Correio da Cidadania

Sobre as sucessivas derrotas no financiamento do SUS

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PLP 136/23 sela acordo realizado entre estados e União no âmbito do STF -  Comsefaz
Por que perdemos para todos os governos federais e para o Congresso Nacional desde 1988 a luta pelo financiamento adequado do Sistema Único de Saúde?

Tendo em vista a tramitação do Projeto de Lei Complementar – PLP 136*, com a inserção de artigo sobre o piso federal da saúde, recuperei a luta histórica de movimentos e pessoas que militam há décadas por um sistema de saúde financiado de forma adequada, e passei a refletir sobre que motivos nos levaram/levam às sucessivas derrotas nos trinta e cinco anos do SUS.

1 – Em 1988, quando promulgada a Constituição Federal, a Constituição Cidadã tão ameaçada em anos recentes, foi estabelecido o conceito de seguridade social e constituído o Sistema Único de Saúde, cujo financiamento, em tese, teria sido assegurado no parágrafo 1º do artigo 198:

“§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”.

2 – Logo a seguir, no processo de construção da Lei 8.080, sancionada e publicada em 19/09/90, não tivemos êxito em garantir um artigo que fixasse os percentuais mínimos de aplicação de recursos na saúde. À época se trabalhava com a ideia de fixar o percentual de 10% de aplicação no setor pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Não conseguimos.

3 – Em 1993, foi proposta a PEC 169, propondo a alteração do inciso IV do artigo 167 e o artigo 198 da Constituição Federal, prevendo recursos orçamentários a nível da União, Estados e Municípios para a manutenção do Sistema Único de Saúde, com o financiamento das redes públicas, filantrópicas e conveniadas.

Esta PEC tramitou até 27/10/1999, quando deixou de tramitar, em face de acordo no Congresso Nacional e apresentação de Emenda Aglutinativa, a PEC 82/95, sendo finalmente arquivada em 2006.

4 – A sequência e consequência desta luta pela PEC 169 é conhecida pelas pessoas que militam no setor: houve a aprovação da Emenda Constitucional 29, em 2000. Nela foram fixados os percentuais mínimos de aplicação pelos Estados e Distrito Federal (12%) e pelos Municípios (15%), mas o acordo foi de que não seria fixado o percentual para a União.

Para a União, o estabelecido foi: "I – no caso da União: a) no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento; e b) do ano 2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB”. Também foi estabelecido que lei complementar, a cada cinco anos, deveria reavaliar os percentuais.

5 – Entre 2000 e 2011, um longo caminho foi percorrido, e só conseguimos a Lei Complementar (que seria a cada cinco anos) em 2012, a LC 141 com nova derrota, pois novamente não houve a fixação do percentual mínimo da União, mantendo-se o texto da EC 29: “Art. 5º A União aplicará, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, apurado
nos termos desta Lei Complementar, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual”.

6 – Em 2012, na sede do Conselho Federal de Psicologia em Brasília – DF, foi lançado o MOVIMENTO NACIONAL EM DEFESA DA SAÚDE PÚBLICA, com o objetivo de coletar assinaturas para um Projeto de Lei de Iniciativa Popular - PLIP, fixando o repasse de 10% das receitas correntes brutas da União para a saúde, alterando assim a LC 141. Nosso famoso Movimento Saúde + 10. Conseguimos cerca de dois milhões e duzentas mil assinaturas, e o Congresso Nacional iniciou a tramitação do Projeto de Lei. Mas não avançou, mais uma derrota.

7 – O Saúde + 10 foi substituído pela Emenda Constitucional 86, que fixou para a União o percentual mínimo de 15%, mas da Receita Corrente Líquida, percentual este a ser alcançado de forma escalonada em cinco anos.

É importante lembrar que a mesma Emenda tornou impositiva a execução das emendas individuais dos parlamentares ao Orçamento da União. Mais uma derrota.

8 – Como o que é ruim pode piorar, e piorou, em 2016 vivemos a discussão intensa e sofrida da Proposta de Emenda Constitucional 241, a terrível PEC da Morte, que se tornou a Emenda Constitucional 95 (tão festejada por grupos formadores de opinião em nosso país, e tão prejudicial para o SUS) fixando o teto de gastos para políticas sociais para os vinte anos seguintes. DERROTA em maiúsculas.

Durante todo este período e até agora, a União estacionou na aplicação de recursos na saúde, e nos Estados e especialmente nos Municípios a aplicação de recursos cresceu a níveis considerados insanos.

9 – Chegamos em 2022, eleições presidenciais. Esperança de mudança, quem sabe? Proposta de PEC da Transição. 2023: novo arcabouço fiscal. Na prática, retomamos a EC 86, tão criticada no passado por substituir o Saúde + 10. E assistindo falas da área econômica e do planejamento de que cumprir os pisos traria problemas para o alcance das metas fiscais.

10 – E o esperado/inesperado: eis que no PLP 136/2023, projeto que trata de outro assunto, é proposto um artigo que diz que o piso da saúde de 2023 será 15% da Receita Corrente Líquida estimada (?) no orçamento de 2023! Ora, os outros cálculos são todos feitos a partir da RCL arrecadada, como pode? E isto foi aprovado ontem, 04/10/2023! E para piorar: desde quando uma Lei Complementar pode alterar a Constituição? E isto está acontecendo agora no Brasil.

Mais uma derrota, ainda que o processo legislativo não esteja completo. Talvez em maiúsculas novamente. Então precisamos refletir, e muito, sobre esta luta e as sucessivas derrotas.

Por quê? Que explicações temos para tantas derrotas? Prevalece a visão da saúde como mercadoria e não como direito por quem governa e legisla a nível federal? Ou talvez por quem os financia nas campanhas políticas? Será que grupos que foram trabalhadores no passado, lutando por planos de saúde, entendem que isto é o melhor para as brasileiras e brasileiros? Quanta indução está colocada para a aquisição de planos de saúde? Para quem governa e legisla a nível federal, a visão é a do passado, do tempo em que existia a figurado indigente, e, portanto, o SUS é para pobres mesmo, e então pode ser subfinanciado e até mesmo desfinanciado? Quantas explicações mais podemos levantar? O capitalismo? O subdesenvolvimento intelectual de nossa elite? Cabe perguntar também se a derrota não é porque não se reconhece o direito à saúde como política de Estado, acima das estratégias de governabilidade de governos e das estratégias de barganha dos legisladores por mais e mais poder.

Hora de desistir? Jamais. Apesar de todas as mortes e sofrimento, a pandemia da Covid 19 demonstrou de forma inequívoca o que o movimento da Reforma Sanitária diz há décadas: a importância de afirmar todos os dias que a saúde é direito de todos e dever do Estado; a importância da atuação do Estado no setor saúde; a necessidade de financiamento decente para o SUS; o entendimento de que em nosso país os movimentos sociais, Estados, Municípios e Distrito Federal tem que ser considerados nas decisões, inclusive sobre o financiamento federal; e tantas outras afirmações necessárias, que não deveriam ser repetidas aqui.

Precisamos reagir, discutir, ter posicionamentos claros a favor do SUS. A alternativa é esta. Porque a outra possibilidade é retroceder e assumir a volta do indigente. Como vamos reagir?

*O texto foi escrito em 05/10/2023, data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Em 24/10, o PLP se tornou a Lei Complementar 201/2023.

Cristina Sette é Médica sanitarista, 36 anos de formada.
Fonte: Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

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