Correio da Cidadania

Sobre os parcos recursos públicos brasileiros

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O governo federal tem divulgado que os gastos públicos em educação no Brasil atingem 5,8% do PIB. Entretanto, essa estimativa não corresponde a investimentos em educação pública pelo menos por duas razões. Uma delas é que naquele valor estão incluídas despesas que em nenhum sentido poderiam ser classificadas como educacionais. Outra razão é uma espécie de jogo de palavras: sãorecursos públicos para educação, o que inclui transferências para o setor privado, não recursos para a educação pública.

 

Podemos estimar os gastos efetivos com educação pública com base em dois procedimentos independentes. Um deles é considerar as arrecadações de impostos da União, dos estados e dos municípios, uma vez que os recursos para educação pública são uma fração dessas arrecadações. Outro procedimento é usar os dados do Fundeb, cujas estimativas são definidas por lei. Ambos os procedimentos indicam que os gastos com educação pública estão próximos ou mesmo abaixo dos 4,5% do PIB.

 

Esse valor é insuficiente até mesmo para absorver a demanda quantitativa por educação, ainda que com qualidade totalmente comprometida. Portanto, a questão fundamental é como aumentar os recursos públicos para educação pública até atingir, idealmente, algum valor próximo a 10% do PIB.

 

Essa questão pode ser desdobrada em pelo menos duas. Destinar 10% do PIB para a educação poderia comprometer outras atividades? Como fazer para aumentar os recursos para a educação pública em cerca de 5% do PIB? Vamos ver essa última questão.

 

Há uma enorme propaganda contra o setor público no Brasil, em especial no que diz respeito à arrecadação de impostos, taxas e contribuições sociais. Entretanto, os municípios, os estados e o governo central arrecadam apenas cerca de 34% do PIB, valor muito abaixo do que se observa nos países mais organizados.

 

Apenas uma parte daqueles 34% do PIB é destinada aos setores de interesse social. O superávit primário do setor público, com pequenas variações ao longo dos anos, é da ordem de 2,5% a 3% (cerca da terça parte desse valor corresponde aos superávits de estados e municípios e o restante, da União). Como esses recursos são usados para pagamento dos juros ou amortização das dívidas, resta para todas as demais despesas da União, dos estados e dos municípios alguma coisa próxima a 31% ou 32% do PIB.

 

Há, ainda, cerca de 6% do PIB correspondente a despesas dos poderes legislativos e judiciários, das forças armadas e de segurança pública. Há, ainda, despesas internas do funcionamento das máquinas administrativas e de várias secretarias ou ministérios, cujas finalidades não correspondem diretamente a atividades de interesse social e que são financiadas por recursos públicos.

 

Assim, restam pouco mais do que 20% do PIB para todas as despesas de caráter social: previdência, educação, saúde, assistência social, habitação, desenvolvimento urbano, desenvolvimento agrário, seguro desemprego, saneamento, cultura etc. É impossível, com aquele valor, responder adequadamente a todas essas demandas. É evidente que precisamos aumentar os recursos públicos no Brasil (1).

 

O discurso das elites

 

Em muitos países, as arrecadações públicas superam, e às vezes em muito, os 45% do PIB. Além disso, em diversos países, contrariamente ao que ocorre no Brasil, os governos trabalham com déficits públicos bastante altos, e não com superávits. Mesmo excluindo a recente crise do capitalismo neoliberal, que fez com que os déficits superassem os 10% dos PIB, déficits maiores que 3% do PIB eram muito comuns. Em anos mais recentes, os países da zona do euro trabalharam com déficits públicos superiores aos 6% do PIB (2).

 

Somando esses déficits com as arrecadações, os gastos públicos totais excedem a metade do PIB. Entre os países onde isso acontece estão os países capitalistas mais organizados (tipicamente os países europeus, em especial os países nórdicos), países de economia intermediária como Grécia e Líbia (este último considerando dados anteriores às ações da OTAN), países cujas rendas per capita (3) se aproximam da brasileira (Ucrânia, Bielorrússia, Cuba ou Sérvia, por exemplo) e diversos países bastante pobres (como o Lesoto e o Burundi).

 

Mesmo nos EUA, os gastos públicos totais, da ordem de 6,1 trilhões de dólares em todos os níveis governamentais em 2011 (4), correspondem a 40% do PIB, bem mais do que no Brasil. Além disso, nos EUA, grande parte da saúde coletiva e do sistema de aposentadoria é administrada de forma externa ao sistema público. Se os recursos correspondentes a essas atividades forem adicionados aos gastos públicos, os EUA apresentariam uma situação bastante próxima da realidade dos outros países citados acima.

 

Apesar da pequena e insuficiente arrecadação pública no Brasil, há uma campanha muito ampla, bancada fortemente pelas elites e divulgada pela mídia conservadora, contra seu aumento. A base ideológica desse discurso é do tipo “tudo para o crescimento econômico, nada ou apenas migalhas para o desenvolvimento, em especial para o desenvolvimento social”.

 

Como conseguir mais recursos

 

Há muitas distorções no sistema tributário brasileiro. A alíquota máxima de imposto de renda, de 27,5%, é muito baixa, mesmo quando comparada com países de forte tradição liberal, como é o caso dos EUA. Nesse país, a alíquota máxima de imposto de renda foi superior a 60% entre 1936 e 1980, período marcado peloNew Deal. Mesmo atualmente, após os períodos Reagan e Bush, ela ainda é de 35% (5). (Além do imposto de renda nacional, nos EUA há impostos de renda estaduais e locais.) No caso de países europeus, as alíquotas máximas dos impostos de renda superam, em muitos casos, os 50%, valor significativamente superior ao caso brasileiro.

 

As baixas alíquotas do imposto de renda no Brasil são responsáveis pela distorção entre impostos diretos e indiretos, estes últimos gravando a todos, independentemente da renda, portanto, socialmente injustos. Ausência ou valores irrisórios nos impostos de propriedade, em especial das grandes fortunas, é outra distorção típica da política de impostos no país, em desacordo até mesmo com o que se observa nos EUA.

 

Além dessas fortes diferenças entre a arrecadação de recursos públicos no Brasil quando comparada com a realidade de outros países, temos, aqui, não apenas níveis intolerantemente altos de sonegação como várias isenções fiscais que são socialmente inaceitáveis.

 

Trabalho recente do IPEA (6) sobre possíveis fontes de recursos para a educação aponta nove possíveis pequenas alterações nas políticas de impostos capazes de gerar uma arrecadação adicional da ordem de 6% do PIB, sem nenhum impacto nas atividades econômicas do país ou no bem estar das pessoas. Além dessas, são apontadas no mesmo documento outras dez possibilidades de aumento de arrecadação que, combinadas com o valor anterior, poderiam nos colocar em um patamar próximo daquele ocupado pelos países menos injustos ou menos desorganizados. Além dessas correções, o mesmo documento aponta que cada ponto percentual de redução na taxa básica de juros geraria 0,6% do PIB em recursos públicos adicionais (para a União, os estados e os municípios).

 

Em resumo, há amplas possibilidades de se aumentarem os recursos públicos destinados aos setores de interesse social. A luta por mais recursos para o setor público e a denúncia de quem e que setores se beneficiam com as políticas fiscais brasileiras deveriam estar em uma pauta conjunta de todos os movimentos comprometidos com a educação, a previdência social, a saúde, a habitação, os desenvolvimento urbano e agrário e todos os demais setores de interesse social e coletivo. Talvez, assim, pudéssemos fazer uma campanha contra discursos sobre o “custo Brasil”, “uma das maiores carga tributárias do mundo” e outros equivalentes, os quais se mostram totalmente falsos quando uma análise mais abrangente é feita.

 

Notas:

 

1) O financiamento da saúde pública sofre com problemas similares aos da educação. Sobre esse tema, veja o artigo “O SUS e as serpentes que já saíram dos ovos”, de José Noronha, em http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/jose-noronha-o-sus-e-as-serpentes-que-ja-sairam-dos-ovos.html, publicado no sítioVi o Mundo. (Consultado em abril/2012).

 

2) Veja o sítio http://epp.eurostat.ec.europa.eu/cache/ITY_PUBLIC/2-21102011-AP/EN/2-21102011-AP-EN.PDF da Comissão Europeia (consultado em abril/2012)

 

3) Renda per capita medida usando a paridade de poder de compra.

 

4) Sítio http://www.usgovernmentspending.com/total_spending_2011USrn, consultado em abril/2012

 

5) Dados do verbeteIncome tax in the United States da Wikipedia, consultada em abril de 2012

 

6) Financiamento da Educação: necessidades e possibilidades, Comunicados IPEA no 124, dezembro/2011, acessível por internet.

 

Leia também os demais textos da série especial:


O analfabetismo juvenil e o ensino superior

Quantidade versus qualidade no sistema educacional

Educação: dois grandes passos para trás

Sistema educacional é um importante instrumento a perpetuar a desigualdade

Privatização do Ensino Superior rebaixa, a cada ano, seu retorno social e cultural

Como foi e é construída a privatização do ensino superior no Brasil

Política educacional: mitos e mentiras

Como surgiu a bandeira dos 10% do PIB para a educação pública

Investimentos em educação pública computam despesas que nada têm a ver com educação


Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

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