Prepotência e silêncio
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- Lincoln de Abreu Penna
- 20/08/2011
As universidades no Brasil estão a refletir um fenômeno que é mundial, mas que entre nós tem assumido um caráter mais perverso, a combinar os atos e atitudes de prepotência com o silêncio obsequioso dos que não querem se incomodar, voltados que estão em seus afazeres docentes. Essa dupla conjugação tem nos levado a situações cada vez mais desastrosas para a vida universitária, de modo a influir decisivamente no comportamento dos estudantes e das gerações mais jovens de docentes, a exibirem com vaidade os resultados de suas pesquisas e a quantificarem o número de vezes que seus ensaios são publicados e citados pelos colegas.
A importância desmedida concedida aos números de participações em eventos e no atendimento às exigências da vida acadêmica, se por um lado revela o quanto se avançou na busca de uma atividade regular nos meios universitários, por outro lado tem levado a uma perigosa evasão da realidade, como se as contravenções nos diversos campos da sociedade e também dos dirigentes das comunidades universitárias fossem irrelevantes diante do objetivo principal, isto é, os resultados dos projetos de pesquisa. Com isso, se cultiva o desprezo por tudo que diz respeito à vida das coletividades, algo como um comportamento esquizóide no qual só é levado em conta o que se faz com vistas à obtenção de reconhecimento de mérito, centrado apenas em si.
Em nosso meio acadêmico a vaidade é, seguramente, componente inerente aos seus membros. Há, no entanto, a vaidade como um sentimento de orgulho próprio pelo que podemos fazer em benefício dos outros, sobretudo dos mais necessitados, refletindo sobre os seus destinos e os destinos das comunidades em geral; e a vaidade que se manifesta na excessiva valorização do eu, profundamente indiferente em relação aos outros. Desse modo, temos no primeiro caso a prevalência do altruísmo. No segundo, a presença de um tipo de narcisismo absolutamente inaceitável porque marcado pela vaidade em si, a semear o individualismo egoísta dos que se propõem unicamente a exaltar o exercício egocêntrico junto a todos com quem se convive num ambiente cuja vocação deveria ser o da comunhão fraternal, próprio a uma comunidade de destino.
Por que esse fenômeno está a ocorrer entre nós com tanta freqüência? Há pelo menos duas explicações que se entrelaçam. Uma de natureza mais geral, e tem a ver com o advento de uma etapa mais agressiva e ao mesmo tempo mais caótica do capitalismo em sua fase neoliberal, responsável pelo desprezo de valores sociais. O outro se situa na nossa realidade histórica e cultural, a exibir a simbiose do conservadorismo produzida por nosso passado colonial e reafirmada mais modernamente no estágio neocolonial de nossa formação social, com a acomodação que tem nos conduzido a adiar as soluções radicais, tais como as transformações substantivas de nossas estruturas. Ao abdicar desta tarefa, os docentes têm reproduzido valores distantes dos compromissos de fazer de suas ocupações instrumento de real intervenção na vida dos cidadãos.
E qual é o papel das universidades, como comunidades destinadas à reflexão, produção e difusão do conhecimento enquanto erudição do patrimônio da humanidade e de criação de novos saberes? Instigar e incomodar o que se tem como sabido. Preservar, contudo, os valores caros à humanidade, porque estes são permanentes e definem o que entendemos como direitos inalienáveis do ser humano, tais como as liberdades, em seus mais variados sentidos, principalmente o sentido da libertação. E isso se faz dentro de normas de respeito a opiniões divergentes, porque além da liberdade como libertação – só possível nos ambientes democráticos – é preciso cultivar a idéia de que é no ambiente universitário que se deve praticar o encontro das diferenças, do contraditório em busca do novo, mesmo que para tanto as contradições gerem conflitos e os conflitos, confrontos, porque só assim estaremos desenvolvendo a democracia.
Essa digressão decorre de fatos que vêm se acumulando nos meios universitários a envolver mandos e desmandos de colegas detentores de cargos e mandatos em suas Instituições de Ensino Superior (IES). Quase sempre a adotarem decisões arbitrárias ou excessivamente centralizadas, as quais invariavelmente descambam para uma prepotência de estirpe, porque centrada em argumentos de autoridade. Ao manipular os órgãos colegiados ou simplesmente desprezá-los, essas atitudes têm se reproduzido tanto nas IES particulares quanto públicas. E a democracia que invocam ou está baseada no controle desses colegiados ou na referência meramente a decisões institucionais.
Essas condutas além de intoleráveis atingem o centro nervoso das IES, porque as tornam verdadeiras empresas ou repartições voltadas exclusivamente para o funcionamento harmonioso de seus quadros funcionais. Criam e recriam profissionais zelosos pelos seus trabalhos, submetidos a constantes verificações, e inibem as manifestações de descontentamentos tidas como impertinentes às atividades desses centros orgânicos de produção. Tudo o que escapa à normalidade dos funcionamentos previsíveis é, por princípio, condenado ou pelo menos visto com os reparos angustiados dos zelosos cumpridores das expectativas institucionais. As vozes dissonantes costumam ser objeto de censura quando não de repressão simbólica ou mesmo efetiva, subtraindo-as do ambiente por serem corrosivas ao bom andamento da pax acadêmica.
É preciso reagir ao marasmo, à indolência, à acomodação, ao silêncio comprometedor que se espraia nos campi universitários, sob pena de sermos cúmplices dessa mesmice, mesmo sendo críticos em relação ao que se passa nos meios acadêmicos. Para tanto, torna-se imperioso que se constituam núcleos de debate aonde for possível constituí-los para a introdução de uma prática de contestação aos abusos, e a toda sorte de violência que ocorra. Mas não apenas núcleos destinados a identificar esses atos, mas que tenham por objetivo criar espaços de debates e de germinação de idéias novas a serem exercitadas com vistas a democratizar a democracia formal existente.
Democratizar a democracia formal consiste basicamente em fazer aprofundar a essência do sentido de democracia. E isto só se consegue fazendo, discutindo, questionando o que existe, por vezes até transgredindo as normas que se considerarem obsoletas ou restritivas ao bom desenvolvimento dos processos de libertação. Essas condutas não precisam e nem devem adotar meios violentos, senão a palavra e a força das idéias, instrumento básico e eficaz para fazer valer as concepções inovadoras e libertárias. Porque a democracia não é um produto fechado e limitado ao sabor dos interesses meramente institucionais avessos ao contraditório. Deve ser um processo que se alimenta na discussão dos contrários e cresce na medida em que se contestam os limites de sua existência.
Nesse sentido, a democracia é sempre um vir-a-ser, aquela utopia que se corre atrás e se tem a sensação de que jamais a alcançaremos. O objetivo, todavia, não é necessariamente alcançá-la em sua plenitude, mas continuar a persegui-la sem cessar. Essa é a luta dos que desejam uma democracia radical com vistas a uma sociedade de iguais.
Lincoln de Abreu Penna é professor aposentado da UFRJ, demitido arbitrariamente do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO.
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