O ‘agrobanditismo’ e as disputas territoriais em Mato Grosso do Sul
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- Márcia Yukari Mizusaki
- 03/12/2011
Bem apropriado é o termo dado pelo geógrafo da USP, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, aos mecanismos utilizados por determinados agentes ligados ao campo para reafirmarem o seu poder de mando no país: agrobanditismo. Não há nome mais apropriado para qualificar os inúmeros assassinatos e violências a que têm sido acometidos os povos indígenas de Mato Grosso do Sul, em especial os Guarani-kaiowá, praticados por pistoleiros e contando com o silêncio e a conivência de muitos, na questão da demarcação das terras indígenas.
Em 2010, segundo dados registrados pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), das 1.015 lesões corporais sofridas pelos povos indígenas no Brasil, 1.004 aconteceram no Mato Grosso do Sul. Das 152 ameaças de morte, 150 aconteceram no Mato Grosso do Sul. Dos 60 assassinatos, 34 no Mato Grosso do Sul. Para o ano de 2011, farão parte dessa escandalosa estatística Teodoro Ricardi (primo dos professores indígenas assassinados em 2009), o cacique Nísio Gomes, dentre tantos outros. Apesar desses números, não é demais lembrar que esse estado não é o que possui a maior população indígena do país. Mais do que simples números, esses dados revelam a face perversa da questão agrária em Mato Grosso do Sul, onde o negócio da terra é mais importante do que a vida de seres humanos.
O assassinato, a violência e a intimidação de indígenas que lutam pela recuperação de seus territórios é situação conivente para todos aqueles que são afetados pela questão da demarcação de terras indígenas. É justamente por isso que a questão agrária coloca as pessoas em lados opostos. Terra é meio de produção e de reprodução da vida. Apropriar-se dela, na sociedade capitalista, significa ter o controle sobre um meio de reprodução da vida. Estando nas mãos de poucos, como no caso brasileiro, significa que a maioria dela está expropriada. Na sociedade capitalista, a terra virou mercadoria, fonte de lucro, renda e poder, o que vem motivando o assassinato e a violência contra aqueles que buscam (re)territorializar outros modos de vida, outras formas de se relacionar com a natureza.
Por trás dos pistoleiros existem os mandantes (quase sempre impunes pelos crimes que cometeram), os coniventes e todos aqueles cujos interesses são afetados com o movimento de luta dos indígenas pela recuperação de seus territórios. Não o fosse, a questão indígena não teria chegado aos níveis em que chegou. Ao confrontarem-se as diferentes formas de apropriação do território, elas se tensionam e acirram as disputas territoriais. Os Guarani acampam para reivindicar suas terras tradicionais. Em reação, recebem “bala”, são barbaramente assassinados. Por trás dessas diferentes relações, encontram-se diferentes concepções de propriedade, de sociedade, de natureza. Terra para o índio é um bem sagrado e não um negócio.
No contexto dessas diferentes formas de apropriação do território, há que se acrescentar que parte das terras de Mato Grosso do Sul foi apropriada historicamente por caminhos tortuosos e práticas ilegais, o que resulta, ainda na atualidade, na presença de 5,3 milhões de hectares de terras devolutas, segundo Ariovaldo, que o afirma com base em dados de 2003 do INCRA. Muito provavelmente existem terras tradicionais indígenas nessas áreas. E por que o Estado não desapropria essas terras? Algo precisa ser feito.
Faço aqui uma provocação. O poder público, nas suas várias instâncias, todos os parlamentares e fazendeiros que se considerem honestos e do bem (e que não concordam com tais práticas), enfim, toda a sociedade, poderiam começar um movimento de luta para que as terras devolutas sejam desapropriadas e entregues para fins de demarcação de terras indígenas ou reforma agrária, pois a vida não pode ser tratada como se fosse apenas uma mercadoria, que se compra, que se vende ou se descarta. A gravidade da situação pede uma atitude.
Ressalte-se ainda que esse debate não pode ser feito sem estar atrelado a uma outra face desse processo: a questão da soberania alimentar (já que a terra está sendo tomada pelo monocultivo). Certamente, 5,3 milhões de hectares destinados a produzir alimentos (diga-se, arroz, feijão, legumes e verduras, frutas etc.) e à demarcação de terras indígenas seria um bom começo para reduzirmos os problemas que envolvem os conflitos e a violência, não somente no campo, mas na cidade também.
Enquanto isso, vemos o setor sucroalcooleiro brigando na justiça para conseguir a liberação da queima da palha da cana (prática comprovadamente tida como prejudicial à saúde e que o setor insiste em legitimá-la no estado); vemos a prefeitura de Dourados liberando 30 mil reais para evento do setor sucroalcooleiro (CANASUL). É incrível como para o agronegócio sempre tem dinheiro (sem entrar na questão dos bilhões liberados pelo BNDES). E a questão indígena? Sempre tratada como um problema menor, diante da lucratividade, produtividade, rentabilidade que o setor promete, apesar de não bebermos etanol e apesar de o preço do álcool estar nas alturas.
O assassinato do cacique Nísio Ramos é assim, parte constitutiva e inter-relacionada desse modelo de sociedade e de desenvolvimento que perpassa o país e o estado de Mato Grosso do Sul em particular. É esse modelo insustentável de desenvolvimento, que precisa de terras para o monocultivo, terras como reserva de valor, terras para apropriação da sua riqueza, água para aumentar produção de energia, que não quer terras para os índios, pois terra, como bem sagrado, atrapalha esse modelo de “desenvolvimento”.
Finalizo esse pequeno texto aos 45 minutos do dia 22 de novembro, cansada, mas movida pela necessidade de repudiar mais esse ato de violência contra o povo indígena.
Precisamos cuidar do ambiente inteiro e não apenas de uma árvore. Também fazemos parte da natureza.
Márcia Yukari Mizusaki é professora dos cursos de graduação e mestrado em Geografia da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).
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Artigo socializado pelo Programa Territórios Livres do Baixo Parnaíba.
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