Poluição atmosférica em SP pressiona por urgente reversão na política de incentivo ao carro
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- Gabriel Brito, da Redação
- 06/08/2011
Como se já fosse parte da natureza, a atual época do ano em São Paulo é conhecida como a da poluição atmosférica, acarretando aumento de adoecimentos e internações em sua já combalida rede de saúde. Causa de cerca de 4 mil mortes prematuras por ano, o atual estágio de poluição da cidade se encontra em níveis que precisam despertar uma imediata consciência na população, a fim de que se exija dos políticos o mínimo projeto de reversão dessa espiral que atenta cada vez mais contra a vida de seus habitantes.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, Evangelina Vormittag, presidente do Instituto Saúde e Sustentabilidade, expõe com mais profundidade a atual gravidade da situação, apontando a atual organização do transporte como principal fator da incessante deterioração da qualidade do ar, na mesma semana em que o governo federal anunciou generoso pacote de incentivos à indústria automobilística. Estudiosa da qualidade de vida nas cidades, onde vivem 84% dos brasileiros, ela cita casos que contaminam a saúde das pessoas em níveis imponderáveis.
Sem mencionar diretamente os interesses político-econômicos que impedem a cidade de ser administrada em função da qualidade de vida das pessoas, ela lamenta a consciência ainda baixa do público a respeito do assunto. Ressalta que, ao contrário do que a maioria pensa, a poluição acima dos níveis recomendados pela OMS não causa apenas doenças respiratórias. “Se temos um dia muito poluído em termos de material particulado no ar, dois dias depois aumenta o número de pessoas com infarto na cidade”.
Como principal argumento para a imposição urgente de novas políticas para o desenvolvimento da cidade, Evangelina lembra o enorme passivo gerado para a sociedade em função dos mais diversos custos “invisíveis”, aqueles menos considerados quando se discute o problema da poluição. No entanto, lembra que o custo gerado pelos tratamentos médicos já seria motivo suficiente para justificar uma série de políticas de recuperação da qualidade de vida e do ar na Paulicéia, casa de 10% dos brasileiros.
Correio da Cidadania: Que quadro a senhora desenha a respeito da qualidade do ar em São Paulo?
Evangelina Vormittag: Bom, a situação da qualidade do ar de São Paulo é ruim, tanto pela questão da presença dos poluentes como pela questão de estarmos no inverno e contar com outros fatores, como a baixa umidade e a inversão térmica, o que piora ainda mais o ar. Mas independentemente disso, as concentrações de poluentes estão acima do preconizado pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
Correio da Cidadania: O que levou a metrópole a chegar a esse ponto alarmante e cada vez mais nocivo à vida das pessoas em termos de poluição atmosférica?
Evangelina Vormittag: Eu creio que o grande motivo é o transporte. Acho que a quantidade de carros em circulação é enorme e isso permite a presença da maior parte dos poluentes presentes.
Em relação aos carros, são vários fatores, pois além de tudo são hábito já cultural na cidade. Vamos supor que tivéssemos uma campanha educativa que orientasse as pessoas a não usar o carro, mudar o costume. Infelizmente, não teríamos tal opção, pois o certo seria um transporte público que pudesse ser usado de fato, com uma inter-comunicabilidade entre os diversos modais de transporte. Por exemplo: eu deixo meu carro perto de uma estação de metrô e pego outro transporte pra ir ao meu destino.
Porém, o paulistano não tem essa opção, por mais que ele queira não é possível, ficando sem opção de substituir seu modo de transporte. Sabemos que existem alguns esforços, como os corredores de ônibus, aumento de linhas de metrô, mas sabemos que não dá pra entrar num trem às 6 da tarde, há bairros que não têm metrô nem trem, não há mobilidade na cidade...
Correio da Cidadania: Dessa forma, o fim da política de incentivo ao uso do carro é o ponto mais central e imediato na reversão dessa lógica que tem asfixiado a cidade?
Evangelina Vormittag: Sim, tendo outro transporte como opção. Não se pode pedir para as pessoas deixarem o carro – aliás, elas podem estar mais conscientes do que se imagina quanto a isso – e não oferecer nada.
É preciso partir para algumas coisas diferentes, como transporte compartilhado, com estímulos a esse tipo de iniciativa. É uma das poucas opções que vejo em condições de ajudar mais imediatamente: o transporte compartilhado.
Além, obviamente, de se melhorar o transporte público, pois, enquanto ele não for ‘competitivo’ com o carro, fica difícil...
(Nota: no dia seguinte à entrevista – quarta, 3 - o governo federal anunciou novo pacote de incentivos à indústria automobilística, o segundo desde a crise financeira mundial iniciada em 2008).
Correio da Cidadania: Quem são os maiores prejudicados pela poluição produzida em São Paulo? Nesse caso, os mais pobres também são os mais afetados?
Evangelina Vormittag: Com certeza. Os mais prejudicados são os que menos poluem. As pessoas mais vulneráveis são as mais pobres, as que utilizam o transporte público, não poluem a cidade, mas acabam sendo mais prejudicadas em sua saúde por diversas razões: estão mais expostas à poluição, já que as pessoas dentro do carro ficam mais protegidas, com o veículo fechado; também ficam expostas em pontos de ônibus, dormem menos, ficam menos com a família, deixam de estudar, porque perdem 3, 4 horas por dia dentro do ônibus...
Dessa forma, não há dúvida de que aqueles que estão na periferia são os mais prejudicados, pois vão perder mais tempo, não têm transporte de qualidade, morrem de calor dentro do ônibus, fora outras questões estruturais.
Correio da Cidadania: É no longo prazo que residiria a maior parte dos esforços, sendo necessária, portanto, uma atuação e planejamento voltados ao interesse social, que há tempos não se vêem em nossa política?
Evangelina Vormittag: Sem dúvida nenhuma. Acho que a situação é muito séria, vai se tornar cada vez mais grave na cidade, algumas medidas já poderiam ter sido tomadas e não tenha dúvidas de que políticas nesse sentido são importantes desde já.
Algumas cidades conseguiram resolver esse problema e servem de exemplo, como a Cidade do México, porém, tomando atitudes muito corajosas. Os políticos enfrentaram os empresários do transporte, fizeram corredores, ‘prejudicaram’ o transporte individual, tornaram o transporte coletivo competitivo, obrigaram as inspeções veiculares, fizeram os carros mais poluentes pagarem mais impostos e circularem menos...
Ou seja, há uma série de medidas que podem ser tomadas contra esse problema. Só que é preciso coragem e, lógico, dinheiro.
Correio da Cidadania: Quais interesses e falhas mais prejudicam o impulso ao combate à poluição atmosférica de São Paulo, um flagelo propalado já há muitos anos?
Evangelina Vormittag: É difícil colocar algumas questões aqui, mas sinto que o gerenciamento do transporte na cidade é muito compartimentado. É necessário que haja um diálogo melhor entre as várias companhias e a prefeitura, que coordenam o trânsito na cidade. Sei que o atual secretário dos Transportes em São Paulo (Marcelo Cardinale Branco) tem boa vontade, visão etc., mas sabemos que vários fatores impedem uma ação mais forte, além da questão do dinheiro também...
Mas não tem outra: é preciso coragem e ação política. Tem de ser feito e pronto. Por que não se faz eu não sei explicar...
Correio da Cidadania: Até porque os atuais níveis de poluição do ar geram altíssimos custos invisíveis, aqueles que passam despercebidos pela população, mídia e até os gestores públicos.
Evangelina Vormittag: Sem dúvidas. Também existe um alto custo em relação à saúde. Dessa forma, se o custo de saúde decorrente da poluição fosse computado, poderia se justificar uma série de políticas para implementação de outro transporte. Também deveria haver uma ação conjunta entre as ações das Secretarias de Transportes, Saúde e Meio Ambiente, que hoje se encontram muito compartimentadas, não conseguem ter uma comunicação que faça fluir todo o planejamento e execução dessas questões, o que facilitaria o trabalho. Juntar todos os quesitos facilita a justificação de políticas de combate aos males da poluição e vencer certos interesses. É questão de força política, a exemplo de outras situações.
Vou dar um exemplo: temos padrões de material particulado no ar na cidade acima do preconizado pela OMS. Pergunto: como a CETESB adota um padrão que não é o padrão de saúde adotado no mundo inteiro? Ou seja, a leitura que ela faz da poluição da cidade não está voltada para a saúde, está por fora disso. Quando ela diz que o padrão de qualidade do ar está adequado, não sei se está realmente adequado ou se ela é que considera normal. Muitas vezes o adequado pode não estar adequado, e com isso a informação não sai correta. E dessa forma, não se consegue fazer um movimento contrário, uma contestação, nada.
No ano passado, houve um movimento em relação a isso, foi feito abaixo-assinado, com a participação de algumas ONGs, e agora aprovaram a alteração do padrão. Mas vai levar alguns anos (seis) para os novos serem implementados. Se a CETESB mostrar ao público que tantos dias saem do padrão normal, como vai, posteriormente, justificar sua inação?
Correio da Cidadania: Em artigo na Scientific American Brasil, o doutor Paulo Saldiva afirmou que “há registros de que São Paulo tenha a maior concentração de ozônio e material particulado do país, fenômeno que provoca cerca de quatro mil mortes prematuras por ano”. Há muitas cidades pelo resto do mundo que podem ser paralelo?
Evangelina Vormittag: Existem algumas sim, e outras que eram muito poluídas e melhoraram. A Cidade do México, Bogotá e Santiago no Chile são bons exemplos de cidades latinas que conseguiram avanços. Por que São Paulo não pode também? Sem falar em cidades do mundo mais rico...
Correio da Cidadania: O que a senhora vislumbra para os próximos anos, diante das atuais perspectivas de reversão do quadro? A hipótese de uma tragédia ambiental sem precedentes pode ser aventada?
Evangelina Vormittag: Eu penso que já temos uma situação complicada. Morrem 4 mil pessoas por ano em São Paulo por causa da poluição. E isso vai aumentar. Por alguma razão, pode ser que aumente a um ponto ‘x’ que cause um número muito grande de mortes, a exemplo do que houve em Londres em 1952.
Publicamos um livro no ano passado sobre meio ambiente e saúde nas grandes cidades, já que é um tema de grande preocupação das entidades de saúde, sendo praticamente o grande desafio de saúde do século 21. E no Brasil 84% da população mora em cidades, índice também elevado no resto do mundo, de modo que precisamos pensar condições que permitam às pessoas viverem com saúde nas grandes cidades. Infelizmente, os estudos que podem ser feitos na ciência para mostrar os efeitos da poluição na saúde são aqueles que tratam de mortes e internações hospitalares. Ou seja, consegue-se pegar o bico do iceberg, porque as pessoas que estão adoecendo pela poluição não são computadas nesses trabalhos.
Assim, quando se fala desse mal em trabalhos científicos, está se falando diretamente de mortes. E o grande efeito da poluição não é só respiratório, como a maioria pensa; o efeito cardiovascular é muito importante também. A poluição é hoje um dos fatores de risco para infartos do coração, provocando ainda arritmia. Se temos um dia muito poluído em termos de material particulado no ar, dois dias depois aumenta o número de pessoas com infarto do miocárdio na cidade, principalmente idosos e pessoas que já tinham doenças ou pré-disponibilidade. Ou seja, a poluição é mesmo um fator desencadeante a mais para o infarto do coração.
Tem um trabalho publicado na revista The Lancet, conceituada no campo científico, que estudou vários fatores de risco evitáveis, como tabagismo, estresse emocional, drogas, tráfego, relações sexuais, e ficou evidenciado que a poluição e o tráfego juntos têm mais fatores de risco evitável para o infarto. A cocaína mata mais que o trânsito, no entanto, há mais pessoas expostas ao trânsito que à cocaína, de modo que passam os dois (poluição e trânsito) a ser o primeiro fator de risco para infartos na cidade. É muito grave, precisa existir um olhar voltado à saúde nessa discussão toda.
Para onde estão olhando quando fazem um padrão de controle da qualidade do ar? Ninguém fala na saúde, é muito difícil. Portanto, isso precisa entrar na discussão.
Além disso, o livro que fizemos inspirou o Andre Trigueiro, do programa Mundo Sustentável, da GloboNews. Ele veio a São Paulo e fez um roteiro conosco, no qual tivemos equipamentos e aparelhos que tiravam medidas ambientais – poluição, material particulado, temperatura, umidade do ar, ruído – e também aparelhos que tiravam medidas de saúde – pressão arterial, freqüência cardíaca etc.
Fizemos um roteiro de 6 horas pela cidade, passando por vários modais de transporte, e, quando estávamos na avenida do Estado, o material particulado chegou a 800 microgramas por metro cúbico, quando o normal é 25. Imagina isso? Todo esse trabalho se chama “A poluição mata” e está acessível na internet. Aliás, o próprio Trigueiro teve alteração de freqüência cardíaca, o que num idoso ou pessoa com problema conhecido poderia causar uma arritmia ou infarto.
Correio da Cidadania: E são todas questões muito pouco conversadas, falta ainda bastante consciência da população com relação aos problemas e conseqüências que vivemos por conta da poluição, não?
Evangelina Vormittag: Sim, é preciso uma conscientização maior. E quando se trata de saúde a população se sensibiliza. O mesmo vale para as doenças respiratórias, o aumento da asma na cidade...
Correio da Cidadania: O que a senhora espera do governo Alckmin na área de políticas ambientais?
Evangelina Vormittag: Espero que ele saiba dar o devido olhar para a importância das cidades na vida do brasileiro, já que 84% deles moram nas cidades, oferecendo condições de qualidade de vida. É uma enorme responsabilidade e ele tem de fazer diminuir a poluição do ar, resolver como vamos mudar o ar poluído que respiramos. A água ainda podemos tratar antes de beber. O ar não. Só políticas sérias para mudar a atual lógica de poluição.
O governador deve tomar decisões corajosas e fazer enfrentamentos de peito aberto. Por exemplo, o transporte de bicicleta: é difícil implantá-lo no atual formato de cidade que temos, não dá pra colocar uma faixa pra bicicleta no meio desse trânsito, mas podem existir trajetos alternativos, mais bicicletários etc., e assim por diante.
Gabriel Brito é jornalista.
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