Correio da Cidadania

Não é acidente, é a normalização das mortes!

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Na quinta, 20 de junho, às 12h30, deveria ter acontecido o júri popular que julgaria o atropelador da ciclista, socióloga, doutoranda em planejamento urbano, acadêmica e amiga querida Marina Kohler Harkot. Foi adiado para 23 de janeiro de 2025.

Marina Harkot foi morta em 8 de novembro de 2020 quando voltava para casa pedalando. O motorista que a atropelou entrou por trás da sua bicicleta, seu corpo voou por cima do carro. Ele estava em alta velocidade, tinha bebido, talvez estivesse mandando mensagens no celular, e não parou, fugiu e não prestou socorro. Ela morreu no local. Essa descrição geralmente associa o crime ao atropelador, que tinha consciência de que poderia matar alguém ao sair naquela noite dirigindo nestas condições. Mas a história se repete e temos afirmado: não foi acidente! Não é acidente, é um assassinato, que pode ser evitado.

Os dados de mortes no trânsito são conhecidos: hoje no Brasil, mais de 30 mil vidas são perdidas por ano, é a 6ª maior causa de morte (!); 210 mil pessoas feridas por ano, o equivalente a uma cidade média do interior do estado de SP por ano (MobiliDADOS, 2024); três pessoas morrem por hora no trânsito.

Guilherme Moraes em seu mestrado recém defendido na USP mostra que, na cidade de São Paulo, de janeiro a março do corrente ano de 2024 mais de 316 perderam a vida nas vias (dados do Infosiga administrados pelo Detran-SP), cerca de 100 pessoas por mês, mais de 3 por dia. O equivalente a um auditório cheio por mês morre no trânsito.

Mas os números não mobilizam tanto quanto a morte de um ente querido, uma pessoa importante, referência para nós, um jovem cujo futuro é encerrado antes da hora.

Queremos deslocar um pouco este debate. Ele não é apenas sobre Marina, deve ser sobre o papel dos gestores públicos frente aos desafios da mobilidade e do transporte urbano. O Estado e a sociedade têm o dever de evitar estas mortes, o que não tem sido feito.

Na contramão do esforço por mostrar e sensibilizar sobre estas mortes – há um importante esforço por coletar e deixar transparente estes dados, e campanhas públicas como “maio amarelo” – frequentemente o poder público evita publicizar os dados de incidentes e mortes, de várias maneiras. Muda a forma e método de coleta do dado, interrompe a divulgação do dado, a transparência, dificulta o monitoramento da evolução das políticas. Parece afastar-se do reconhecimento de sua responsabilidade frente a estes corpos mortos, que são mais que números. Não podemos normalizar as mortes. São alguns corpos as vítimas, o que reflete a desigualdade.

Entre 2001 e 2021, cerca de 775 mil pessoas morreram no trânsito no país, quase 25% eram motociclistas, 21% pedestres, 20% estavam em automóveis. As motos foram uma opção para a população jovem e periférica que enfrenta longos deslocamentos diários e, como grande exemplo da precarização do trabalho, são usadas para o trabalho em aplicativos de entregas. Grande parte dos mortos neste período foram homens (82%), negros (49% contra 46% de brancos) e jovens (entre 20 e 29 anos), e este grupo cresce (MobiDados, 2023).

O poder público e a sociedade como um todo também têm ignorado o fato de que o controle de velocidade máxima pode salvar vidas. O mestrado de Guilherme Moraes já citado identificou que o aumento das velocidades máximas nas marginais paulistanas em 2017 aumentou os acidentes e as mortes, na contramão da tendência de queda que vinha sendo observada desde 2015, quando as velocidades tinham sido rebaixadas (ver Gráfico 1). Ainda, constatou que após o aumento das velocidades os incidentes de trânsito nas marginais aumentaram e passaram a contar com mais veículos envolvidos. Estes indicadores apontam para a relação direta entre a velocidade dos veículos e a quantidade de corpos jogados no asfalto.

Gráfico 1. Série histórica incidentes e veículos envolvidos, pessoas feridas e mortas nas Avenidas Marginais em São Paulo 2015-2019

Fonte: Dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) – Programa Vidas Seguras e GST/DBD. Elaboração: Guilherme Moraes da Silva, 2024, p. 132.

Gráfico 2. Incidentes fatais e quantidade de mortos no trânsito na cidade de São Paulo 2015-2019

Fonte: Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) – Relatórios Anuais de Sinistro. Elaboração: Guilherme Moraes da Silva, 2024, p. 134.
*Notem a alteração do uso do termo “acidentes” por “incidentes” de acordo com a atual NBR 10697 e a recente alteração do Código de Trânsito ocorrida com a lei nº 14.599/23, que também usam o termo “sinistro de trânsito”.

Ainda, a decisão de “deixar matar e morrer” é um desafio de saúde pública e muito caro para o poder público. A cada ano a quantidade de pessoas mortas e feridas no trânsito é gigantesca, e o trânsito entra como problema de saúde pública, exigindo conhecimentos e recursos públicos volumosos. O SUS se tornou referência no resgate e atendimento desde os primeiros-socorros, passando por cirurgias complexas e incluindo o atendimento em hospitais e redes de reabilitação.

Contraditoriamente, os gastos com os transportes públicos da prefeitura de São Paulo vão caindo entre 2015 e 2017, e depois sobem com investimentos em rodovias, por exemplo, como mostra Guilherme Moraes. Ele analisa a execução do orçamento público municipal de mobilidade desde 2015 (data da redução das velocidades) até 2019 (ano anterior à pandemia). Ainda que não seja possível fazer uma relação causal, o momento de maior investimento na mobilidade coletiva coincide com o período com menos acidentes. E o contrário também: o momento de menor investimento no transporte coletivo é maior em vias que privilegiam o veículo motorizado individual, coincide com o período de aumento de acidentes.

Gráfico 3. Compilado dos valores liquidados do orçamento público 2015-2019

Fonte: Prefeitura Municipal de São Paulo (Execução Orçamentária Anual). Elaboração: Guilherme Moraes da Silva, 2024, p. 127.

O gráfico sobre o orçamento liquidado (Gráfico 3) mostra que a administração de recursos públicos é feita de forma independente das diretrizes dos planos de mobilidade, especialmente não segue as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU, Lei 12.587/12) que define priorizar o transporte coletivo e não o motorizado individual.

As campanhas para evitar acidentes parecem contraditórias frente à onda eleitoreira de asfaltamento das cidades, a desresponsabilização pelas mortes por parte do Estado e da sociedade e a impunidade de quem mata.

Não queremos ficar aqui lembrando o primeiro ano sem Marina, o segundo ano sem Marina, mas... Será que se o controle de velocidades fosse severo ele teria saído dirigindo naquelas condições? Ela teria morrido? Os sete jurados não vão apenas decidir se o atropelador bêbado e em alta velocidade é culpado ou inocente, mas irão decidir se a mobilidade da cidade, pautada pelo Estado e pela sociedade, quer deixar a normalização das mortes continuar.

Paula Freire Santoro é professora doutora da FAUUSP, coordenadora do LabCidade e bolsista produtividade CNPq 2.
Guilherme Moraes é ciclista, especialista em processo penal pela Escola Paulista da Magistratura EPM/TJSP e mestre pela FFLCH/USP. Servidor do judiciário paulista, atualmente exerce a função de Assistente Judiciário em gabinete de Juiz Titular da capital.

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