Correio da Cidadania

Haverá justiça e reparação pelos crimes da pandemia?

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Vestidos de branco, com máscaras e balões vermelhos, artistas fazem homenagem aos mortos pela Covid-19 no Brasil. Foto Leopoldo Silva/Vermelho

O Brasil se aproxima do fim do primeiro ano do governo Lula e, se por um lado há motivos para alívio e esperança, por outro também há espaço para frustrações quanto a um sistema político que parece autoimune. É o que se vê em relação à escandalosa gestão de Bolsonaro na crise de saúde coletiva durante a pandemia de coronavírus.

Foram pelo menos 700 mil mortes, além de outras 440 mil acima da curva demográfica no período pandêmico. Em 2021, finalizou-se a CPI que comprovou fartamente a má fé e irresponsabilidade de Bolsonaro, do ex-ministro da Saúde e general do exército, Eduardo Pazuello, além de uma série de políticos, médicos e apoiadores influentes do governo. Seu relatório final indiciou 71 pessoas. Por ora, ninguém é processado. Mas contra essa nova anistia que o Estado brasileiro parece conceder a seus crimes, há quem se mobilize na sociedade civil.

“De fato, sentimos um processo social de abandono da memória, de esquecimento, como se nada tivesse acontecido. Todos fomos vítimas, as pessoas que morreram, os órfãos, os familiares das vítimas, as pessoas que têm sequelas, sendo que 30% têm sequelas graves. Há as mulheres vítimas de violência doméstica, que aumentou na época, trabalhadores que foram expostos ao vírus… Lutamos para que nada seja esquecido, por isso pedimos ao Senado a cobrança sobre o encaminhamento dos processos jurídicos”, explicou Rosângela Dornelles, da Associação Vida e Justiça, um dos grupos que se formou para lutar por justiça e reparação a este respeito.

De fato, os crimes da pandemia sumiram do noticiário da mídia de massa – que parece muito mais empenhada em garantir sua mesquinha agenda econômica favorável ao rentismo e ao conservadorismo dos quais seus proprietários fazem parte. Quanto ao governo, parece decidido a tocar o país da forma mais silenciosa e pragmática possível. Os gritos de “sem anistia”, que marcaram a posse de Lula, correm risco de ser só uma lembrança desbotada de esperanças não concretizadas de um país um pouco mais justo em relação a seu próprio povo.

No entanto, Rosângela, ao longo da entrevista ao Outra Saúde, reitera a importância da construção da memória e de garantia de certos padrões éticos do Estado brasileiro na vida pública. Para ela, a repetição da história de impunidade dos poderosos e pactos entre os mandatários do país é uma perigosa ilusão de governabilidade.

“É uma questão essencial, sob pena de não se conduzir o direito à saúde, coisa que a democracia vem garantindo, mesmo com defeitos. Se não trabalharmos tal questão e a população brasileira não entender o que significa a democracia no seu dia a dia, na busca dos direitos, seja direito à saúde ou outros direitos sociais em seu todo, não vamos conseguir responsabilizar a irresponsabilidade ou a omissão nas funções públicas como se deve. É um processo bem importante”, ressalta.

Em suma, a impunidade da pandemia pode ajudar a pôr fermento nos golpismos e banditismos políticos que marcam a história do país. Ao vermos Bolsonaro e seu séquito circularem livremente – e até aparecer em posse de presidentes de outros países –, sua advertência parece correta.

Enquanto isso, grupos como a Vida e Justiça tentam convencer o país a respeitar seus mortos e o sofrimento que permanece entre todos aqueles que sentiram de perto o drama da pandemia, do risco de vida, da perda de pessoas próximas, de todo um chão que desapareceu.

“Essa memória precisa ser construída contemplando dimensões muito amplas. Para além da questão de pensar num espaço físico. Tem de ser transversal, passar por várias áreas. Não passa só pela questão da saúde e o registro dos fatos para a ciência. É preciso fortalecer um processo criador de um lugar de referência, a fim de que o sofrimento vivido pelas famílias não fique esquecido. Essa é a ideia do memorial, prestar um tributo, àqueles que morreram, sim, mas também uma memória coletiva de todos nós, sobreviventes”, explicou Rosângela, em referência ao memorial da covid inaugurado no Senado neste ano.

Apesar de tudo, existem motivos para acreditar e seguir na luta por justiça. Os indiciamentos da CPI seguem em pé. Mais que isso, a luta por amparo e reconhecimento obtém resultados, a exemplo da aprovação do projeto de lei que concede pensão a filhos de pessoas que morreram durante a pandemia. Pessoas que sofrem de sequelas físicas da covid e o próprio sistema de saúde que ainda carrega o peso deste acontecimento em seu dia a dia também precisam de proteção.

Como resume Rosângela Dornelles, “é muito importante trabalhar as articulações intersetoriais e interdisciplinares, para fortalecer e garantir os direitos sociais e, neste caso, da população afetada pela covid. Sabemos o quanto a pandemia nos marcou a todos. Como médica vivi muitas coisas, foi muita dor, passamos por momentos de não saber quem ia viver ou não, lidamos com a falta de estrutura necessária… Isso tudo marcou muito, dá uma dor no peito, é bem dolorido lembrar, não é possível esquecer… Não podemos deixar que caia no esquecimento”.

Leia a entrevista completa abaixo.

Como se formou a Associação Vida e Justiça? Como tem sido sua trajetória?

A Vida e Justiça surge a partir de tudo que se viveu na pandemia. Nós fizemos uma assembleia gigante, com mais de mil pessoas, em 30 de abril de 2021, registramos a associação em agosto e ela se compôs por uma coordenação colegiada, com seccionais nos estados. A ideia, desde o início, foi formar uma grande rede de apoio aos sobreviventes da covid e familiares de pessoas que morreram. Um espaço de articulação de políticas públicas, para tratar de reparação e responsabilização de gestores públicos e privados, já que na época não tínhamos resposta nenhuma do governo.

Usamos o conceito de sindemia para elaborar nossas ideias, uma vez que as causas envolvidas na pandemia do coronavírus extrapolam a questão do vírus e do hospedeiro, pois o adoecimento e a morte perpassam vários processos, desde a saúde física e mental, até emprego, renda, a vida em comunidade e tudo mais.

Enfim, buscamos construir uma entidade que se preocupou muito com a amplitude das causas e consequências da pandemia, para dialogar com as instituições científicas, o parlamento, gestores públicos e privados e organizar as pessoas, cobrando e denunciando a ausência ou insuficiências de respostas por parte do governo Bolsonaro.

Passaram dois anos depois do encaminhamento do relatório final da CPI da Pandemia, que indiciou 71 pessoas. Mas até agora ninguém foi processado. Como vocês observam essa questão?

É exatamente esse processo que não concretiza responsabilização e reparação que mantém nossa luta necessária, para além da obrigação ética de construir memória pública e coletiva. Tentamos criar um elo com as outras entidades para nos fortalecer através de uma rede de apoio às vítimas, como se viu neste ano a partir da inauguração do Memorial do Senado, marcando o 15 de Março como o Dia Nacional em Homenagem às Vítimas da Covid-19. É muito preocupante a falta de responsabilização dos principais atores do genocídio que aconteceu, com negligência da própria gestão federal, descaso em relação à questão da vacinação, do acesso a testes, da prevenção.

Por isso, através da Rede por Responsabilização e Reparação, tentamos dar voz às vítimas, inclusive dentro dos espaços institucionais, como o próprio Senado, que realizou a CPI e precisa cobrar das demais autoridades o desfecho dos apontamentos. Temos trabalhado dentro desses espaços e criado uma rede mais ampliada para dar mais voz a essas questões que ainda não foram encaminhadas.

Como você disse, o senado inaugurou um memorial às vítimas da covid. Além disso, Lula e Nísia já falaram em responsabilização dos principais responsáveis pelos crimes cometidos contra a saúde pública durante a pandemia. O que faltaria para avançar nessa direção?

Essa memória precisa ser construída contemplando dimensões muito amplas. Para além da questão de pensar num espaço físico. Tem de ser transversal, passar por várias áreas. Não passa só pela questão da saúde e o registro dos fatos para a ciência. É preciso fortalecer um processo criador de um lugar de referência, a fim de que o sofrimento vivido pelas famílias não fique esquecido. Essa é a ideia do memorial, prestar um tributo, àqueles que morreram sim, mas também uma memória coletiva de todos nós, sobreviventes.

Também existem as sequelas, que podemos ver dentro do próprio sistema de saúde, nas filas e no contingente ampliado de pessoas à espera de atendimento, pois muita gente tem doenças advindas do vírus e decorrentes do sofrimento mental imposto pela situação de pandemia, suas perdas, o isolamento, o negacionismo etc. Há mais pessoas tendo AVC, relatando problemas respiratórios, motores… As pessoas se queixam de questões mentais, existe um sofrimento diário também dos trabalhadores da saúde e o SUS precisa dar conta de tudo isso.

Não podemos ignorar tudo que passamos, e por isso estamos organizando um seminário e outros eventos para o ano que vem. Não podemos deixar cair no esquecimento.

Vocês têm medo de serem abandonados pela sociedade civil, medo de ver que no final das contas tudo que aconteceu pode terminar naturalizado?

Sim, temos uma avaliação de que neste pós-pandemia há uma tendência de naturalizar tudo que houve e não se falar mais. Há resistência a coisas como vacinação, mas seguimos fazendo pressão no congresso, nas câmaras estaduais… Aqui no RS realizamos uma Frente Parlamentar que escutou as pessoas e produziu relatórios por regiões do estado. Precisamos manter a prioridade a essas pessoas que ficaram doentes e carregam sequelas.

De fato, sentimos um processo social de abandono da memória, de esquecimento, como se nada tivesse acontecido. Todos fomos vítimas, as pessoas que morreram, os órfãos, os familiares das vítimas, as pessoas que têm sequelas, sendo que 30% têm sequelas graves. Há as mulheres vítimas de violência doméstica, que aumentou na época, trabalhadores que foram expostos ao vírus… Lutamos para que nada seja esquecido, por isso pedimos ao Senado a cobrança sobre o encaminhamento dos processos jurídicos.

Também aguardamos a nomeação do Procurador Geral da República, com quem tentaremos ter agenda, apresentar nossas demandas e de quem esperamos acolhida. Precisamos da responsabilização. A parte do Ministério Público foi importante, mas ainda precisamos de muito mais, e este poder judiciário tem condições de atuar para responsabilizar os gestores principais da crise sanitária, principalmente os atos de omissões que custaram milhares de vidas de brasileiros e brasileiras. Em especial cobrar do maior responsável da Nação, o ex-presidente.

A sociedade não deveria entender que deixar este assunto de lado é uma ameaça à própria manutenção da democracia no país? Vocês diriam que fechar os olhos para isso é um erro muito grave no sentido da preservação do próprio estado de direito?

Sim, é uma luta democrática. Garantir responsabilização de crimes tão evidentes cometidos na pandemia, quando perdemos mais de 700 mil pessoas, é garantir o funcionamento adequado das instituições assegurando o estado de direito. É importante as pessoas entenderem. Isso faz parte da própria construção do direito à saúde e à vida, em especial num país tão desigual. Devemos buscar pela via democrática uma sociedade que discuta seus principais problemas e promova participação.

É uma questão essencial, sob pena de não se conduzir o direito à saúde, coisa que a democracia vem garantindo, mesmo com defeitos. Se não trabalharmos tal questão e a população brasileira não entender o que significa a democracia no seu dia a dia, na busca dos direitos, seja direito à saúde ou outros direitos sociais em seu todo, não vamos conseguir responsabilizar a violação de direitos, a irresponsabilidade ou a omissão nas funções públicas como se deve. É um processo bem importante.

A Vida e Justiça trabalha em grupos específicos e casos como o da Prevent Senior nos mostram como é importante também atuar com agilidade. Temos trabalhado sobre o tempo da garantia desse direito e, diante da lentidão do poder judiciário, tudo poderá ficar como se nada tivesse acontecido. E precisamos evitar que os próprios movimentos sociais se desmobilizem, pois para as pessoas que têm um cotidiano normal essas coisas demoram muito. É primordial, portanto, fortalecer as organizações e movimentos da sociedade civil para assegurar os nossos direitos sociais.

Vocês têm ações na justiça, quais os próximos passos desta e outras associações de vítimas e familiares de vítimas da pandemia?

Precisamos, teoricamente, sentar e organizar uma diversidade de ações, pois às vezes o Estado se coloca como ausente. Mas os espaços vão se abrindo, tentamos ampliar cada vez mais esse processo, o próprio presidente Lula tem falado de reparação que o Estado tem de oferecer às pessoas vítimas de catástrofes, como no nosso caso com a pandemia. Temos acompanhado vários projetos, encaminhamos um documento para a CPI na época da pandemia e agora tentamos retomar esses encaminhamentos. As reparações judiciais também são um assunto, com todas as suas fragilidades, mesmo diante de uma CPI que deixou um relatório bem completo. Temos projetos de lei, a exemplo dos direitos dos profissionais da saúde vítimas da pandemia, o reconhecimento da covid como patologia pelo INSS e doença que pode ser relacionada ao trabalho… São várias frentes de luta.

Tivemos uma vitória recente com a aprovação pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado do PL 2291/21, de autoria do senador Humberto Costa (PT-PE), que prevê o pagamento de um auxílio de R$ 1,5 mil para crianças e adolescentes que perderam os pais em decorrência da pandemia.

É muito importante trabalhar principalmente as articulações intersetoriais e interdisciplinares, para fortalecer e garantir os direitos sociais e, neste caso, da população afetada pela covid. Sabemos o quanto a pandemia nos marcou a todos. Como médica vivi muitas coisas, foi muita dor, passamos por momentos de não saber quem ia viver ou não, lidamos com a falta de estrutura necessária… Isso tudo marcou muito, dá uma dor no peito, é bem dolorido lembrar, não é possível esquecer… Não podemos deixar que caia no esquecimento.

Gabriel Brito é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter do site Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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