Correio da Cidadania

O SUS diante dos eventos climáticos extremos

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A calamidade parece se assentar como parte do cotidiano do Rio Grande do Sul. Em meio a falhas gritantes do poder público no socorro à sua população, opera um braço do sistema de saúde com o qual nem todo brasileiro está familiarizado: a Força Nacional do SUS.

Em conversa com o Outra Saúde, Rodrigo Stabile, coordenador desta Força e integrante do Centro de Operações de Emergência, que organiza o gabinete de emergência criado para lidar com a catástrofe, explica como este ente trabalha na linha de frente dos atendimentos mais difíceis, no território devastado.

Ele ressalta: o acontecimento mais uma vez demonstrou a importância do SUS. Para Stabile, o número de mortes poderia ser maior não fosse a capilaridade deste sistema de saúde e sua prontidão de resposta. De toda forma, o Brasil precisa aprender com a tragédia, o que significa, para o próprio SUS, preparar-se para novos eventos climáticos com graves repercussões na saúde pública.

“Tenho dito que o Rio Grande do Sul é o maior desastre climático que nós vivemos na América Latina. Quando o furacão Katrina atingiu os Estados Unidos, houve uma mortalidade maior — mesmo com uma devastação quase dez vezes menor do que vimos no Rio Grande do Sul. São terras absolutamente devastadas que precisam ser reconstruídas. Estamos trabalhando para preparar os estados e deixá-los mais resilientes para as emergências em saúde pública. E só vamos conseguir fazer isso porque temos o SUS. É a partir do sistema de saúde que conseguimos política pública e incentivo para que todos os estados possam se preparar para emergências em saúde pública, independentemente de suas particularidades geográficas dentro de um país continental”, analisou.

O coordenador do COE também destaca a rápida resposta deste Centro, que poucos dias após a devastação já estava presente em território gaúcho. “No primeiro dia de ação exploratória, colocamos as pessoas mais experientes da Força Nacional, pessoas com capacidade de tripular a aeronave, descer em rapel, fazer os resgates mais complicados. Desde a assistência ao paciente até o restabelecimento de medicamentos e vacinação, tudo foi feito olhando para aquela população que estava ao longo do ‘perfil de calamidade’”, contextualiza.

No site do ministério da Saúde, há uma atualização sobre o número de atendimentos e os locais onde opera a FN-SUS, em expedições que exigem logística e habilidades quase militares. Não à toa, a FN-SUS efetivamente opera em parceria com as forças armadas e suas missões se concentram nas áreas de maior devastação — consequentemente, as de maior dificuldade de chegada e locomoção. “Desde a assistência ao paciente até o restabelecimento de medicamentos e vacinação, tudo foi feito olhando para aquela população que estava ao longo do perfil de calamidade. “Quase 73% dos municípios do Rio Grande do Sul decretaram emergência, 22% decretaram calamidade e foi neste segundo grupo, que totaliza 73 municípios, que trabalhamos extensivamente”, contou.

Também especialista em emergências, Rodrigo Stabile explica o duro dia a dia de fazer um sistema de saúde funcionar em meio a tamanha calamidade. O COE foi organizado em Porto Alegre, dentro do Grupo Hospitalar Conceição, e conta com a participação das secretarias estadual e municipais, além de especialistas de outras áreas. A FN-SUS funciona através de voluntariado e estabelece um tempo limitado para a permanência dos profissionais nos territórios afetados, dado o estresse provocado pela catástrofe não só climática como humanitária.

Ele relata: “A Força Nacional do SUS entra com o efetivo e a logística, a exemplo dos kits de emergência, usados num momento em que todos os equipamentos de saúde estão quebrados, os medicamentos alagados, perdem-se as ações de distribuição de insumos, deixa-se de fazer vacinação… Nós distribuímos para o Rio Grande do Sul a quantidade necessária para que 300 mil pessoas pudessem, em dois meses, ter os seus medicamentos de rotina e de emergência garantidos”.

Na entrevista, Stabile também lembra que a FN-SUS foi criada justamente no contexto de uma tragédia ambiental: as chuvas que destruíram Petrópolis no verão de 2011, quando cerca de 1.100 pessoas morreram em deslizamentos de terra e enchentes. Como deixa claro, o acontecimento precisa demarcar um divisor de águas na relação do Brasil com as mudanças climáticas e isso inclui a preparação do sistema de saúde, que pode organizar suas próprias forças de apoio e mitigação, de acordo com suas características ambientais.

Confira a entrevista completa com Rodrigo Stábile.

Como tem sido a atuação da Força Nacional do SUS no estado do Rio Grande do Sul? Quais as principais dificuldades encontradas no território?

A Força Nacional do Sul é um equipamento do ministério da Saúde de apoio, tanto aos governos estaduais quanto municipais. É acionada quando o serviço de atenção à saúde do estado ou município é quebrado. No caso do Rio Grande do Sul, ela chegou muito rapidamente.

As chuvas começaram no dia 27 de abril. O Vigidesastres, uma estrutura do Ministério da Saúde, soltou o alerta no mesmo dia. No dia 29, último da chuva que gerou a destruição do estado, saiu o decreto de emergência e depois de calamidade de vários municípios.

No dia 1º, tivemos o deslocamento de equipe da Força Nacional do Sul para o território. No dia 3, após a catástrofe, já estávamos em território na missão exploratória.

Qual é o papel da Força Nacional depois de realizadas as missões de reconhecimento?

A FN-SUS vai ao território para entender qual a capacidade e necessidade de mobilização, a fim de atender àquele problema em saúde pública. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, essa equipe foi importante para chegar no território e tentar entender, junto com as secretarias estadual e municipais, que equipamentos médicos era necessário deslocar. Vimos ser preciso uma equipe constituída de aeromédicos. As aeronaves do exército e da aeronáutica foram equipadas com os nossos equipamentos, de suportes médio e avançado de garantia da vida, como UTIs.

Após esse diagnóstico, a FN-SUS disponibilizou equipes avançadas volantes, que vão para território prestar atendimento, como na região metropolitana de Porto Alegre (Canoas, São Leopoldo), em Pelotas, Rio Grande e no sul do estado. São equipes volantes constituídas por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem que saem até de carro e prestam assistência nos trajetos definidos.

Nós prestamos atendimento dessa mesma forma volante em Canoas, no maior abrigo no estado, que chegou a ter 12 mil pessoas e foi montado dentro da ULBRA, uma universidade particular. Nós colocamos também à disposição de alguns municípios quatro hospitais de campanha (em Canoas, Porto Alegre, São Leopoldo e Novo Hamburgo), onde uma estrutura provisória atendeu 24 horas por dia.

Além dos aeromédicos, levamos atendimento assistencial quando percebemos que o pós-diagnóstico situacional indicava que aquele território necessitaria tais ações. São tanto visitas volantes, com equipes médicas que vão ao município ou às linhas de afetação, quanto hospitais com atendimento 24 horas. Fizemos fizemos também uma assistência farmacêutica e uma assistência preventiva, como na vacinação de algumas doenças com potencial de eclosão em situações sanitárias como essa.

A Força Nacional do SUS entra com o efetivo e a logística para empregar materiais como kits de emergência. São usados num momento em que todos os equipamentos de saúde estão quebrados, os medicamentos alagados, perde-se as ações de distribuição de insumos, deixa-se de fazer vacinação… Nós temos um kit de emergência que distribui uma quantidade razoável de medicações. Distribuímos para o Rio Grande do Sul a quantidade necessária para que 300 mil pessoas pudessem, em dois meses, ter os seus medicamentos de rotina e também de emergência garantidos.

Desde a assistência ao paciente até o restabelecimento de medicamentos e vacinação, tudo foi feito olhando para aquela população que estava ao longo do “perfil de calamidade”.

Quase 73% dos municípios do Rio Grande do Sul decretaram emergência e 22% decretaram calamidade. Foi neste segundo grupo, que totaliza 73 municípios, que trabalhamos extensivamente.

Como realizar tantos atendimentos num contexto onde os próprios estabelecimentos de saúde foram fisicamente destruídos? Como é este desafio para o profissional de saúde que atua em situação de tamanha excepcionalidade, que inclui tarefas até mais associadas a forças militares?

Trabalhamos sempre preservando a segurança dos voluntários da Força Nacional do SUS, sob a lógica de voluntariado. A pessoa interessada faz um cadastro, que é nacional, depois é escrutinada e tem seu perfil analisado. A depender do tipo de emergência, busca-se o perfil adequado. Quando se trata de um alagamento, com devastação total, tentamos levar uma equipe que tenha capacidade de sobrevivência com segurança nessas condições. São médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, farmacêuticos que têm alguma vivência em trabalhar em emergências climáticas e ambientais, ou emergências epidemiológicas. No primeiro dia de ação exploratória, colocamos as pessoas mais experientes da Força Nacional. Gente com capacidade de tripular a aeronave, descer em rapel, fazer resgates mais complicados.

A Força Nacional e as Forças Armadas também trabalham em conjunto. Na situação do Rio Grande do Sul, foi instalada a Operação Taquari II, comandada pelas Forças Armadas. Assim, todo o trabalho dos aeromédicos, por exemplo, era regulado junto com as Forças Armadas. As equipes volantes se articulavam com o governo estadual e o município afetado, para ter segurança de passar e chegar ao local desejado. Foi instalado, dentro do Grupo Hospitalar Conceição, um grupo que gerencia hospitais federais, um Centro de Operação de Emergência. Todos os dias a equipe se reunia lá, recebia um briefing climatológico, geológico e tentava entender com os nossos geógrafos e estudiosos de clima qual trajeto faríamos, se havia segurança para a equipe se deslocar etc. Somente depois disso a equipe saía. É um trabalho em ambiente hostil e tratamos de preservar primeiro a segurança do profissional, para evitar situações onde ele próprio precise ser resgatado. Sempre fazemos essa avaliação. Todas as ações só acontecerão se houver segurança das equipes de resgate, porque sua vulnerabilidade pode aumentar a vulnerabilidade da própria região.

Isso se deu, por exemplo, na instalação de hospitais de campanha. Eles estavam em rotas de alagamento, mas sempre com rotas de fuga, de transporte do paciente. Toda essa avaliação logística é atribuição da Força Nacional do SUS, também. Quando nós estamos em momento de emergência, qualquer profissional do ministério da Saúde que se deslocar para o terreno só vai depois da permissão dada por um profissional de logística da FN-SUS. É uma rotina exaustiva. Deslocamo-nos com uma equipe psicossocial e de saúde mental forte também, que atendeu tanto a população quanto os profissionais envolvidos no resgate.

Também deve-se cuidar de quem cuida, num momento desse. Estabelecemos com a saúde mental uma permanência máxima de 15 dias, porque são duas semanas vivendo uma tragédia. Depois deste período, o profissional vai embora, a fim de evitar estresse psicológico, dado que se está trabalhando numa tragédia. Fizemos assim com todos os integrantes dessa força de ação do Rio Grande do Sul, seja do comando central, seja para aqueles na ponta, fazendo o atendimento.

A FN-SUS coordena a atuação ou quem faz isso são as secretarias estadual e municipais e seus profissionais? Como funciona essa relação?

O SUS é tripartite. A Força Nacional é um equipamento do SUS. A gente só intervém no território quando existe o colapso total da saúde daquele território, como aconteceu no Rio Grande do Sul. Trabalhamos apoiando suas ações. A decisão de estar no território foi tripartite. Nunca houve uma decisão unilateral do ministério da Saúde, que só faz intervenção por decreto onde existe o colapso total da saúde.

Como o SUS deve lidar com a presença cada vez maior das mudanças climáticas na vida cotidiana e consequentemente sobre o próprio sistema de saúde?

O que ocorreu no Rio Grande do Sul é, para mim, o maior desastre climático vivido na América Latina. No furacão Katrina, nos Estados Unidos, houve uma mortalidade maior; porém, a devastação é quase dez vezes menor do que vimos no Rio Grande do Sul. São terras absolutamente devastadas que precisam ser reconstruídas.

E só conseguimos uma baixa mortalidade, como nós observamos, porque temos o SUS. Do contrário, a resposta seria muito menos eficiente, com uma mortalidade muito mais alta. Obviamente, estamos observando que as emergências em saúde pública, sejam por clima, sejam por doença, têm se tornado muito mais frequentes. E o SUS precisa se preparar para isso.

Nós fizemos, por exemplo, um planejamento estratégico na Secretaria de Atenção Especializada em Saúde, onde a Força Nacional do SUS fica albergada. Começamos a estabelecer planos contingentes de emergência assistencial nos estados. Estamos trabalhando para prepará-los e deixá-los mais resilientes para as emergências em saúde pública. E só vamos conseguir fazer isso porque temos o SUS. É a partir do sistema de saúde que conseguimos política pública e incentivo para que todos os estados possam se preparar para emergências, independentemente de suas particularidades geográficas dentro de um país continental. O preparo de um estado no Norte vai ser diferente de um estado do Centro-Oeste e do Sul, evidentemente.

O RS já chegou a ter sua própria força estadual do SUS, voltada a situações de excepcionalidade e emergência. Acredita que os estados brasileiros devem avaliar seriamente a criação/recriação permanente deste tipo de corpo institucional?

Sim, é exatamente nisso que vamos trabalhar. O RS já tinha uma força estadual de saúde, é um estado que está acostumado a lidar com alagamento, por exemplo. É muito importante que daqui a diante os entes federativos pensem nas emergências. Por exemplo, o SAMU é uma política federal que só dá certo porque existe a capilaridade estadual. É um serviço de emergência urbana, de dia a dia, e agora precisamos olhar também as emergências em saúde pública desta forma. Obviamente, precisa haver um canal, um corpo gigantesco, como é o SAMU, são óticas diferentes. Mas é a mesma racionalidade, e devemos segui-la nos próximos anos para que possamos preparar os estados para emergências em saúde pública relacionadas a questões climáticas e ambientais.

Por fim, este corpo especial do ministério da Saúde foi criado no contexto de outra catástrofe, o que nos leva a pensar que mais esta política pública poderia estar mais avançada a esta altura.

A FN-SUS criada em 2012, justamente para suprir uma necessidade que o país não tinha, após um deslizamento de terra no Rio de Janeiro (as chuvas que provocaram cerca de 1100 mortes em Petrópolis em 2011), e ser uma força apoiadora que pudesse garantir o restabelecimento mais rápido possível do acesso à saúde da população do Brasil.

Agora, o Brasil começa a entender mais seu significado. O brasileiro consegue ver essa pessoa andando de azul, identificá-la e entender seu planejamento. Agora, com a importância das emergências climáticas, devemos fazer com que cada vez mais estados e municípios estejam preparados para enfrentar emergências na saúde pública.

Gabriel Brito é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter do site Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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