Correio da Cidadania

Carreira única para o SUS, contra a precarização da vida

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Médicos fazem treinamento no hospital de campanha para tratamento de covid-19 do Complexo Esportivo do Ibirapuera. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Passada a 17ª Conferência Nacional de Saúde, foi publicada a Resolução 715 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que direciona os encaminhamentos finais dos grupos de trabalho reunidos no evento. O documento condensa as decisões para serem enviadas ao Plano Plurianual e, mais especificamente, ao Plano Nacional de Saúde, documento oficial do Estado brasileiro com diretrizes para o próximo quadriênio. Entre tantas demandas, reaparece a questão da carreira do SUS, instrumento de valorização do conjunto de profissionais da saúde pública brasileira.

Para debater o tema, o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) realizou um debate (aqui), transmitido na segunda-feira, 28/8, com a pesquisadora da Fiocruz Maria Helena Machado e a Conselheira Nacional de Saúde Fernanda Magano. Maria Helena, responsável por algumas das principais pesquisas sobre os profissionais da Enfermagem, defendeu a importância em se retomar essa pauta. Sua síntese é bem clara: valorizar o SUS só pode ser realidade se falarmos em valorização de quem trabalha no SUS.

“Saúde é bem público, mas os trabalhadores ainda não são tratados dessa forma. Se há um grande risco sobre o SUS é a precarização do trabalho, sob irresponsabilidade dos gestores. Podemos modernizar contratos de trabalho, sim, mas é preciso manter a perspectiva de combate à precarização. Não se faz carreira com trabalho precário, sem força de trabalho qualificada, sem vínculo empregatício firme”, defendeu.

O assunto parece simples, mas é ponto nevrálgico da disputa pelo Estado que opõe progressistas e neoliberais. De um lado, a defesa do serviço público, de outro, a insistência na eterna “austeridade”, ao menos para as massas trabalhadoras – enquanto o orçamento segue colonizado pelos grandes rentistas do país, a despeito da retórica do “déficit público”. Assim, a luta pelo Plano de Cargos, Carreira e Salários (PCCS) é central, e no serviço público vai bem além do campo da saúde.

O documento publicado pelo CNS, em seu artigo 50, reflete a mudança dos ventos políticos do país a partir da vitória de Lula: “Criar a Carreira Única Interfederativa, com financiamento tripartite, piso salarial nacional para todas as categorias profissionais, com contratação exclusiva por concurso público, combate à terceirização, valorização das pessoas trabalhadoras da saúde e priorização das que trabalham no território, ampliação das políticas de educação permanente, atendendo as reais necessidades da população brasileira”.

Mas basta lembrar de propostas como a da Reforma Administrativa, vendida por Paulo Guedes como solução do suposto déficit, para entender que os obstáculos à criação de uma carreira SUS são grandes. “As lutas da Enfermagem são grande demonstração do desgaste dos trabalhadores para conseguir melhores condições e como uma carreira SUS poderia evitar essas coisas”, acrescentou a psicóloga Fernanda Magano, também membro do Conselho, presente ao debate.

No entanto, a pandemia acendeu alertas não apenas relativos à importância do SUS ou da proteção social de um modo mais amplo. “A pandemia trouxe evidências. Mas a precarização avançou no país e não conseguimos avançar. É necessário retomar concursos que renovem a força de trabalho. Cerca de 20% dos trabalhadores do país têm adquirido comorbidades de saúde, como depressão. Isso é muito grave. Não vejo forma de proteger o SUS sem proteger os trabalhadores. É necessário entender isso para efetivar a saúde como bem público”, observa Maria Helena.

Como descreve a pesquisadora, especializada na força de trabalho do sistema de saúde, estamos falando de uma massa de 4 a 4,5 milhões de trabalhadores, apenas no setor público de saúde. Um sistema de saúde não é formado apenas por médicos e enfermeiros. Garantir um plano de carreira a todos seria um projeto dos mais ambiciosos, com impactos ainda pouco calculados no desenvolvimento socioeconômico.

Mas para alcançar tamanho feito, é necessário desmontar a lógica administrativa e trabalhista neoliberal, observou o presidente do Cebes, Carlos Fidelis, também presente no debate. Privatizações e terceirizações são obstáculos objetivos à garantia de melhores vínculos de trabalho.

“A ADAPS (Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde), fundação pública de direito privado criada pela lei 14621, deixou muitos problemas e nem efetivou suas promessas, em especial Médicos pelo Brasil. Permanece como serviço autônomo com possibilidade de contratação. Influencia a saúde indígena e abre brecha pra contratar qualquer outra força de trabalho, o que se choca com a ideia de promover a carreira SUS”, lembrou Fernanda Magano.

Em suma, após seis anos de furacão neoliberal e suas reformas que ouviram apenas o andar de cima da sociedade, é hora de voltarmos a falar em bem-estar social para as maiorias. O SUS, talvez principal política pública deste Brasil pós-pandemia, seria um precioso ponto de partida para a valorização de milhões de brasileiros invisíveis.

“É preciso discutir ambiente de trabalho. A questão salarial é parcialmente resolvida com pisos nacionais. O salário do trabalhador do SUS é muito baixo, o que gera uma série de problemas no sistema. Saúde indígena, que emprega 16, 17 mil trabalhadores, é um foco importante de precarização. Os vazios assistenciais são outra face relativa a isso. Outro aspecto é a mulher, que conforma 70% a 80% da força de trabalho do SUS. A carreira é a salvação do SUS, não é uma mera necessidade. Hoje temos 14 profissões configuradas no CNS e mais uma porção que gravita no sistema, além de ocupações de apoio. Conseguimos superar a pandemia, mas há várias sequelas sobre sua massa de trabalhadores”, sintetizou Maria Helena Machado.

Gabriel é editor do Correio da Cidadania e repórter do Outra Saúde, onde a matéria foi originalmente publicada.

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