Algumas coisas estão fora dos trilhos na educação superior
- Detalhes
- Otaviano Helene
- 19/07/2024
O ensino superior brasileiro tem uma série de características bastante estranhas. Vejamos inicialmente algumas normas legais.
Uma das normas diz respeito a exigências de pessoas tituladas no corpo docente de universidades. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB, de 1996, para que uma instituição possa ser uma universidade e gozar da autonomia acadêmica prevista para esse tipo de instituição, ela precisa ter, pelo menos, “um terço do corpo docente com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado”. Ora, para os fins legais, alguém que tenha o doutorado, sem ter obtido anteriormente o mestrado, terá todos os direitos correspondentes a este último título, como, por exemplo, fazer um concurso público para um cargo de mestre. Cabe, portanto, a pergunta: o que a palavra doutorado está fazendo na lei? Nada: colocá-la ou não em nada alteraria as exigências legais. Talvez sirva apernas para enfeitar a lei.
Devemos notar também que essa redação faz referência a “um terço do corpo docente”, não das aulas ou das atividades de pesquisa. Essa terça parte de pessoas com titulação mínima de “mestrado ou doutorado”, de fato, apenas mestrado, pode ser responsável por uma proporção bem menor do que um terço das aulas ou das atividades de pesquisa.
Outra exigência com redação bastante estranha é a de que uma universidade deve ter “um terço do corpo docente em regime de tempo integral”. Pela lei, essa terça parte do corpo docente pode ser formada apenas por pessoas sem mestrado ou doutorado. Além disso, a carga horária de aulas pode ser bem inferior a um terço do total de aulas da instituição. O que aquela “exigência” exige?
Esses são alguns exemplos das muitas “pontas soltas” da legislação educacional brasileira, no caso, a LDB de 1996. Elas não ocorrem por descuido, pois uma lei, antes de votada, é lida por todos os grupos interessados e suas consequências são detalhadamente avaliadas. Se estão lá é porque alguém as colocou e, certamente, não surgiram das instituições públicas, de seus docentes e associações; elas estão claramente ligadas a interesses do setor privado.
O caos em números
Não é surpreendente, portanto, a desorganização do sistema quanto aos indicadores quantitativos. A enorme tolerância para a obtenção de autorização para a criação de cursos e instituições privadas em nível superior leva a situações estranhas, como a relação entre número de vagas de ingresso no ensino superior e o número de conclusões do ensino médio. A cada ano, cerca de dois milhões de pessoas conclui o ensino médio no Brasil, enquanto são oferecidas uma quantidade de vagas de ingresso em cursos superiores na casa dos vinte milhões, entre presenciais e a distância. A enorme maioria dessas vagas está em instituições privadas.
Mesmo se considerarmos apenas a quantidade de vagas de ingresso oferecidas em cursos presenciais, vemos que elas são da ordem de seis milhões, número entre duas e três vezes maior do que o de concluintes no ensino médio.
Claro que não há vagas de fato. O que existe são instituições privadas que têm direito de oferecer vagas de ingresso sabendo que não serão ocupadas; é uma reserva estratégica disponível. Não existem vagas ociosas, ideia já usada no país para justificar certas leis e certos procedimentos.
Esse número de vagas oferecidas não apenas não tem relação com potencial demanda como são mal distribuídas pelas regiões e profissões. Não se oferecem vagas nas profissões que maiores contribuições poderiam dar ao desenvolvimento cultural e social do país ou a seu crescimento econômico; elas são oferecidas apenas em função da existência de clientela e pelo retorno financeiro que disso pode advir.
O desencontro dos números continua. A quantidade de ingressantes no ensino superior a cada ano é da ordem de cinco milhões, dois terços deles em cursos a distância. Esse número é mais do que o dobro do número de concluintes do ensino médio. Essa desproporção indica que as pessoas ingressam, em média, duas ou três vezes em um curso superior, muitas delas sem nenhum compromisso com o processo de aprendizado. Isso dá origem a outra face negativa do sistema, afetando o entendimento, por parte da população, e em especial dos estudantes, do que deve ser um curso superior.
Os concluintes do ensino superior a cada ano são da ordem de 800 mil nos cursos presenciais e perto de 500 mil nos cursos a distância. Se comparado com o número de ingressantes, de cinco milhões, poderíamos supor que a taxa de evasão seja da ordem de 75%. Entretanto, isso não é correto, pois muitos “ingressos” podem não ir além de um papel preenchido e do pagamento de uma taxa ou algumas mensalidades.
Essa situação é fruto da enorme taxa de privatização do ensino superior brasileiro, uma das maiores do mundo, combinada com as pontas soltas da legislação (apenas para comparação, nos EUA, três quartos dos estudantes do ensino superior estão em instituições públicas; no Brasil, é o inverso: três quartos estão em instituições privadas). Quando examinamos apenas o que ocorre com as vagas, ingressante e concluintes em instituições públicas, a situação é bem mais regular. As desproporções numéricas apontadas são provocadas basicamente pelo setor privado.
Consequências
As consequências dessa situação são muito grandes e negativas: jovens perdem tempo (e dinheiro) se matriculando em cursos irrelevantes e que não levarão adiante; governos, em todos os níveis, desperdiçam dinheiro subsidiando muitos desses cursos na forma de recursos destinados diretamente aos interesses do setor privado, como isenções de impostos e de contribuições sociais, na forma de abatimento de parte das despesas do imposto de renda de pessoas físicas, entre outras.
Não podemos conviver com um sistema tão sem rumo. Isso precisa ser revisto e um caminho que leve a um sistema de ensino organizado e eficiente deve ser delineado. A expansão de setor público no ensino superior, respeitando as necessidades e possibilidades regionais e das diferentes profissões, é uma componente essencial desse processo de reorganização do sistema de ensino superior no país. Se o setor público dobrar suas matrículas e o setor privado for reduzido em igual quantidade, teríamos uma taxa de privatização igual àquela dos EUA, bem melhor do que a situação atual, mas ainda distante da realidade nos países com melhores sistemas educacionais.
Uma regulação do setor privado que leve em conta os interesses da sociedade – e não dos empresários do setor – também é essencial. Todos os subsídios governamentais, que deveriam, como regra, ser transitórios, precisam ser analisados, reservando-os para cursos que realmente contribuam para o desenvolvimento do país. Não podemos deixar que jovens percam tempo e dinheiro em atividades de retorno nulo ou até negativo.
Otaviano Helene é professor do Instituto de Física da USP.
Fonte: Jornal da USP.
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