“Independentemente do regime de recuperação fiscal, saúde e educação são investimentos”
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- Gabriel Brito, da Redação
- 30/04/2024
Fernando Frazão / Agência Brasil
Após um forte processo desfinanciamento e estigmatização, as universidades brasileiras voltaram a ter esperanças em um futuro melhor, como parte fundamental de um país mais justo e solidário, ideia representada na vitória de Lula. No entanto, no segundo ano deste governo os desafios seguem evidentes, uma vez que a racionalidade neoliberal e suas tentativas de limitar o que chama de “gasto” com educação e saúde continuam na ordem do dia. Nesta entrevista, Gulnar Azevedo, eleita reitora da UERJ, analisa os desafios da educação superior, agudizados no caso de uma universidade de um estado que vive um regime de recuperação fiscal que limita mais ainda seu financiamento.
Médica sanitarista formada na própria UERJ, Gulnar foi eleita em processo eleitoral que contou com bastante participação de toda a comunidade acadêmica. Terá pela frente o desafio de manter o caráter público e inclusivo da universidade em um contexto de muita tensão e disputa de setores conservadores e dos que defendem a ampliação do ensino privado. Ciente de que a condição do estado impõe ainda mais dificuldades na garantia das funções essenciais da universidade, Gulnar explica que a nova gestão terá de fazer um exame minucioso do que é mais urgente para a reprodução da vida acadêmica. Mas sem perder de vista o caráter estratégico de uma instituição de ensino superior de tamanha envergadura.
“Estamos vendo quais atividades junto ao governo federal são passíveis de conseguir algum apoio, como por exemplo para as nossas unidades de saúde, para a área tecnológica e outras. Na área da saúde, por exemplo, a UERJ tem um grande hospital universitário que funciona como nível terciário, isto é, da atenção da chamada ‘alta complexidade’. Tem uma policlínica que atende o nível secundário e ambas funcionam dentro do SUS. Portanto, queremos viabilizar apoio e ter mais incentivo para que estes serviços funcionem integrados à rede de referência do SUS e ao mesmo tempo atuem como campo de formação de nossos estudantes”, afirmou.
De toda forma, o Brasil se vê de uma luta pelo orçamento público que opõe grupos sociais e econômicos bastante visíveis. Dessa forma, manter e fortalecer as articulações e militâncias, a exemplo do que se viu no próprio processo de vitória de sua chapa na eleição da UERJ, são essenciais, como já ocorrido na recém-realizada Conferência Nacional de Educação. Em Brasília, esse evento oficial afirmou toda uma agenda contrária às políticas de desmonte e até sabotagem propostas pelas distintas direitas no país, tanto a liberal como aquela mais abertamente fascista.
“Devemos estar muito articulados, pois é muito importante manter vivos os debates em relação ao papel das universidades, assim como é fundamental ter projeto de país. Vejo com bastante esperança e perspectiva que esse tecido de fato tenha impacto a médio e longo prazo, que seja sustentável no sentido de garantir não só nossa autonomia universitária, mas também de discutir a necessidade que as universidades têm de contribuir com a formulação de políticas públicas”, sintetizou.
Gulnar também recupera um dos motes das campanhas de Lula, que ao defender a recuperação de investimentos públicos em políticas sociais enfatizou que temas como saúde e educação não são gastos, mas investimentos. Ainda que pareça óbvio, as pressões políticas e ideológicas dos defensores do Estado mínimo, mesmo depois de toda a destruição social dos anos Temer e Bolsonaro, seguem fortes.
“A mensagem que precisamos passar é de que, independentemente do regime de recuperação fiscal, temos de mostrar que saúde e educação, como o próprio presidente Lula falou, são investimentos. Nós não somos gastos, somos investimento. É o investimento feito nessa área que mais adiante vai propiciar mais recurso. E temos de mostrar que a atual conta de subfinanciamento é a conta que não fecha. Para isso precisamos convencer não só o Executivo como os parlamentares, daí a necessidade de as articulações se manterem firmes”.
Confira a entrevista completa com Gulnar Azevedo.
Correio da Cidadania: Como foi o processo eleitoral que culminou na sua escolha para a reitoria da UERJ? O que se debate neste momento?
Gulnar Azevedo: É um movimento que vínhamos construindo há um ano, até chegar às eleições de novembro. A Uerj tem quatro centros setoriais, que congregam as unidades acadêmicas e esse movimento surgiu a partir da identificação dos diretores destes centros setoriais, que são eleitos pelas unidades acadêmicas, docentes, servidores e estudantes, de que a Uerj estava se afastando de suas finalidades. Estava deixando de definir suas prioridades a partir de um processo mais participativo, mais democrático, mais aberto. A universidade ameaçava entrar num caminho que não era o melhor para uma universidade pública e popular, como gostaríamos.
A partir daí, os diretores destes centros me convidaram para participar do processo e me identificaram como uma pessoa que pudesse liderar o processo. Assim, visitamos todas as unidades acadêmicas, todos os setores administrativos. Fomos em todos os campi, montamos o diagnóstico da universidade. Percebemos muita insatisfação, muitos problemas e algumas soluções e fomos montando a nossa plataforma.
Com isso, ganhamos um grande apoio e o movimento foi crescendo, chegamos na eleição com um tecido sólido que concorreu com a chapa da situação.
Durante os meses de campanha começaram a aparecer as denúncias que estão sendo investigados pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas, algumas condições sem transparência e que não faziam parte de nossas finalidades de ensino, pesquisa e extensão.
Nos debates e no momento da eleição ficou muito clara a diferença entre as duas chapas. Eram três chapas, mas a disputa ficou entre duas e a diferença na adesão da comunidade acadêmica (estudantes, técnicos e docentes) ficou evidente, já no primeiro turno. No segundo turno, a diferença foi mais de 10 pontos percentuais.
Em suma, nossas propostas foram aprovadas, ao passo que a reitoria anterior não foi reconhecida e validada pela comunidade universitária. E nós tivemos, assim, uma vitória bem expressiva, principalmente entre estudantes e docentes, onde tivemos o dobro de votos.
Correio da Cidadania: Que universidade vocês encontraram, o que se viveu nos últimos anos? Quais os principais desafios para a universidade pública nesse momento?
Gulnar Azevedo: Encontramos uma universidade com processos burocratizados, sem transparência e com ações que não levaram em conta a opinião dos diversos setores. Sem dúvida, isso foi um problema sério. E com situações que, de fato, não são as que gostaríamos de ver numa universidade. A Uerj perdeu a perspectiva de levar um processo democrático, participativo, com valorização do trabalho de todos e com decisões que não foram tomadas respeitando os nossos fóruns superiores.
Correio da Cidadania: Isso influía no financiamento da universidade e sua capacidade de sobrevivência?
Gulnar Azevedo: O estado do Rio de Janeiro se encontra mais uma vez numa grande crise econômica, inserido no regime de recuperação fiscal. Isso significa que nós temos que olhar, de fato, o que pode ser racionalizado em termos de recursos. Mas a universidade é muito grande, mais de 30 mil alunos distribuídos em vários campi. Há uma grande diversidade entre os estudantes e precisamos assegurar uma política de assistência estudantil que garanta o ingresso, mas também a permanência para os cotistas e aqueles que vivem em vulnerabilidade social, nosso orçamento está aquém das nossas necessidades.
Em função disso, temos nos esforçado para mostrar para o estado do Rio de Janeiro a importância do investimento na universidade, o quanto que contribuímos com o crescimento do estado, com o desenvolvimento. E tudo isso não é simples. Quando comparamos nosso orçamento com o da USP ou Unicamp, universidades também estaduais, vemos que estamos muito atrás.
Tem sido uma luta constante manter os auxílios, todas as bolsas, mas é uma tarefa na qual teremos de prosseguir. Temos de entender que fazemos muito com o pouco que ganhamos.
Correio da Cidadania: Falta participação das comunidades escolares e universitárias na elaboração da política pública?
Gulnar Azevedo: Sim, e por um lado também falta participação dentro dessas instituições, com escuta de movimentos e comunidades, para dar abertura para que suas reivindicações tenham também participação na concepção do que fazemos, dos profissionais que formamos.
Correio da Cidadania: Como esta dinâmica de desfinanciamento dialoga com o governo federal, que realizou uma recomposição orçamentária em 2023, ainda que dentro dos marcos da austeridade fiscal, e a discussão de financiamento adequado da Educação e do ensino superior?
Gulnar Azevedo: Apesar de sermos financiados pelo governo estadual, temos buscado canais junto ao governo federal. Para a Uerj é importante mostrar que nós valorizamos o que o governo precisa implementar, como o apoio ao ensino público, o fortalecimento do ensino superior, o apoio para uma política assistencial estudantil de fato ampla.
Estamos vendo quais atividades junto ao governo federal são passíveis de conseguir algum apoio, como por exemplo para as nossas unidades de saúde, para a área tecnológica e outras. Na área da saúde, por exemplo, a UERJ tem um grande hospital universitário que funciona como nível terciário, isto é, da atenção da chamada “alta complexidade”. Tem uma policlínica que atende o nível secundário e ambas funcionam dentro do SUS. Portanto, queremos viabilizar apoio e ter mais incentivo para que estes serviços funcionem integrados à rede de referência do SUS e ao mesmo tempo atuem como campo de formação de nossos estudantes.
Há várias outras questões, devemos nos organizar para assegurar agilidade para captação e prestação de contas. Precisamos estar preparados para receber recursos de agência de fomento e de empresas públicas e privadas.
Tudo isso significa um desafio muito grande. Também precisamos recuperar e garantir regras e regulações claras, com transparência em todas as etapas do processo que envolvem projetos descentralizados de órgãos do governo.
Correio da Cidadania: Recentemente, tivemos a realização da Conferência Nacional da Educação. Quais foram os principais debates e, principalmente, encaminhamentos deste evento?
Gulnar Azevedo: É um movimento muito importante, mostrou o peso que a educação tem no Brasil. É muito bom ver as pessoas da educação básica, fundamental, até educação superior, discutirem os futuros e os problemas da área. Educação e saúde são direitos fundamentais na nossa Constituição, tem que ser acesso universal, e nós temos um papel nisso. A universidade tem um papel, não só de formar bons profissionais para trabalhar no campo da educação como também mostrar o quanto um país precisa de uma universidade para, basicamente, garantir seu futuro.
Temos na Uerj um grupo forte, bastante comprometido com a educação, temos duas faculdades de formação de professores na Baixada Fluminense, uma em Duque de Caxias e outra em São Gonçalo. São cursos muito bons, são faculdades que têm uma ligação muito grande com as escolas públicas da área, com o território. Para nós, é um incentivo entender que temos esse papel de fazer a universidade atuar junto a todas as esferas e níveis da educação.
Portanto, a conferência foi essencial e é importantíssimo que os encaminhamentos tirados de lá sejam ouvidos e considerados pelo governo.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, como você compreende todas as batalhas políticas e ideológicas da Educação, tanto contra uma direita empresarial que emplacou a reforma do ensino médio no governo Temer, como pela direita mais abertamente fascista e seus projetos de perseguição ideológica escancarada nas escolas?
Gulnar Azevedo: De um lado, vemos uma visão extremamente ligada ao campo empresarial, que inclusive se refletiu na reforma do ensino médio dos anos do governo Temer e que até hoje se reflete. Há muita pressão por parte do setor privado da educação no Congresso, ao mesmo tempo em que cresce um pensamento de direita mais radical que defende uma ideia de educação desconectada das formulações pedagógicas.
Devemos estar muito articulados, pois é muito importante manter vivos os debates em relação ao papel das universidades, assim como é fundamental ter projeto de país. Também é importante trazer essa articulação para o interior de nossas universidades, nos conselhos superiores. Aqui no Rio de Janeiro nós temos um papel importante, não só para o ensino superior como também o ensino técnico e básico fundamental.
Vejo com bastante esperança e perspectiva que esse tecido de fato tenha impacto a médio e longo prazo, que seja sustentável no sentido de garantir não só nossa autonomia universitária, mas também de discutir a necessidade que as universidades têm de contribuir com a formulação de políticas públicas.
Correio da Cidadania: Como você observa o próprio orçamento federal para a educação de modo geral? Acha que os pactos macroeconômicos vão cobrar uma conta e limitar os investimentos?
Gulnar Azevedo: Aqui no Rio vivemos, como disse, o regime de recuperação fiscal. Somos ligados à Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado, e dependemos desse recurso que todo mês vem para a universidade. O recurso é insuficiente para dar conta de todas as nossas necessidades concretas, como garantir a alimentação em todos os campi, melhorar a nossa infraestrutura e a manutenção de nossos equipamentos, tudo é muito pesado. A Uerj tem um peso grande em garantir tudo isso.
A mensagem que precisamos passar é de que, independentemente do regime de recuperação fiscal, temos de mostrar que saúde e educação, como o próprio presidente Lula falou, são investimentos. Nós não somos gastos, somos investimento. É o investimento feito nessa área que mais adiante vai propiciar mais recurso. E temos de mostrar que a atual conta de subfinanciamento é a conta que não fecha. Para isso precisamos convencer não só o Executivo como os parlamentares, daí a necessidade de as articulações se manterem firmes.
O Brasil vive uma situação difícil, em parte imposta pelo Congresso nas definições e no apoio a políticas públicas. Assim, é fundamental manter fortes nossos movimentos, nossas entidades científicas, e seguir na luta. É uma batalha muito grande também na área da saúde e vejo que a educação está dando um passo importante, com um ativismo associado ao que pode ser feito cientificamente de nossas entidades.
A SBPC e demais sociedades científicas têm cumprido um papel muito importante em relação a garantir recursos para ciência, tecnologia e inovação, ajudar o Brasil a superar suas limitações neste campo. Em linhas gerais, vivemos situações concretas difíceis, no sentido de garantir nossos recursos, manutenção de nossas atividades e investimento em áreas necessárias. Mas também vivemos um movimento de muita reorganização de todo o tecido social. E essa reorganização, com o apoio das nossas associações e da sociedade civil organizada, pode ser um avanço no sentido de fazer o governo ter uma compreensão maior das nossas necessidades.
A Uerj está no caminho de garantir seu espaço e ser valorizada para atingir a autonomia financeira, administrativa e acadêmica. Precisamos fortalecer nossos conselhos superiores, que são instâncias máximas de decisão da universidade, canais diretos com as entidades representativas de classe, tanto docentes como de técnicos e estudantes. Precisamos valorizar as nossas representações, por isso temos feito um trabalho de formação na universidade associado ao desenvolvimento do estado do Rio de Janeiro. E temos investido em estudos que nos permitem definir o que é estratégico em termos de desenvolvimento do estado e fortalecimento da educação.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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