Correio da Cidadania

Greve no ensino superior federal resgata necessidade de pressionar governos pela esquerda

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ANDES-SN orienta rodada de assembleias para discussão e deliberação sobre  greve nas Federais
Foto: Divulgação

A vitória eleitoral de Lula foi um momento de imensa euforia no campo progressista, em campanha impulsionada pelo discurso de colocar os pobres no orçamento e reverter a orientação liberal-autoritária dos anos Temer e Bolsonaro. Era hora de reverter a gestão do Estado de uma nota só, voltada exclusivamente à acumulação de riquezas de velhas oligarquias e um rentismo financeiro que interdita o desenvolvimento social e econômico. Foi neste caldo que Lula assumiu a presidência, recebeu a faixa presidencial em posse apoteótica e poucos dias depois viu uma tentativa de golpe de Estado.

Ciente das dificuldades que permaneceriam num país tornado epicentro do neofascismo global, Lula faz diversos discursos de sentido mobilizador. O presidente é explícito em afirmar que precisa receber críticas e pressões do movimento social e dos setores interessados em alterar a correlação de forças, refletida na agenda de políticas públicas. No entanto, a esquerda do país segue arredia a ocupar as ruas, enquanto o mercado mantém sua pressão diuturna pelo controle econômico do país. É neste contexto que surge a greve dos servidores das universidades e institutos federais de ensino superior, aderida nos últimos dias pelos professores das mesmas instituições.

“Nós avaliamos que essa greve é muito além de luta por salário. Ela debate um projeto de universidade e um projeto econômico alternativo. Queremos uma universidade aberta para todos, com trabalhadores valorizados, com verbas para manter os estudantes, de qualidade, e profundamente democrática, com paridade nos Conselhos, com o fim da lista tríplice na escolha dos Reitores e que se acabe todas as terceirizações e privatizações, retomando o controle dos nossos hospitais universitários”, analisou Felipe Melo, diretor da Fasubra (Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil) e membro do comando de greve que se encontra em Brasília, em entrevista ao Correio da Cidadania.

A greve dos servidores é mais um capítulo das lutas de categorias de trabalhadores que eclodem no país, a exemplo dos metroviários em São Paulo, e são vistas com desconfiança e distanciamento por aqueles que tradicionalmente apoiam tais movimentos. No entanto, Felipe Melo, funcionário técnico-administrativo da UFPA, explica que as perdas salariais e o desfinanciamento das instituições de ensino acumularam níveis insuportáveis nos últimos anos mesmo com o reajuste de 9% em 2023, e o governo precisa começar de fato a colocar a educação em suas prioridades.

"O governo desde julho de 2023 vem enrolando os servidores federais e está anunciando que dará 0% de reajuste em 2024. Ocorreram oito reuniões da Mesa Nacional de Negociação Permanente e não houve proposta de reajuste salarial em 2024. Nós defendemos greve na plenária da Fasubra em outubro do ano passado porque o governo já tinha enviado o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2024 com nenhum valor para reajuste salarial e somente cerca de R$300 milhões para reestruturar todas as carreiras do executivo. Estava claro ali que não teria proposta alguma para os servidores".

Na conversa, Felipe evidencia que há discernimento com os anos de Temer e Bolsonaro, quando o desfinanciamento e até o intervencionismo similar à época da ditadura militar foram a tônica. Justamente por isso é hora de desfraldar bandeiras de luta que, se de um lado andaram esquecidas, de outro seguem atuais. É o exemplo dos 10% do PIB em investimentos na educação pública.

"O desfinanciamento se aprofundou nos governos de Temer e Bolsonaro, mas infelizmente o governo Lula não está se propondo a fazer uma mudança real da situação. Na questão da gestão das universidades, Bolsonaro nomeou mais de 20 reitores interventores, que não foram eleitos pela comunidade. Infelizmente, o governo Lula-Alckmin ainda não teve política de enfrentar e destituir esses interventores, realizar novas eleições democráticas e avançar na paridade", expôs.

Dessa forma, o governo que se fia no lema da reconstrução se vê diante da disjuntiva que opõe os militantes da austeridade eterna e setores que defendem um Estado indutor de desenvolvimento com prioridade nos investimentos sociais. O ano eleitoral parece acelerar a suspensão da trégua de supostos “centristas” e moderados. Enquanto isso, o governo tenta manter uma agenda de financiamento de políticas públicas, como a expansão de Institutos Federais e repatriação de cientistas e pesquisadores. Mas a contradição grita cada vez mais alto.

"Como abrir novos Institutos Federais se os Técnicos-Administrativos entram e logo saem dos cargos para outras carreiras e até para o setor privado por causa dos péssimos salários? O mesmo tem ocorrido com o corpo docente. Como falar em repatriar pesquisadores se as verbas para a educação e as universidades têm diminuído?", indaga.


Confira a entrevista completa com Felipe Melo a seguir.

Correio da Cidadania: Por que os servidores técnico-administrativos das instituições federais de ensino superior entraram em greve? Como foi o processo que conduziu a esta paralisação?

Felipe Melo: Nós entramos em greve porque estamos com perdas salariais de 53% de 2010 a 2023. Nosso Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação (PCCTAE) está defasado e nossa remuneração é uma das mais baixas do executivo federal. Além disso, o ajuste fiscal dos governos proibiu concursos em vários cargos, há déficit de pessoal e sobrecarga de trabalho nas nossas universidades. O orçamento das instituições também diminuiu em 52% de 2015 a 2022, o que gerou uma série de problemas nas condições de trabalho. Foi por esse acúmulo de problemas que a categoria fez greve, que hoje ocorre em 66 instituições federais filiadas à base da Fasubra (62 universidades federais e 4 Institutos Federais).

Correio da Cidadania: E o que levou os professores a aderirem à greve semanas depois?

Felipe Melo: Os docentes também sofrem com a precarização e as péssimas condições de trabalho, além de também terem perdas salariais e as carreiras defasadas. Saudamos muito que o movimento docente esteja também em greve e fortalecendo essa luta. Nós, da Combate Sindical, defendemos um comando unificado entre a Fasubra, Sinasefe e Andes em greve para unificar nossas lutas rumo à conquista das nossas reivindicações.

Correio da Cidadania: Como está a negociação com o governo? Como você resume as propostas aos trabalhadores?

Felipe Melo: O governo desde julho de 2023 vem enrolando os servidores federais e está anunciando que dará 0% de reajuste em 2024. Ocorreram oito reuniões da Mesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP) e não houve proposta de reajuste salarial em 2024. Nós defendemos greve na plenária da Fasubra em outubro do ano passado porque o governo já tinha enviado o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2024 com nenhum valor para reajuste salarial e somente cerca de R$300 milhões para reestruturar todas as carreiras do executivo. Estava claro ali que não teria proposta alguma para os servidores.

A mesa específica da carreira dos Técnicos-Administrativos abriu em setembro, teve uma nova reunião em 3 de outubro, mas o governo nunca falava em orçamento. Por causa disso, votamos Estado de Greve nas assembleias realizadas na última semana de dezembro e após a mesa de negociação de 22/2, quando o governo novamente não nos apresentou valores para reestruturar a carreira, optamos por indicar às assembleias para deflagração da greve em 11/3.

O movimento cresceu muito rápido e em duas semanas já atingia mais de 95% das universidades federais. A greve tem ampla participação dos servidores nos atos e comandos de greve. Foi um grito de basta da categoria, que já não aguenta mais tanto descaso e desvalorização por parte dos governos, inclusive dos governos petistas que usam discurso de valorizar a educação, mas na prática não estão fazendo isso.

Correio da Cidadania: O que essa greve reflete da política econômica de financiamento da educação pelo governo federal? Estamos diante de uma situação criada pelo arranjo do novo arcabouço fiscal e sua meta se déficit fiscal zero?

Felipe Melo: Com certeza essa greve enfrenta a política econômica do governo Lula. O PT optou por fazer um pacto conservador com a burguesia nacional e o Arcabouço fiscal é parte desse pacto, porque assume compromisso com a burguesia e os banqueiros de que serão retiradas verbas das áreas sociais, dos reajustes dos servidores, para pagar os juros e amortizações da dívida pública aos “investidores” nacionais e internacionais.

Neste ano serão pagos R$2,5 trilhões em títulos e juros da dívida pública, e o governo quer dar somente R$2,7 bilhões para reajustar somente os auxílios-alimentação, creche e saúde, que infelizmente não atingem aposentados e aposentadas.

Correio da Cidadania: Como foi a vida dos servidores das universidades e demais instituições envolvidas na greve nos últimos anos? O que aconteceu dentro de tais instituições?

Felipe Melo: As políticas de austeridade fiscal geraram cortes nos orçamentos, precarização e sobrecarga de trabalho, terceirizações. Isso se aprofundou nos governos de Temer e Bolsonaro, mas infelizmente o governo Lula não está se propondo a fazer uma mudança real da situação.

Na questão da gestão das universidades, Bolsonaro nomeou mais de 20 reitores interventores, que não foram eleitos pela comunidade. Infelizmente, o governo Lula-Alckmin ainda não teve política de enfrentar e destituir esses interventores, realizar novas eleições democráticas e avançar na paridade.

Nos Hospitais Universitários a privatização avança a passos largos com a Ebserh, que foi criada por Lula e implementada por Dilma. Nos HUs a situação é precária e de grande assédio contra as (os) trabalhadoras (es).

Correio da Cidadania: Como vocês analisam os projetos apresentados pelo governo em relação à expansão dos institutos federais e agora o anúncio de investimentos de até R$ 1 bilhão para repatriar pesquisadores e cientistas que emigraram nos últimos anos, enquanto as instituições que perderam tais profissionais reivindicam melhores condições?

Felipe Melo: Defendemos a ampliação dos Institutos Federais e das universidades federais. Defendemos 10% do PIB para a educação pública. Queremos que todos os jovens que queiram fazer cursos técnicos ou superiores possam entrar nessas instituições sem o crivo do vestibular. Também achamos importante repatriar pesquisadores e cientistas.

No entanto, a política de ajuste fiscal, corte de orçamento, desvalorização dos servidores, mostra que as ações do governo são demagógicas e não trazem uma mudança substancial.

O governo reduziu em R$310 milhões o orçamento das universidades federais de 2023 para 2024. Agora, recentemente tiveram cortes de R$4 bilhões que atingiram projetos dos Ministérios da Saúde, Educação e Ciência, Tecnologia e Inovação.

Como abrir novos IFs se os Técnicos-Administrativos entram e logo saem dos cargos para outras carreiras e até para o setor privado por causa dos péssimos salários? O mesmo tem ocorrido com o corpo docente.

Como falar em repatriar pesquisadores se as verbas para a educação e as universidades têm diminuído? Acreditamos que o que pode de fato melhorar a educação é a aplicação de 10% do PIB para a educação pública, para garantir as pautas dos grevistas.

Correio da Cidadania: O que devemos debater, em linhas gerais, a respeito de políticas públicas para as instituições de ensino superior no país em nossa atual conjuntura histórica?

Felipe Melo: Nós avaliamos que essa greve é muito além de luta por salário. Ela debate um projeto de universidade e um projeto econômico alternativo. Queremos uma universidade aberta para todos, com trabalhadores valorizados, com verbas para manter os estudantes, de qualidade, e profundamente democrática, com paridade nos Conselhos, com o fim da lista tríplice na escolha dos Reitores e que se acabe todas as terceirizações e privatizações, retomando o controle dos nossos hospitais universitários (e revogando a Lei da Ebserh).

Mas também estamos nessa greve debatendo uma política econômica para resolver os problemas da classe trabalhadora e do povo pobre, e não para agradar empresários e banqueiros, como o governo Lula-Alckmin está fazendo com o Arcabouço Fiscal.

Avaliamos que é possível ter orçamento para gerar emprego para todos, reajustar os salários dos servidores e garantir serviços públicos de qualidade, basta o governo romper com a lógica da austeridade, taxar os bilionários, baixar e controlar os juros, acabar com a independência do Banco Central e deixar de pagar a dívida pública que é ilegítima e só faz retirar verbas das áreas sociais para manter e aumentar a riqueza de poucos banqueiros e grandes empresários.

Não consideramos que um governo de conciliação de classes como o de Lula seja capaz de aplicar esse programa. A conciliação, inclusive, acaba fortalecendo a extrema-direita, pois gera desilusão e frustração nas pessoas que acreditaram que haveria mudanças reais no país. Esse programa de austeridade não é capaz de enfrentar os neofascistas.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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