Atraso educacional, arcaísmo cultural e injustiça social
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- Valério Arcary
- 22/12/2010
"Se você se conhece, mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha, sofrerá também uma derrota. Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas".
Sabedoria popular japonesa
As virtudes dos homens são semelhantes ao vôo dos pássaros. A ave que se habitua com a paisagem rasteira, perde o gosto pela altura.
Sabedoria popular indiana
"Sem a oposição do vento, a pipa não consegue subir".
Sabedoria popular chinesa
A longa estagnação do capitalismo periférico e os limites das políticas compensatórias
Vivemos numa sociedade culturalmente arcaica que não superou significativo atraso educacional. O aumento do consumo da faixa de trabalhadores que ganham entre três e cinco salários mínimos estimulou estudos sobre a mobilidade social no Brasil. O argumento deste artigo é que a desigualdade social brasileira não só não foi atenuada como aumentou, quando comparada com a situação ao final dos anos 80, ainda que o país esteja menos pobre. As políticas sociais compensatórias foram eficazes na redução da extrema miséria, mas são insuficientes para garantir uma desigualdade social menor. Sem crescimento sustentado que diminua o desemprego e eleve o salário médio não haverá maior mobilidade social.
Entre meados de 2004 e meados de 2008, sob o benefício de quatro anos de recuperação econômica, ocorreu uma redução da pobreza extrema, pela confluência de uma elevação do salário mínimo acima da inflação, diminuição do desemprego, ampliação da inclusão à previdência social e a expansão dos benefícios das políticas públicas compensatórias, favorecendo a acessibilidade ao crédito e, portanto, potencializando o consumo. Essa evolução alimentou a ilusão de que o Brasil - um país com uma inserção periférica no mercado mundial - poderia estar vivendo o início de uma etapa de maior mobilidade social.
No entanto, essa dinâmica foi interrompida pelo impacto da crise mundial de 2008/2009. A distribuição funcional da renda confirma que, em 2010, a parcela do trabalho sobre a renda nacional ainda permanece inferior à de 1990. A parcela do trabalho na renda nacional era, em 1990, depois de uma década de intensa mobilização operária e popular, somente de 45,4%. Não obstante, ainda piorou e caiu abaixo de 40%, entre 2003 e 2004. É interessante que tenha se recuperado, desde então, mas tão lentamente que atingiu 41,7% somente em 2008.
O crescimento econômico, a partir do segundo semestre de 2009, incentivou uma retomada de contratações e elevou, outra vez, o consumo, porém, dependeu de circunstâncias externas que podem não ser sustentáveis. De qualquer forma, a economia brasileira terá que crescer nos próximos dois anos pelo menos 5%, sem pressões inflacionárias, para que se alcance, em 2011, uma participação do trabalho na renda nacional equivalente à de 1990. No intervalo de mais uma geração, o Brasil não ficou menos injusto, somente menos miserável (1).
O salário médio nacional, outro indicador importante, permaneceu estagnado no Brasil. Somente em setembro de 2008, depois de oscilações para baixo e para cima, voltou ao patamar de 2002. A evolução histórica do salário médio das ocupações com nível superior foi pior: quando não permaneceu estacionária, veio declinando. A média nacional foi de R$ 1.200,00 em 2009. A pesquisa mensal de emprego do IBGE nas seis maiores regiões metropolitanas revelou que o salário médio da população que se auto-declarou como branca, com escolaridade de 9,1 anos, que equivale ao ensino médio incompleto, uma habilitação que permite acesso a ocupações em funções de rotina nos serviços (ou colarinho branco), foi de R$1.600,00. O da população que se auto-declarou como parda ou negra, com escolaridade média de 7,6 abis, foi de R$800,00. O salário mínimo obteve aumento real de 50% acima da inflação nos últimos quinze anos (2).
A diferença entre o salário médio das ocupações que exigem baixa escolaridade e as de escolaridade intermediária e superior veio diminuindo nos últimos trinta anos. O crescente desalento da classe média sugere que as recompensas materiais pelo aumento da escolaridade já não compensariam os sacrifícios para garantir uma escolaridade superior.
Uma longa estagnação desde 1980
As taxas de mobilidade social absoluta e relativa diminuíram, se compararmos o período histórico 1980/2010 com o período anterior, 1930/1980. Durante meio século, entre 1930 e 1980, o Brasil conheceu uma mobilidade social absoluta significativa em relação à situação atual. Esse processo foi possível em função da acelerada urbanização que permitia a absorção massiva de mão-de-obra de origem rural pela indústria. Mesmo quando deslocada dos interiores para as periferias e favelas urbanas, as massas populares melhoravam as suas condições de existência. Esta dinâmica histórica entre os anos 1930/80 é chave para compreendermos a crise atual, porque foi excepcional. O padrão histórico dominante na história do Brasil antes de 1930 foi outro.
O Brasil agrário era uma sociedade de desenvolvimento econômico lento, grande rigidez social e espantosa inércia política. Durante muitas gerações os antepassados da maioria esmagadora do povo brasileiro foram vítimas da imobilidade social e da divisão hereditária do trabalho (3). Os que nasciam filhos de escravos não tinham muitas esperanças sobre qual seria o seu destino. Os filhos dos sapateiros já sabiam que seriam sapateiros. Os filhos dos médicos, ou engenheiros, ou advogados, mesmo se não tivessem propriedades, poderiam, em contrapartida, aspirar uma ascensão aos meios burgueses.
No entanto, a memória histórica de mobilidade social que o período 1930/80 deixou como repertório cultural de experiência permanece viva na mentalidade da geração adulta atual. É compreensível que a expectativa de que ainda sejam possíveis, mesmo nos limites do capitalismo, reformas distribuidoras de renda sem conflitos sociais agudos seja tão poderosa. Não deveria surpreender, portanto, que as esperanças reformistas – a expectativa, incontáveis vezes frustrada, mas renovada, de uma concertação social que garanta pleno emprego, reforma agrária, aumento da escolaridade com expansão da rede pública, elevação do salário médio etc. - sejam tão resistentes.
Atraso educacional e arcaísmo cultural
Uma aferição de qual é o nível de escolaridade, em comparação com outras sociedades, como os países do Cone Sul, não é muito animadora. Uma em cada três pessoas da população com 25 anos ou mais de idade ainda era analfabeta funcional, e mais de 40% tinham somente o ensino fundamental incompleto. O critério do IBGE para definir o analfabetismo funcional é o de pessoas com 15 anos ou mais de idade, e menos de 4 anos completos de estudo, ou seja, pessoas que, presumidamente, foram alfabetizadas, mas não se familiarizaram com a leitura, escrita e operações matemáticas elementares. Nas regiões Norte e Nordeste, os percentuais alcançavam 29,1% e 37,6% respectivamente. Entre os estados, situações incríveis em Alagoas (45,5%) e Piauí (42,4%).
Somente 9% haviam concluído o ensino fundamental, 18% concluíram o ensino médio e apenas 8% possuíam ensino superior completo. Considerada a média de 3,5 anos de estudo, os idosos podiam ser considerados semi-letrados. O Brasil permanece uma sociedade culturalmente arcaica. A herança da escravidão tardia, da inserção dependente no mercado mundial, da urbanização atrasada e da industrialização lenta foi terrível.
O Brasil ainda tinha, em 2004, uma proporção de 11,4% da população de 15 anos ou mais de idade que declarava não saber ler ou escrever um bilhete simples, uma taxa de analfabetismo similar à de países como Jordânia (10,1%), Peru (12,3%) e Bolívia (13,5%); e espantosamente pior que o México (9,7%), China (9,1%), Chile (4,3%), Argentina (2,8%) e Cuba (0,2%). A situação era catastrófica nas áreas rurais, onde 25,8% da população se declararam analfabetos, enquanto a proporção nas áreas urbanas era de 8,7% (4). A média de anos de estudo, por idades, da população brasileira também expressa a defasagem: é de 7,2 anos para os jovens de 17 anos, quando deveria ser de 11 anos. Chega a 8,2 anos para os jovens entre 20 e 24 anos, e cai para 6,1 na população de 25 anos ou mais (5).
Políticas sociais focadas, como o Bolsa-Família, não obtiveram resultados significativos no que diz respeito ao desempenho escolar. O balanço é devastador: o número de estudantes matriculados aumentou, mas, para desespero nosso, tão lentamente que a melhora é quase imperceptível. O número de certificados emitidos cresceu, mas a qualidade do ensino caiu. Segundo Marcio Pochmann, do Instituto de Economia da Unicamp e atual presidente do IPEA, "no Chile, 80% dos estudantes de 15 a 17 anos estão no ensino médio. Se quisermos chegar lá, temos que incluir 5 milhões de jovens, formar 510 mil professores e construir 47 mil salas" (6).
Não é fácil abordar este tema porque a maioria dos trabalhadores nutre um sentimento de inferioridade cultural que é indivisível da humilhação social provocada pela pobreza. Há um abismo educacional entre nossas classes populares e as classes médias e proprietárias. A maioria do nosso povo não tem outro instrumento de comunicação que a língua coloquial. A televisão não é somente o grande canal de comunicação. Para a maioria é o único, porque estão prisioneiros da oralidade. O texto escrito é um obstáculo invencível. A norma culta do texto continua terra incógnita: um repertório desconhecido para a esmagadora maioria do povo.
Mobilidade social relativa mais lenta
A dinâmica histórica deste atraso cultural não é prometedora, se compararmos o Brasil de hoje com o de nossos pais. O que aconteceu neste intervalo de meio século em que o Brasil deixou de ser uma sociedade agrária, entre 1930 e 1980, é que o acesso à escola pública realmente se massificou, mas a qualidade do ensino público regrediu. Entre 1980 e 2010, a mobilidade social relativa ficou mais lenta, embora a diferença entre o salário médio dos trabalhadores manuais (colarinho azul), os assalariados em ocupações de rotina nos serviços (colarinho branco) e os assalariados com educação superior tenha sido reduzida.
A mobilidade social relativa sempre foi menor que a mobilidade absoluta, porque mais restringida à classe média. Os estudantes de famílias pobres dificilmente chegam ao ensino superior: na rede pública, apenas 2,3% dos estudantes provinham de famílias dos 20% de rendimento médio per capita mais baixo, enquanto 59,2% provinham dos 20% mais alto. Na rede privada, nas mesmas faixas de renda, as participações eram de 1,2% contra 74,0% (7).
A grande maioria das crianças brasileiras com até quatorze anos de idade está matriculada na escola pública. Não obstante, esta escola não corresponde às suas necessidades. O fracasso escolar pode se manifestar de diferentes formas: repetição em alguns estados, ou evasão em outros, ou ainda péssimos resultados nas avaliações por provas.
Temos uma situação na qual a fratura social se manifesta através do abismo que separa a escola pública da escola privada. O capitalismo brasileiro criou um monstro social: o apartheid educacional. A escola privada hoje no Brasil não é somente um fenômeno educacional, é um fenômeno econômico (8). O faturamento do ensino privado já tem peso significativo no PIB; foi estimado pelo IBGE, para o ano de 2004, acima de R$ 50 bilhões.
No Brasil, constituiu-se uma camada média urbana mais ampla a partir dos anos cinqüenta que, com a crise de estagnação aberta nos anos oitenta e a decadência do ensino público, se viu obrigada a retirar seus filhos das escolas públicas e os colocou na escola privada. Esse processo foi potencializado porque toda a estrutura educacional foi organizada em função de um elemento exógeno, exterior ao aprendizado. O Brasil tem um sistema de acesso à universidade que é peculiar: o exame vestibular. Ele ordena todo o edifício, e explica a privatização.
Dois processos sociais silenciosos, mas não invisíveis
Dois fenômenos muito regressivos, socialmente, dos últimos 25 anos – que correspondem à estagnação econômica de longa duração e, paradoxalmente, à estabilização democrática -, estiveram associados: a emigração para o exterior e o aumento da população carcerária.
Entre 1980 e 2000, segundo dados tabulados a partir do Censo de 2000 do IBGE para a síntese de indicadores sociais, a taxa de mortalidade por homicídios para ambos os sexos no Brasil aumentou 130% (de 11,7 para 27 por 100 mil habitantes). As taxas mais altas, também por 100 mil habitantes, eram de PE (54), RJ (51), ES (46) e SP (42) (9). O Brasil possui a oitava maior população carcerária do mundo por habitante. Estima-se que em 2010 a população carcerária esteja próxima de meio milhão. O número de presos aumentou consideravelmente nos últimos quinze anos. Dados revelados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mostram que, em 1995, eram 148.760 mil presos no país. Segundo os dados consolidados, até junho de 2007, havia 419.551 mil detidos em penitenciárias e delegacias. Em 2010, a projeção é que superaremos o meio milhão. Em 1995, a proporção era de 95 presos para cada 100 mil habitantes. Hoje, esse número aumentou e chega a 227 presos para cada 100 mil habitantes. Os dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública apontam que cerca de 500 mil mandados não foram cumpridos, o que dobraria a população carcerária (10).
A emigração de alguns milhões de brasileiros para os países centrais – entre eles, uma maioria com escolaridade acima da média nacional - parece confirmar esta tendência. Os principais países de destino da emigração brasileira são os EUA, o Paraguai (sobretudo nos anos 70 e 80), a União Européia e o Japão. Embora não existam números confiáveis, sobretudo pela intensa migração irregular, os dados do Ministério das Relações Exteriores estimam em 3 ou 4 milhões. O peso demográfico da emigração pode ter alcançado uma dimensão entre 3% e até 5% da PEA, uma proporção inferior à maioria dos países sul-americanos, mas inusitada na história do Brasil. A grandeza deste processo pode ser aferida pelo significado econômico das remessas dos brasileiros para as suas famílias, e pelo peso da entrada das divisas sobre o balanço de pagamentos do país (11).
Valério Arcary é professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo) e doutor em História pela USP.
Referências Bibliográficas
LEHRER, Roberto. Um Novo Senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo, in Outubro n. 3. São Paulo: Xamã, 1999.
Notas:
1) Em 2006, por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB) de 2,370 trilhões de reais equivaleu a R$12.688,00 em média per capita. O conjunto dos trabalhadores absorveu 40,9% do total, enquanto os proprietários apropriaram-se de 43,8%. A parte restante (15,3%) refere-se aos impostos arrecadados pelo Estado. Mais dados disponíveis no site do IPEA: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/08_11_11_DistribuicaoFuncional.pdf - Consulta em 12/04/2010.
2) Dados disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/marco2009.pdf - Consulta em 21/03/2010.
3) Da escravidão ao trabalho livre, in Da monarquia à República, momentos decisivos. Viotti da Costa, Emília. São Paulo, Brasiliense, 4ª edição, 1987, p. 240.
4) Dados disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=580&id_pagina=1 - Consulta em 20/04/2010.
5) Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE. Dados disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=132&id_pagina=1 - Consulta em 20/04/2010.
6) Bia Barbosa, in Carta Maior, 02/01/06, http://agenciacartamaior.uol.com.br/ - Consulta em 21/03/2010.
7) Dados disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=132&id_pagina=1 - Consulta em 20/04/2020.
8) Roberto Lehrer tem realizado um conjunto de estudos sobre o papel do Banco Mundial no Brasil, desde o final dos anos sessenta, na orientação de uma política educacional que favorece a privatização da educação, sob a alegação de que os custos da universalização do acesso ao ensino gratuito seriam desproporcionais para a capacidade do Estado. A principal pressão do Banco Mundial tem sido no sentido de introduzir a cobrança de mensalidades nas Universidades públicas.
9) Dados disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=132&id_pagina=1 - Consulta em 20/04/2010.
10) A taxa da população carcerária do Brasil por habitante está bem acima da média da América do Sul, que é de 165,5 por 100 mil. Disponível em: http://www.infoseg.gov.br/infoseg/destaques-01/brasil-e-oitavo-do-mundo-em-populacao-de-detentos - Consulta em 31/03/2010.
11) Desde os meados dos anos 80, o país começou a se tornar "country of emigration", como reconhece o World Economic and Social Survey – 2004, da ONU. A emigração para os EUA, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal e Japão, entre outros destinos. São fontes sérias sobre a emigração latino-americana o World Economic and Social Survey – 2004 da ONU – DEPARTMENT OF ECONOMIC AND SOCIAL AFFAIRS. Disponível em: http://www.un.org/esa/analysis/wess; e um relatório sobre os dados fornecidos pelo MRE pode ser encontrado em: MARINUCCI, Roberto. "Brasileiros e brasileiras no exterior. Apresentação de dados recentes do Ministério das Relações Exteriores". Disponível em: http://www.csem.org.br/2008/roberto_marinucci_brasileiros_e_brasileiras_no_exterior_segundo_dados_do_mre_junho2008.pdf - Consulta em 31/03/2010.
Artigo originalmente publicado na revista Integração nº. 59 da Universidade São Judas Tadeu de São Paulo - http://www.usjt.br/prppg/revista/integracao_59.php/ohttp://www.usjt.br/prppg/revista/integracao_59.php.
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