Participação privada no SUS chega a 85% em alguns serviços
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- Lenir Santos
- 16/04/2024
São 35 anos do reconhecimento da saúde como direito de cidadania. Mesmo tardia a sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro (1988), é senso comum tratar-se de uma política essencial de garantia da dignidade e qualidade de vida das pessoas, que se consolidou no país como absolutamente indispensável.
Nestas décadas, o mundo passou por grandes transformações, com salto tecnológico que mudou a cultura, os costumes, a comunicação, o conhecimento, exigindo permanente olhar sobre o SUS em seus mais diversos campos, como é o caso da saúde digital, da proteção de dados, da atuação do setor econômico na saúde e a participação do setor privado, uma vez que esses serviços são de natureza pública, não importando a sua titularidade. É preciso qualificar permanentemente o conceito de relevância pública das ações e serviços de saúde para mantê-los todos sob resguardo do Poder Público.
Sendo a saúde um direito fundamental que pode ser explorado pelo mercado, é preciso que regras públicas evitem as tensões próprias de direitos contrapostos, inibindo a contaminação do interesse privado sobre o interesse público. Dalmo Dallari (1) já afirmava ser a saúde um instrumento de negociação política, pois tem representação econômica, podendo ser tratada como mercadoria, o que exige do Poder Público, conforme determina a Constituição, artigo 197, total controle sobre esses serviços para não ficarem sujeitos às regras do mercado como se fossem produtos e serviços de consumo, livremente comercializados. O reconhecimento de sua relevância exige certos cuidados, como a vedação constitucional do capital estrangeiro na saúde; a comercialização do sangue e partes do corpo humano, o tratamento indistinto dos serviços públicos e privados, todos submetidos à regulamentação, fiscalização e controle públicos.
Não obstante, tem sido crescente o poder de influência do setor privado na saúde nos mais diversos campos, como medicamentos, tecnologias, exames diagnósticos, formação de pessoal, tributação, dentre outros. Os conglomerados sanitários privados certamente têm poder de influência nas políticas públicas de saúde e, excetuando os regramentos de cunho técnico-sanitário, há pouca regulamentação nesse campo. Como exemplo, pode-se citar o capital estrangeiro, aberto ao arrepio da Constituição que o veda como regra (2), e que hoje atua totalmente desregulado no mercado brasileiro sanitário. Nessa esteira há várias outras tentativas de desregulamentar o mercado da saúde, como é a situação do sangue, com Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n° 10, de 2021, que pretende abrir ao mercado o uso do plasma humano para a fabricação de medicamentos, até então sob domínio público.
Tem sido comum alegarem que o apetite do mercado na saúde poderá ser salvaguardado pelo aperfeiçoamento dos contratos, convênios, ajustes público-privados, bem como com melhor fiscalização. Mas a questão do privado na saúde é mais profunda, indo além dos ajustes público-privados firmados no SUS, seu aperfeiçoamento, acompanhamento, adentrando o modelo assistencial da saúde, o seu financiamento insuficiente e a formulação de suas políticas, além de outras como a formação dos preços privados e a incorporação de tecnologias; a indução a uma saúde de consumo, a formação profissional, dentre muitos outros aspectos.
Isso impacta o modelo assistencial constitucional, fundado na prevenção e promoção da saúde, na proteção coletiva, na educação da sociedade para a racionalidade no uso dos aparatos sanitários, na prevenção de riscos, na universalidade do acesso.
Quando um direito é a um só tempo, um direito fundamental e um bem que pode ser explorado no mercado, o papel do Estado, com a participação da sociedade, é evitar armadilhas que podem colocar em risco a original concepção do SUS, o seu núcleo essencial, a sua fundamentalidade que é o direito à vida.
Em 1988 não havia um forte mercado de plano de saúde, considerado então um seguro-saúde sob a forma de medicina pré-paga, regulada pela Susep (3). Tanto que a Lei n° 8.080, de 1990, ao regular o setor privado na saúde, o fez de forma muito genérica sem atentar para esse mercado futuro. Não obstante olhou para os serviços de saúde assistenciais dos servidores públicos em geral, até então considerados dentre os benefícios previdenciários, determinando fossem incorporados pelo SUS ou extintos.
No mundo real, muitos desses serviços não foram extintos e outros se transformaram, como ocorreu no Poder Executivo federal, que criou um modelo de serviço de autogestão (Plano de Saúde para Servidores Públicos — Geap (4) ), sem falar nos planos de saúde dos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, além da reivindicação dos sindicatos, de modo geral, por plano de saúde para os seus trabalhadores, como um benefício da relação de trabalho, na esteira do anterior modelo previdenciário, que garantia serviços de assistência à saúde ao trabalhador e seus beneficiários.
O SUS público, de acesso universal, que deveria pôr fim a esses serviços públicos segmentados, conforme determinação do artigo 45, § 1° da Lei n° 8.080, de 1990, passou a não ser usado por parte do servidor público e dos trabalhadores privados e por boa parte da classe média que passou a contratar planos de saúde, abatendo o seu custo do imposto de renda devido à Receita Federal, anualmente.
Isso tudo consolidou um SUS público, fundamentalmente utilizado (serviços assistenciais) pela massa da população que não pode ter um plano de saúde (financiado pelo Poder Público ou como benefício trabalhista ou pago diretamente pelo seu usuário).
Na verdade, o crescimento dos serviços privados de saúde tem sido defendido por organismos internacionais na linha da cobertura universal de saúde (5), contraposto ao conceito de sistemas universais de saúde que se configura como dever estatal de acesso universal e financiamento público e não por modelos alternativos de planos de saúde no mercado como garantia de acesso. A cobertura universal de saúde propugna pela existência de serviços no mercado que possam garantir o acesso, enquanto o segundo impõe ao Estado o dever dessa garantia com serviços e financiamento públicos.
No nosso país o acesso universal e igualitário tem sido acompanhado do crescente modelo de parcerias público-privadas sob as mais variadas formas de fomento público e do regime da complementaridade, que implica na compra de serviços privados pelo SUS para suprir insuficiência pública. E o mercado privado mantém as mais diversas formas de serviços, alguns sem regulamentação pública, como ocorrem com as clínicas populares de saúde com atuação inclusive na telemedicina (6).
As parcerias público-privadas no SUS, originadas na participação complementar do setor privado na saúde voltada a suprir insuficiências públicas, mas que a partir do Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado (7) de 1995, que cunhou a expressão serviço público não estatal, passou a defender uma administração pública mais gerencial e menos burocrática na garantia de serviços de qualidade, a qual poderia contar com a prestação de serviços públicos pelo setor privado mediante fomento público, de forma contratual, e sob o controle público. Contudo, a saúde, setor onde mais existem as organizações sociais, criadas a partir deste plano (8) e na esteira da reforma administrativa, não foram chamadas à mesa pública para esse debate em suas três esferas de governo, tendo na ocasião sido criadas as organizações sociais federais.
É preciso lembrar que na realidade não houve lei a regular a complementaridade no SUS e o fomento público, este objeto das organizações sociais que também não contaram com diretrizes nacionais a orientar as leis estaduais e municipais. A lei federal das organizações sociais serviu de parâmetros para algumas delas.
Lembramos que a organização social, cujo modelo foi objeto da ADI n° 1.923 (9), 1998, julgada em 2015 como constitucional, não mereceu regra de cunho nacional, de diretrizes gerais, sendo livre a cada ente da federação a sua disciplina. Passadas três décadas, em dezembro de 2023, a Folha de S. Paulo (10) noticiou que os hospitais Einstein e Sírio-Libanês administram mais leitos públicos que privados.
A participação privada no SUS tem sido crescente e chega hoje a 85% em alguns serviços, especialmente os de alto custo, e o fomento às entidades privadas qualificadas como organizações sociais é tão crescente que a maior organização social do país em 2021 faturou mais de R$ 9 bilhões (11). A reportagem da Folha confirma o quão crescente é a participação privada na saúde. É necessário aprofundar essa discussão do privado na saúde considerando o crescente mercado sanitário, especialmente em relação ao capital estrangeiro desregulado na saúde e o seu poder de influência no modelo assistencial.
A questão do privado no campo da saúde é um tema que precisa de mais debates, análises, estudos, regulamentação, com consonante melhoria do financiamento público, mais investimentos nos hospitais universitários para impulsionar a necessária inovação do setor, a fim de desfazer a possível armadilha do SUS pobre para os pobres.
Referência bibliográfica
Dallari, Dalmo. 2011, Congresso Direito e Saúde, MPE/OAB, Ceará.
Superintendência do Seguro Privado, Decreto-lei n° 73, de 1966.
Grupo Executivo de Assistência Patronal – GEAP Autogestão em Saúde. https://www.geap.org.br/institucional/
Grupo de estudos e pesquisas coordenado pela professora Doutora Ligia Bahia. Faculdade de Medicina da UFRJ.
https://outraspalavras.net/outrasaude/oms-o-engodo-da-cobertura-universal-de-saude/
Consultar vários desses empreendimentos, como: https://saudevianet.com.br/blog/clinicas-populares-sucesso-em-saude/#Clinicas_populares_por_que_estudar_este_mercado
Notas:
1) 2011, Congresso Direito e Saúde, MPE/OAB, Ceará.
2) ADI n° 5.435, de 2015. Em julgamento no STF.
3) Superintendência do Seguro Privado, Decreto-lei n° 73, de 1966.
4) Grupo Executivo de Assistência Patronal – GEAP Autogestão em Saúde. https://www.geap.org.br/institucional/
5) “Um dos principais problemas associados à implementação da UHC está relacionado ao financiamento. Idealmente, o caminho para alcançar o acesso universal deveria exigir serviços públicos robustos capazes de fornecer o cuidado, financiados por recursos públicos. Infelizmente, a UHC tem prestado pouca atenção a esse aspecto crítico. Ao contrário, tende a favorecer a introdução de modelos de seguro de saúde, que até podem receber financiamento dos orçamentos públicos, mas acabam beneficiando principalmente empresas e provedores de cuidado privados”. Acessar: https://outraspalavras.net/outrasaude/oms-o-engodo-da-cobertura-universal-de-saude/
6) Para conhecer mais pode-se consultar vários desses empreendimentos, como https://saudevianet.com.br/blog/clinicas-populares-sucesso-em-saude/#Clinicas_populares_por_que_estudar_este_mercado
7) Para saber mais, consultar: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/plano-diretor-da-reforma-do-aparelho-do-estado-
8) A organização social federal foi criada em 1988, pela Lei Federal n° 9.637 .
9) https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10006961
11) Grupo de estudos e pesquisas coordenado pela professora doutora Ligia Bahia, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Lenir Santos é advogada, presidente do IDISA, Advogada, especialista em direito sanitário, doutora em saúde pública, professora colaboradora da Unicamp, Departamento de Saúde Coletiva.
Publicado originalmente no site Consultor Jurídico.
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