robusto –, não há desenho curricular flexível e ampliação de carga horária que deem conta de melhorar as coisas. Serão sempre promessas vãs.

O problema da reforma do ensino médio não é criar desigualdade entre a escola pública e privada, até porque essa desigualdade já está dada desde sempre. A reforma cria novos mecanismos geradores de desigualdade dentro da rede pública, a que atende os 88% dos estudantes do ensino médio no país. Esse é o problema: o novo ensino médio piora as desigualdades já existentes dentro do sistema público. Tem uma classe média dentro do sistema público. E tem gente extremamente vulnerável dentro do sistema público também. É a desigualdade entre esses estudantes que a reforma está aprofundando.

Correio da Cidadania: Do ponto de vista de quem trabalha nas comunidades escolares existe uma precarização do trabalho, uma precarização das condições materiais ali do cotidiano das escolas? Como você descreve viver sob a nova reforma do ensino médio para quem presta o serviço de ensino público?

Fernando Cássio: Tenho usado a imagem de uma bomba atômica para descrever os efeitos da reforma do ensino médio nas redes de ensino. Ela cai e pulveriza tudo. Tem um efeito profundamente desorganizador. Ela desorganiza a escola, a rede de ensino, a organização das classes, a atribuição aos professores, tudo. E ela intensifica brutalmente o trabalho docente. Essa ideia tola de interdisciplinaridade como supressão das disciplinas é extremamente funcional a quem não deseja enfrentar o problema de não termos professores e professoras formados em licenciatura para atuar nas áreas em que lecionam.

Esse é um problema que foi enfrentado lá nos primeiros governos Lula. Tivemos programas como Parfor (Programa Nacional de Formação de Professores a Educação Básica), que através de polos avançados das universidades públicas, especialmente as federais, formava professores nas regiões em que eles eram necessários. Isso foi feito e melhorou o contingente de professores e professoras com licenciatura em Física, Sociologia, Filosofia e Química, para citar as quatro áreas em que mais faltam professores especialistas no país.

Aí vem a reforma e faz o quê? Elimina as disciplinas e a necessidade de ter professor com formação específica para aquilo que leciona. Precariza em níveis inéditos a profissionalidade docente, regredindo em décadas o árduo trabalho de formar professores e professoras para lecionar em áreas específicas.

Ser professor de Química não é igual ser professor de Física, não é a mesma coisa. Essas disciplinas possuem métodos diferentes e formas diferentes de interpelar o mundo. A interdisciplinaridade pressupõe o conhecimento disciplinar: é preciso estudar as diferentes coisas, os diferentes métodos das disciplinas, para ser capaz de fazer transposições entre métodos, perguntas, abordagens. Interdisciplinaridade é esforço intelectual; não é coisa que se postule por reforma curricular.

Outro retrocesso objetivo dessa reforma é a intensificação do trabalho docente. O professor e a professora de História agora lecionam oito itinerários formativos, com o mesmo tempo de preparação das aulas, o mesmo salário e as mesmas condições de trabalho. Alguém supõe que a qualidade do trabalho desses profissionais tenha melhorado? E é claro que, com o acúmulo de tarefas, o professorado fica muito mais suscetível à tutela pedagógica dos materiais apostilados de baixa qualidade oferecidos nas redes estaduais com o patrocínio de fundações empresariais e, no estado de São Paulo, até de empresas como iFood.

A reforma do ensino médio precarizou o trabalho docente num nível inédito.

Correio da Cidadania: O que deveria ser uma política pública mais interessante para as comunidades escolares, alunos, professores, pais, mães, e quem mais faz parte da escola pública? O que o governo Lula poderia apresentar à sociedade?

Fernando Cássio: O Estadão me fez uma pergunta parecida: “mas vai revogar e colocar o que no lugar?”. Entendo que esta pergunta não é adequada, já que, como especialista em educação, eu não posso simplesmente tirar uma proposta de ensino médio do meu bolso e falar que é melhor do que aquela que saiu dos bolsos das fundações e institutos empresariais no governo Temer. Seria simplesmente trocar uma proposta centralizada por outra.

O que eu defendo é o seguinte: a revogação da reforma do ensino médio como início de um processo de construção política. Defendo uma Conferência Nacional para discutir ensino médio no Brasil. O governo Lula é muito experiente em organizar conferências nacionais de políticas públicas, começando nos municípios e terminando em Brasília. É a única forma de construir uma proposta de ensino médio enraizada nas escolas e com o mínimo de consenso social.

O MEC deveria perceber as escolas, especialmente as escolas públicas, como espaços de produção das políticas educacionais,. É justamente a não percepção da escola como espaço de produção de políticas educacionais que leva os estudantes à rua para protestar contra a reforma do ensino médio. Levou os estudantes, em 2016, a ocuparem mais de mil escolas no país contra a Medida Provisória n. 746/2016 que deu origem à atual Lei n. 13.415/2017. Algumas pessoas têm uma memória convenientemente curta, mas em 2016 os estudantes já estavam protestando contra a reforma do ensino médio, e os pesquisadores já estavam escrevendo e prevendo a tragédia que hoje salta à vista em toda escola de ensino médio do país.

Considerando que o governo Lula defende um país com alta densidade democrática, ele deveria praticar essa democracia tendo a coragem política de apoiar a revogação dessa reforma nefasta e antidemocrática, bem como um processo político para a construção de um ensino médio com a mínima legitimidade social. E não faltam parlamentares dispostos a fazer tal discussão no Congresso Nacional, pautar projetos de lei etc.

Em razão de termos uma cúpula do MEC ideologicamente alinhada às fundações e institutos empresariais que formularam e implementaram a reforma do ensino médio, é o Executivo que vem se negando a apoiar a tramitação de um projeto de lei para revogar esta reforma antipovo. Falta a coragem política de sentar com os governadores e seus secretários de educação e perguntar se estão confortáveis com a posição de corresponsáveis pela tragédia educacional em curso no país, com efeitos devastadores e de longo prazo na formação escolar das próximas gerações.

Enquanto isso, as pessoas vão continuar protestando. Não sairão das ruas, porque esta reforma está acabando com o ensino médio brasileiro. Está destruindo sonhos dos jovens do país. O Brasil tem 7,9 milhões de estudantes no ensino médio, 88% na escola pública. Temos um governo que, por um lado, defende políticas de democratização do acesso ao ensino superior e, por outro lado, contribui para destruir o ensino médio e impedir esse mesmo acesso ao ensino superior. Não dá para sustentar os dois projetos ao mesmo tempo.

O próprio presidente Lula diz que o seu governo não precisa de tapinha nas costas, precisa de pressão. Numa democracia, um governo precisa de pressão popular para poder atuar. Defender a revogação do NEM não é fazer oposição ao governo Lula, é reivindicar direitos por enxergar neste governo de perfil progressista uma disposição ao diálogo. Não é à toa que o #RevogaNEM tenha crescido agora. E não é à toa que todos os representantes das elites do país apoiem uma reforma do ensino médio que piora a educação dos que já tinham uma educação pior.

Correio da Cidadania: Por fim, você falou do interesse empresarial em fazer a reforma com todo o perfil que debatemos aqui, um projeto educacional reducionista, precarizante. Mas as alegações são sempre na linha de modernização, o que sugere uma ideia de preparar aquele que hoje é estudante para os desafios do futuro, a economia do futuro, o mercado de trabalho do futuro. De acordo com suas críticas, qual seria o interesse de tais atores, que representam os líderes da economia do país e por tabela grandes empregadores, em precarizar e formar uma classe trabalhadora menos qualificada e mal formada em sua base? Qual é a lógica disso?

Fernando Cássio: O Christian Laval, num livro de 20 anos atrás – A escola não é uma empresa – analisou lindamente o discurso de “modernização da escola” das reformas educacionais contemporâneas. É um discurso moral que fabrica valores como “escola moderna”, “profissão do futuro”, “escola do século 21” – e “Novo” Ensino Médio (o adjetivo, aqui, diz tudo) – para escamotear o que as coisas efetivamente são e, ao mesmo tempo, rotular todas as visões críticas como atrasadas, retrógradas, reacionárias, ideologizadas, luditas.

Veja que, neste momento, é o próprio ministro da educação quem afirma publicamente que os que defendem a revogação da reforma do ensino médio (que produz retrocessos objetivos na educação brasileira) desejam voltar ao passado. O nível de distorção desse tipo de raciocínio nos faria concluir que os estudantes que estão nas ruas exigindo ter acesso ao conhecimento nas escolas são conservadores, enquanto as fundações e institutos patrocinados por bancos que defendem o estreitamento curricular do NEM são progressistas. Não faz o menor sentido uma coisa dessas.

Concordo com o Darcy Ribeiro, que falava que a nossa elite é preguiçosa, ignorante e predatória. Mesmo com o discurso manso da filantropia empresarial sobre mitigação das desigualdades via reformas educacionais, a sobrevivência dessas mesmas elites depende da perpetuação das desigualdades. Uma população mais qualificada como um todo resultaria num país menos desigual.

A questão não é saber se fulano ou sicrano leva vantagem econômica direta com a reforma do ensino médio vendendo apostilas, mas de saber que, enquanto tivermos desigualdades educacionais gritantes no país, uma fração diminuta da população seguirá comandando o país. É por isso que temos fundação empresarial financiada por bilionário tentando formatar a educação dos mais pobres. Quem está interessado em simplesmente perpetuar a desigualdade não vai apoiar uma reforma do ensino médio que vá diminuir, por exemplo, a desigualdade de acesso ao conhecimento através da escola.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do site do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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