Correio da Cidadania

SUS: Atenção Básica começa a dar os primeiros frutos

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Em uma sala do sétimo andar do prédio do ministério da Saúde, em meio a uma imensidão de outras saletas e divisórias de escritórios, Nésio Fernandes, o secretário de Atenção Primária à Saúde, recebeu nossa equipe – que estava em Brasília em função da cobertura da 17ª Conferência Nacional de Saúde. Durante o encontro, Fernandes fez uma longa e detalhada fala, didática para a compreensão dos significados da Atenção Básica em Saúde, pilar essencial do funcionamento do SUS.

Na conversa, cuja íntegra pode ser lida abaixo, o ex-secretário de saúde do município de Palmas (TO) e do estado do Espírito Santo fez uma análise da conjuntura histórica em que se encontra o campo da Saúde. Em sua visão, trata-se de uma janela de oportunidades que não pode ser desperdiçada.
“Partidos de direita, que defendiam coisas como voucher da saúde, estão defendendo saúde pública gratuita e universal. Virou uma carteira comum a muitos campos políticos. Temos um namoro, um encantamento de diversos setores com o sistema de saúde”, nota. Mas completa: “Acredito que se nós não dermos resultados de melhor performance em dois ou três anos, começamos a decompor e a diluir esta paixão, esse encantamento com o SUS, e veremos teses de revisão, de privatização ressurgirem com força”.

No momento em que a conversa era gravada, a capital federal estava aquecida pela 17ª Conferência, com seus mais de 4 mil delegados de todo o país – momento marcante na demonstração do amplo apoio que a ministra Nísia Trindade angaria entre trabalhadores e militantes do direito à saúde. A cerimônia de encerramento, com presença de Lula e discursos contundentes em favor de sua permanência, sepultou a chuva de especulações que o chamado “Centrão” plantou na mídia corporativa nas semanas anteriores.

Mas, passada a euforia, volta-se à rotina. E dentro de tal normalidade, é necessário falar do trabalho prático da administração pública. Como explicou Fernandes, a Atenção Primária em Saúde é um excelente campo de apresentação de resultados concretos. “Para um primeiro ano de governo, decisões estruturantes na atenção primária são capazes de gerar uma expectativa de resultados em 12 ou 24 meses, que outras políticas não geram”, afirma.
O secretário também coloca as necessidades em saúde da população à luz de sua distribuição geográfica e socioeconômica, o que explica boa parte das decisões tomadas neste primeiro semestre de governo. A mais midiática de todas, sem dúvidas, o Mais Médicos.

“Neste desenho, o Programa Mais Médicos é uma solução nacional para um problema local. Seja daqueles 1.256 municípios com menos de cinco mil habitantes, seja de grandes capitais que possuem regiões sem médicos. Com o novo edital de coparticipação do Mais Médicos, que está vigente, nós já temos um grande sucesso de adesão dos municípios a novas vagas da expansão do programa. Nós desenhamos um programa que chegaria no final deste ano com 28, 30 mil vagas. Talvez a gente se surpreenda e tenha mais”, revela.

Combatido pela direita por questões ideológicas e corporativas, o programa ainda volta acompanhado de medidas que parecem abrir um horizonte de expansão real do SUS, conforme defendido por diversos atores do setor. As equipes multiprofissionais (eMulti) são mais uma faceta da nova estratégia de atenção básica do governo federal.

“É o resgate do antigo NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família). Nós já temos mais de 7,5 mil solicitações a essas equipes no Brasil. No auge do NASF chegamos a 5,2 mil equipes. Nós, nos primeiros seis meses, já estamos com um grande movimento, com a maior expansão de um cuidado multiprofissional já vivido na atenção básica brasileira. E isso é extraordinário. O impacto que pode ter com a implantação das equipes no primeiro ano, ao longo de três anos, é extraordinário”, comemora o secretário.

Outra singularidade do momento é o contexto econômico um tanto claudicante do setor privado. Outrora associado à eficiência e satisfação dos usuários, passa por impasses financeiros e conflitos jurídicos crescentes com os clientes. Para Nésio, uma bomba-relógio criada por sua própria concepção de cuidado em saúde. A seu ver, reforça-se a necessidade de “um SUS que funcione para 203 milhões de brasileiros”.

“Há um modelo de saúde suplementar do Brasil que tem insuficiências tanto na questão da universalidade do acesso, que não consegue dar conta, quanto na integralidade do cuidado. E uma modelagem de coparticipação, com planos que não cobrem todos os serviços que esses pacientes precisam, acaba fazendo com que este paciente migre para o Sistema Único de Saúde”, analisa.

Ao longo da entrevista, Nésio Fernandes também comentou a Conferência Nacional de Saúde. Ele acredita que o encontro não só simboliza a “união e reconstrução” defendida pelo governo, como coloca na ordem do dia a ideia histórica de controle social pelos usuários. Entre outras questões de seu âmbito, também comentou o avanço da digitalização do SUS e das possibilidades que abre em favor da organização de políticas públicas.

Leia a íntegra da entrevista.

Quais seriam os desafios mais importantes da atenção primária no atual momento? Como a secretaria que você ocupa pode ajudar nos objetivos gerais do Estado na área da saúde, no contexto herdado da pandemia?

Atenção Primária em Saúde (APS) é, sem dúvida nenhuma, em todos os níveis de atenção que existem no SUS, uma grande oportunidade de decisões pragmáticas e resultados rápidos. Primeiro porque é o único nível essencial presente em todos os municípios do Brasil. Grandes políticas que têm financiamento federal, como por exemplo UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), são para municípios com mais de 50 mil habitantes. Somente 15% dos municípios do Brasil têm mais de 50 mil habitantes. Hospitais com 100, 150 leitos, que são hospitais sustentáveis, também são desenhados para municípios grandes, com 80, 100, 200 mil habitantes. E o Brasil é um país de pequenos municípios: 68% dos municípios do Brasil têm menos de 20 mil habitantes. Basicamente, as políticas federais aptas a esse tipo de município são vinculadas à atenção básica, que a gente hoje denomina com maior consenso como atenção primária em saúde.

Assim, se pensarmos em universalização do acesso, garantia do cuidado integral, precisamos pensar em desenhos vinculados à atenção primária em saúde. Porque é a parametrização que alcança a grande maioria dos municípios do Brasil, ainda que esses municípios não tenham a maior parte da população. Vejam que 1.256 municípios possuem menos de 5 mil habitantes. Eles representam 22% do total de municípios do Brasil e possuem somente 2% da população brasileira morando neles.

Ou seja, falamos de um esforço cujo impacto alcança 22% dos municípios e 2% da população brasileira. No entanto, lá tem gente, tem pessoas, tem os recortes de gênero, de raça, os estratos sociais, econômicos, todos os recortes possíveis e desigualdades vinculadas.

E a APS tem uma outra característica: ela é 99% estatal, pouco terceirizada e tem poucos arranjos jurídicos que a operacionalizam nos municípios. São poucos os municípios do Brasil que possuem OSs (Organizações Sociais) ou outros tipos de terceirização como modelo principal de governança da atenção primária. Dentro do que nos cabe no ministério da Saúde, ao publicar uma determinada portaria com uma política – financiamento, diretrizes e apoio à implementação – em até quatro meses já gerou-se em todo o país, de maneira bem uniforme, uma grande mudança.

Quando se trata de outros níveis de atenção, por exemplo, atenção especializada, é uma confusão gigantesca, porque tem lugares onde quem deve liderar é o município, noutros o estado, em cada região é diferente, tem muitas figuras jurídicas, filantrópicas, públicas, estatais, mistas. É um conjunto de atores muito diverso para conciliar e mobilizar em políticas nacionais. Portanto, para um primeiro ano de governo, decisões estruturantes na atenção primária são capazes de gerar uma expectativa de resultados em 12 ou 24 meses que outras políticas não geram.

Portanto, num país com as características do Brasil é impossível pensar uma política ampla de saúde sem priorizar a atenção primária.

O Brasil tem a seguinte situação: nos anos 90, tínhamos uma disputa de dois modelos de atenção básica. Um que dizia o seguinte: na atenção básica para os países em desenvolvimento é preciso um programa que coloca uma enfermeira, um agente de saúde, um assistente social; procura-se a população mais pobre, faz-se exame de rastreamento, entrega-se remédio de hipertensão e diabetes e pronto, tem-se um programa de atenção primária.

A partir de 2006, com a publicação da Política Nacional de Atenção Primária (PNAB), decidiu-se que a APS deveria ser composta por profissionais capazes de garantir um cuidado integral e ao longo da vida, uma atenção capaz de cuidar do curso da vida, tanto dos problemas crônicos quanto da demanda espontânea. As equipes deveriam ser compostas por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e um conjunto de agentes comunitários de saúde para atender tudo que estiver naquela comunidade, com o cuidado longitudinal e voltado a todos os problemas, de criança, adolescente, mães, gestantes, trabalhadores, idosos, domiciliados do programa saúde na escola… Uma atenção primária integral.

Só que nós esbarramos em alguns problemas. O teto do salário dos prefeitos é o teto do pagamento do funcionalismo público de cada município. A grande maioria dos prefeitos ganha um salário entre 8 e 10 mil reais mensais, de modo que não se consegue contratar um médico para ficar 40 horas semanais no município. No governo anterior, criou-se uma figura com o financiamento das equipes de atenção primária sem o agente comunitário de saúde. Muitas equipes foram expandidas sem o conceito da Estratégia de Saúde da Família, com quarenta horas semanais no mesmo lugar. Como o Mais Médicos foi desidratado e o Médicos pelo Brasil não chegou com capacidade de substituir o que foi o Mais Médicos no seu auge, e tampouco ir além, os municípios ficaram com mais ou menos 5 mil vagas ociosas sem preenchimento do programa Mais Médicos ou do Médicos do Brasil.

Nós tínhamos 4 mil Equipes de Saúde da Família no Brasil sem médicos no início de 2023. E muitas equipes de atenção primária sem agente comunitário de saúde, sem equipes de Estratégia de Saúde da Família com quarenta horas semanais sendo expandidas e criadas. Com o relançamento do Mais Médicos, reformulado, já chegamos a 20 mil vagas de provimento federal efetivas nos municípios. São cinco mil vagas do Médicos pelo Brasil, mais as vagas que tínhamos remanescentes do programa, os editais que lançamos para a saúde indígena e o último edital do Mais Médicos. Com todos esses editais chegaremos a vinte mil vagas integralmente financiadas pelo Governo Federal.

E qual a vantagem do Mais Médicos? O profissional cumpre cinco dias de carga horária, faz uma especialização, tem um vínculo de quatro anos, é estimulado a fazer uma prova de título e tem uma remuneração média de 15 mil reais por mês, líquidos, o que é mais atrativo e acima do limite que os municípios podem pagar. Assim, neste desenho o Programa Mais Médicos é uma solução nacional para um problema local, seja daqueles 1.256 municípios com menos de cinco mil habitantes, seja de grandes capitais que possuem regiões sem médicos. Com o novo edital de coparticipação do Mais Médicos, que está vigente, nós já temos um grande sucesso de adesão dos municípios a novas vagas da expansão do programa. Nós desenhamos um programa que chegaria no final deste ano com 28, 30 mil vagas. Talvez a gente se surpreenda e tenha mais.

Portanto, já se pode falar num efetivo salto de qualidade da atenção primária nesses primeiros seis meses de governo?

As vagas abertas agora são de adesão dos municípios. Os municípios estão solicitando mais vagas para o Mais Médicos, inclusive municípios que nunca participaram do programa. Com essa capacidade de expansão do Mais Médicos no recrutamento, tais municípios vão transformar muitas Equipes de Saúde da Família de 20 ou 30 horas semanais em equipes estratégicas da família de quarenta horas. Terão condições de aproveitar o enfermeiro, o técnico e o agente que já está no município e expandir a Estratégia da Saúde da Família. Nós estamos criando uma condição objetiva para que o modelo de atenção primária com cuidado integral possa ser expandido rapidamente no país.

Nas simulações que temos feito, junto com o orçamento já disponibilizado para a SAPS (Secretaria de Atenção Primária à Saúde), nós podemos inclusive ter um recorde de expansão de novas Equipes de Saúde da Família, nunca visto desde a criação da PNAB. Isso ainda neste ano, em todo o país.

Para complementar, publicamos a portaria das equipes multiprofissionais, que podem ser compostas por até 23 profissões da saúde, entre elas 11 especialidades médicas, para que os municípios possam implantar essas equipes e ter um cuidado especializado no território em apoio à saúde da família. É o resgate do antigo NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família). Nós já temos mais de 7.500 solicitações a essas equipes no Brasil. No auge do NASF chegamos a 5.200 equipes. Nós, nos primeiros seis meses, já estamos com um grande movimento de conjunto no Brasil, com a maior expansão de um cuidado multiprofissional já vivido na atenção básica brasileira. E isso é extraordinário. O impacto que pode ter com a implantação das equipes no primeiro ano, ao longo de três anos, é extraordinário.

Uma ampliação prática do SUS, como defendido por boa parte dos especialistas e militantes da saúde durante a última campanha eleitoral?

Isso mesmo, porque incluímos, além dos que já estavam (fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos), os infectologistas, cardiologistas, endocrinologistas, os hansenólogos para apoiar o processo de diagnóstico da hanseníase no Brasil, os dermatologistas, além das outras especialidades que já podiam, como a psiquiatria, geriatria, a pediatria, gineco-obstetrícia. Cria-se um movimento aonde poderemos, com financiamento federal, induzir um cuidado mais ampliado na APS. E também vamos ter atualizações do nosso sistema com o E-SUS-APS, o nosso prontuário eletrônico, que vai permitir um cuidado compartilhado mais adequado, integrações com diversos bancos de dados e com outras novidades que a ministra ainda anunciará.

Portanto, esse processo de incorporação digital se junta às equipes multifuncionais, com expansão da atenção primária e recursos garantidos. Também entra nisso a publicação da portaria da SESB (Serviços Especializados em Saúde Bucal), com possibilidade de o município receber 9 mil reais por mês para ter até 30 horas semanais de duas ou três especialidades odontológicas, categoria disponibilizada para municípios com até 20 mil habitantes. A SESB é desenhada para o Brasil de pequenos municípios, onde se poderá ter um odontopediatra, um endodontista, um buco-maxilo, contratado para ter dez horas, quinze horas semanais de acesso ao serviço lá no município.

Imagine-se, R$ 9.000 mil reais por trinta horas semanais, contratando dois especialistas com quinze horas cada um. Só como financiamento estamos falando de R$ 4.500 por quinze horas por especialista. É um dos melhores financiamentos já publicados dentro do SUS até hoje, além de R$ 24.000 de auxílio-implantação para a criação dessas equipes.

Nós estamos falando de seis meses de governo com essa carteira de anúncios e teremos outros ao longo dos próximos dias.

Houve retrocesso na atenção primária nos últimos anos, enquanto a população intensificou seu uso do SUS. O que isso coloca aos organizadores de políticas de saúde?

A pandemia e também alguns estudos recentes estão revelando que algumas generalizações que eram feitas não têm correlação com a realidade. Algumas generalizações levavam a dizer que o Brasil tinha 25% da população coberta com planos de saúde. Um estudo recente apontou que, por exemplo, no Sudeste, especialmente em São Paulo, um de cada três usuários de plano de saúde usa o SUS com frequência, não somente o SUS da vigilância sanitária, da vacina, mas a UPA e a atenção básica. Estão na fila de espera da atenção especializada.

Há um modelo de saúde suplementar do Brasil que tem insuficiências tanto na questão da universalidade do acesso, que não consegue dar, quanto na integralidade do cuidado. E numa modelagem de coparticipação, com planos que não cobrem todos os serviços que esses pacientes precisam, acaba-se fazendo com que este paciente migre para o Sistema Único de Saúde.

E aí nós temos a seguinte realidade: o SUS precisa se preparar para atender todo mundo. Ele tem de ser um sistema desenhado para atender 203 milhões de brasileiros, de acordo com o Censo do IBGE. Todos os brasileiros e qualquer ser humano que pise o solo nacional.

Portanto, o sistema tem atributos e competências constitucionais, grandes virtudes da sua história, mas tem grandes insuficiências ainda. Essas insuficiências vão ser resolvidas na medida em que a gente fortalecer todos os níveis de atenção. Não dá para fazer um sistema funcionar sendo um sistema de uma nota só. Não pode ser só atenção hospitalar, só atenção especializada ou só atenção básica. Ele precisa dar conta de todas as dimensões do cuidado.

E aí a pandemia gerou o quê? Uma visibilidade maior do grau de pertencimento da sociedade e das instituições com o SUS. Isso para nós é uma janela de oportunidade porque hoje inclusive partidos de direita, que defendiam coisas como voucher da saúde, estão defendendo saúde pública gratuita e universal. Virou uma carteira comum a muitos campos políticos e temos um namoro, um encantamento, de diversos setores com o sistema de saúde. No entanto, acredito que se nós não dermos resultados de melhor performance em dois ou três anos começamos a decompor e a diluir esta paixão, esse encantamento com o sistema e veremos teses de revisão, de privatização ressurgirem com força.

Portanto, precisamos entender a janela de oportunidade de fortalecimento do Sistema Único de Saúde. E para isso nós temos uma ministra sanitarista. Nós temos uma ministra escolhida pelo presidente Lula, na sua convicção pessoal, capaz de unir gestores estaduais, gestores municipais, dialogar de maneira muito republicana com o Congresso Nacional e com uma atenção especial ao controle social. O controle social composto por usuários, trabalhadores e gestores que defendem esse sistema de saúde, nos marcos da constituição. Assim, nós entendemos que essa janela precisa ser aproveitada especialmente no contexto de um presidente com sensibilidade social gigantesca e uma ministra sanitarista com as características da Nísia.

Nesse sentido, vemos que na saúde privada as empresas parecem buscar cada vez mais inspiradas na política de atenção primária concebida pelo SUS. Você vê algum risco para para atenção primeira pelo SUS caso elas percebem esse caminho da medicina preventiva?


Eu acho que esse setor demorou para entender que não era sustentável o modelo Fee for Service. Demorou muito para entender que se a pessoa tem uma dor de barriga e vai no gastro, no hepatologista, no urologista, no clínico geral, quando tem um diagnóstico quer uma segunda opinião, uma terceira opinião, essa maluquice toda não resolve, não garante qualidade de vida ao cuidado da população que tem plano de saúde.

O mundo já entendeu há anos que ter um médico especializado em gente com abordagem holística, um cuidado integral, que faz exame físico, que valoriza a propedêutica, que consegue orientar bem a conduta do paciente e ter um cuidado com o vínculo ao longo da vida, um cuidado longitudinal, é muito melhor e mais eficiente. Tanto na satisfação do usuário quanto também nos desfechos clínicos. Isso é aplicável e reproduzível tanto no setor público quanto no setor privado. E o modelo constitucional do Brasil é misto. Eu não brigo com a Constituição. Eu acredito que a república, o Governo Federal, precisa preparar condições para que o SUS seja forte e autossuficiente e eu não preciso brigar com os profissionais que pretendem ou desejam ter um vínculo duplo.

Hoje no Brasil, por exemplo, 22% dos médicos têm somente vínculos públicos; 50% têm vínculos mistos e o restante vínculo privado. Isso quer dizer que 72% dos médicos têm vínculo público. Não tem problema nenhum o Brasil, daqui a alguns anos, ter 100 mil médicos de Família e Comunidade titulados e alguns atuarem na universidade, no público-privado, no SUS e em plano de saúde, ou buscarem uma segunda especialização. Isso não é ameaça. Ameaça é o Governo Federal decidir não formar muitos especialistas com qualidade e o pouco que tiver ficar só com o privado. Mas se a União decidir, como nós já decidimos, transformar quase toda atenção básica brasileira num grande serviço-escola, nós vamos ter condições de, em dez anos, formar 100 mil médicos de Família e Comunidade, a partir da valorização da residência e do próprio Mais Médicos.

Portanto, a questão aqui colocada não é um problema. O setor privado não é nosso inimigo nessa dimensão. O nosso inimigo seria a incapacidade política da União decidir aquilo que deveria ter decidido há muitos anos, que é apostar e muito na Medicina de Família e Comunidade e em outras áreas estratégicas para o cuidado especializado no SUS.

A respeito da digitalização do sistema, como anda o E-SUS? Quais contribuições poderá aportar a essa dinamização da atenção primária?

O E-SUS foi uma das principais decisões tomadas no Ministério da Saúde nos últimos dez anos. Hoje é utilizado por 77% cento dos municípios brasileiros, 69% dos municípios com mais de 100 mil habitantes. Isso é uma janela gigantesca de oportunidade de digitalização e aceleração digital do nosso sistema de saúde. Tudo aquilo que incrementarmos de novas funcionalidades amanhã estará disponível para 77% dos municípios do Brasil.

Em breve a ministra e o presidente Lula farão anúncios de novas funcionalidades que estarão disponíveis e que sem dúvida nenhuma poderão levar a uma ampliação da quantidade de municípios que utilizarão o E-SUS-APS. Assim, acredito que vamos chegar no final do ano que vem com 90% dos municípios do Brasil usando tais recursos. Inclusive em uma modalidade de instalação que já existe há muitos anos, que é a versão multimunicipal, que compartilha o prontuário único entre todos os municípios no próprio E-SUS.

Temos ainda alguns municípios e unidades de saúde que não possuem conexão, mas a ampla maioria já tem. Portanto, se temos uma solução tecnológica para a ampla maioria, teremos resultado na ampla maioria das situações. E vamos vencendo os desafios vinculados à conectividade, mobilização de hardware, de compra de equipamentos, para que todo mundo tenha.

Nós defendemos a tese de dinheiro público em software público. Nós defendemos a tese de que a união poderia radicalizar ainda mais uma opção mais explícita pelo software livre no âmbito da gestão pública. E o E-SUS-APS é um passo nessa direção, um investimento público federal capaz de ser uma solução comum à ampla maioria das realidades do país.

Esse resultado veremos através dessas informações que são registadas no conjunto de dados, é extremamente importante.

Diante dessa janela histórica de oportunidade e da questão do avanço na ideia do controle social do SUS, como você observou e vivenciou a 17a. Conferência Nacional de Saúde? O que ela representa para o SUS?

O último período foi de muita tutela em muitos temas. O movimento social não vivia um momento onde era benvindo, não havia liberdade de articulação, mobilização, uma postura institucional que buscasse entendimento e a concertação. O movimento social teve de viver, especialmente no Sistema Único de Saúde, tempos de muita resistência. Porque infelizmente teses negacionistas, antivacinas, anticiência, foram acolhidas no seio do executivo federal. Coube a este campo do controle social viver todo o ciclo pandêmico organizando e articulando resistência. E o país estava dividido, polarizado. Com a vitória do presidente Lula, nós passamos a viver uma encomenda de uma agenda de “união e reconstrução”. Assim, uma Conferência que aponta a perspectiva de que “amanhã vai ser outro dia”, é uma conferência que trabalha com a esperança, trabalha com a perspectiva de que a gente consiga viver um novo momento.

E acho que a decisão do Governo Federal de apoiar a realização da conferência com o tamanho que ela teve, representa, sem dúvida nenhuma, uma oportunidade de reafirmar as conquistas do sistema de saúde, reafirmar diretrizes, bandeiras e fazer grandes sínteses para o nosso planejamento dos próximos quatro anos.

O Plano Nacional de Saúde precisa de grandes sínteses e grandes resultados como conclusões desta conferência. Por isso o Conselho Nacional de Saúde, especialmente pela liderança da Secretaria Executiva, com o apoio da ministra e dos demais secretários, conseguiu garantir as condições para realização da conferência. Vale destacar que em janeiro deste ano não havia nenhum processo de contratação, de mobilização e estruturação da conferência encaminhado ao ministério da Saúde.

Assim, com todos os estados participando, com a diversidade gigantesca de movimentos sociais, com a participação muito significativa de gestores, sinto uma presença maior neste momento do que em outras conferências das quais eu participei. E a própria presença da ministra Nísia na cena e da forma como foi acolhida na abertura e no encerramento, que ainda teve a presença do presidente Lula, representa sem dúvida nenhuma um momento novo da participação social no SUS.

Geralmente, coloca-se a 8a Conferência, em 1986, como um divisor de águas, pois ali se estabeleceram as bases de fundação do SUS, além da própria redemocratização do país. Porém, eram debates mais restritos aos especialistas, gestores e pesquisadores da área da saúde. A presença massiva de setores populares na conferência, refletida nas delegações e eixos temáticos, revelaria que o debate em torno do SUS e sua afirmação está apropriado por setores da população muito além da área da saúde em si?

A 16a Conferência, da qual eu participei da relatoria, tinha mais expressões de movimentos organizados de corte conservador. Eram mais intensos os debates com pautas daquele momento que se vivia. Sinto que neste ano a conferência foi mais homogênea no sentido de movimentos mais progressistas de diversas matrizes, que participaram com força. Mas ainda entendo que o perfil majoritário dos que participam é o campo mais clássico da luta popular, de segmentos progressistas, mais avançados da sociedade. Ainda temos um desafio gigantesco no controle social de expandir para outras dimensões, outras formas de organização da sociedade, que ainda não participam de maneira ativa da experiência generalizada do controle.

Eu acho que a iniciativa que a direção atual do Conselho Nacional de Saúde adotou, de organizar um grande programa nacional de estímulo à criação de conselhos locais de saúde nas unidades básicas do Brasil, pode gerar um outro patamar de qualidade e engajamento de setores mais diversificados dentro do controle social, para além desses setores mais clássicos que sempre participaram.

Nós ainda temos uma coluna dorsal de alguns movimentos populares, de bairros, de campo, da cidade, de jovens, de mulheres, partes sindicais, participando da conferência como bloco majoritário. Com o sucesso da iniciativa do Conselho Nacional de criar mais conselhos locais, talvez haja uma diversidade maior. É uma conferência mais ampla, mas ainda somos nós com nós mesmos. O controle social sempre esteve aberto à participação de quem quisesse, qualquer expressão de movimento local participa e é acolhido, entra na rotina, na curva de agendas que os conselhos locais, estaduais e municipais, estabelecem pelo controle social. Mas ainda há uma hegemonia dos grupos que sempre estiveram à frente do controle social e o lideraram. Isso não é ruim, não é uma crítica, é um reconhecimento. Apenas coloco um desafio de ir além, um desafio de conseguir ampliar ainda mais a participação.

Acredita que a Saúde se afirma como tema central da construção da democracia no país e incidirá em debates transversais?

O SUS é uma das expressões mais avançadas do modelo civilizatório desenhado na constituinte. É uma das maiores conquistas do povo brasileiro no processo de derrotar a ditadura e reconquistar um período de democratização do país. No entanto, tivemos a herança do INAMPS e a implementação do sistema universal nos anos 90 em conflito com o modelo neoliberal, que estava sendo implementado no país. A partir da eleição do presidente Lula, passamos a ter contornos mais bem consolidados daquilo que era uma expectativa do SUS constitucional. No entanto, neste momento onde o país que emerge de um ciclo de polarização, de divisão, de muito tensionamento no seio da sociedade, o Sistema Único de Saúde passa a se constituir num ponto de construção de pontes e diálogos em torno da união nacional.

O Congresso Nacional recentemente, quando aprovou a Medida Provisória do Mais Médicos, além de aperfeiçoar o texto do executivo, fez a MP ser aprovada com o apoio de todos os campos políticos, de todos os partidos políticos praticamente. Em torno da própria vacinação, do enfrentamento da mortalidade materna infantil, da necessidade de expandir e valorizar atenção primária, garantir acesso à atenção especializada, temos tópicos que unem praticamente todos os campos políticos. Quando a ministra lança um movimento nacional pela vacinação e chama a sociedade civil, reconhece que esse desafio só será superado se a gente conseguir mobilizar toda a sociedade e os atores que são engajados em defender a vida. Nísia está justamente transformando a vacinação numa pauta de diálogo nacional e de construção de pontes.

O mesmo quando pode ser dito quando apresentamos uma estratégia de enfrentamento à mortalidade materna infantil e a diversas outras pautas que vão fortalecer o SUS. Deputados, senadores, governadores de qualquer campo político podem aportar junto à União mais recursos em saúde pública. Portanto, a saúde, sem dúvida nenhuma, pode representar um ponto de unidade nacional nessa construção de um país que supere a polarização. Um país dividido não prospera. É uma condição objetiva necessária ao desenvolvimento a pacificação do país. É uma condição subjetiva necessária ao entendimento de projetos centrais e prioritários a pacificação do país. Nós vamos precisar preservar todos os espaços que são de unidade e sem dúvida nenhuma o Sistema Único de Saúde é um deles.

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