Correio da Cidadania

Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas (1)

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1. Os direitos trabalhistas sob vigilância


Muitos olhares desconfiados de parte do setor econômico foram voltados para o Supremo Tribunal Federal depois que algumas decisões progressistas foram tomadas no âmbito daquela Casa a respeito do direito de greve no serviço público, notadamente no que se refere à impossibilidade do corte de ponto e à consequente preservação do salário durante a greve (vide Reclamações ns. 11.536; 11.847; 16.535 e Processo Eletrônico DJe-177).

 

A repercussão dessas decisões demonstra o quanto as questões trabalhistas se mantêm na centralidade das preocupações sociais, políticas e econômicas e como ainda é forte a resistência à afirmação de direitos trabalhistas na realidade brasileira, sobretudo no contexto neoliberal instaurado a partir da década de 90, cujo propósito foi, precisamente, reduzir, ou até eliminar, a proteção jurídica dos trabalhadores.

 

No Brasil, que conviveu com a escravidão em quase quatrocentos anos de uma história de 500 anos e que ainda convive com estruturas culturais escravistas, o advento dos direitos trabalhistas foi marcado por muita resistência do ainda restrito setor industrial. Depois de instituídos, esses direitos têm sido alvo de constantes ataques desferidos por esse mesmo setor – que só cresceu desde então, vale frisar – com os mais variados adjetivos e estigmas: no começo a legislação trabalhista seria “inoportuna”. Na sequência foi chamada de “fascista”, “paternalista”, “intervencionista”, “retrógrada”... Presentemente, vive sob o fogo das retóricas da “cubanização” e do “bolivarianismo”.

 

Cumpre compreender que esse modo de refutar a posição do Estado e de suas instituições frente às questões trabalhistas põe em grave risco o projeto constitucional, que está baseado na essência do valor social do trabalho e dos direitos sociais. Quando a retórica do “paternalismo” ganha força os direitos sociais tendem a perder eficácia, não só do ponto de vista da construção teórica, mas, sobretudo, no aspecto da sua concretização, porque a efetividade de muitos desses direitos depende da implementação de políticas públicas que intervenham diretamente nas relações socioeconômicas, sendo que no que se refere especificamente aos direitos trabalhistas é inegável a necessidade de um Estado que não apenas proclame esses direitos, mas que também garanta a sua aplicabilidade com serviços de fiscalização, impondo limites aos interesses meramente econômicos, notadamente do grande capital.

 

Quando esse projeto constitucional, que se traduz pela ideia de uma democracia pautada pelo Direito Social, é apelidado de “paternalista” – seja lá o que queira dizer com isso, afinal os direitos liberais clássicos, propriedade e contrato, não existem sem a força coercitiva do Estado tanto para garantir a eficácia dos tratos negociais quanto para impedir a rebeldia dos excluídos do “sagrado” direito de propriedade, ou seja, sem um “paternalismo” em favor da classe dominante – corre-se o risco dos direitos trabalhistas virarem fumaça. Claro que não há nisso muita novidade, pois, como já advertia Marx, mais cedo ou mais tarde as coisas se revelam e tudo que era sólido se desmancha no ar...

 

É, por isso, bastante oportuno verificar o quanto esses ataques ideológicos, que já se expressaram, no início da era neoliberal, em fórmulas como “modernidade” e “globalização”, visam mascarar a realidade da sociedade de classes, trazendo consigo, no âmbito específico das relações de trabalho, para essa mesma finalidade, noções como as de “parceiros sociais” e de “colaboradores”, e que hoje, em época nem tão distinta assim, se valem de outras fórmulas como a do “bolivarianismo”, tudo para minar a eficácia dos direitos trabalhistas, sendo que, presentemente, o risco é ainda maior na medida em que já não se fala mais eufemisticamente em flexibilização, e sim de retirada, pura e simples, de direitos.

 

Claro que nada disso se manifesta de forma clara e mesmo a existência de um projeto neste sentido será negada por todas as formas.

 

Cumpre analisar, com cuidado metodológico, portanto, o que vem ocorrendo nas relações de trabalho desde a década de 90, pois permitirá perceber a continuidade de um projeto que visa minar a força dos direitos sociais e trabalhistas, para a satisfação de interesses estritamente econômicos, sem apoio em qualquer projeto de sociedade, ou seja, apenas para favorecimento do capital que atua em escala mundial.

 

2. Ataques aos direitos trabalhistas na década de 90

 

Na década de 90, os direitos trabalhistas foram alvo de diversos ataques, alguns vindos diretamente do Executivo.

 

As reformas legislativas encontravam, no entanto, três obstáculos: a Constituição de 1988, que conduziu ao Capítulo dos Direitos Fundamentais as conquistas trabalhistas, inscritas no art. 7º., acompanhado da ampliação do direito de greve no art. 9º.; uma doutrina jurídica trabalhista resistente à derrocada de direitos, inspirada nos princípios do Direito do Trabalho e na própria instrumentalidade constitucional; e a Justiça do Trabalho, impulsionada também pela atuação de uma combativa advocacia trabalhista e pelo ativismo do Ministério Público do Trabalho, o qual ganhou bastante relevo após a Carta de 88.

 

3. A Reforma do Judiciário – ditada pelo Banco Mundial


Corria em paralelo, como forma de completar a obra neoliberal, um projeto de Reforma do Judiciário, iniciado, de fato, em 1994, e que previa nada mais, nada menos, que o fim da Justiça do Trabalho.

 

A Reforma do Judiciário se insere no contexto de um projeto internacional, vez que o neoliberalismo é uma forma global de impulsionar o capitalismo. O propósito da Reforma era o de impedir que o Direito, os juristas e os juízes constituíssem empecilhos à imposição da lógica de mercado.

 

Essa, ademais, não é mera interpretação individual da história. Está consignada, com todas as letras, no Documento Técnico n. 319, do Banco Mundial: “O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe - Elementos para Reforma”, elaborado por Maria Dakolias, denominada “especialista no Setor Judiciário da Divisão do Setor Privado e Público de Modernização” (tradução de Sandro Eduardo Sardá, publicado em junho de 1996).

 

Ainda que no prefácio do Documento, elaborado por Sri Ram Aiyer, Diretor do Departamento Técnico para América Latina e Região do Caribe, haja a advertência de que “As interpretações e conclusões expressadas neste documento são de inteira responsabilidade dos autores e não devem de nenhuma forma serem atribuídas ao Banco Mundial, as suas organizações afiliadas ou aos membros de seu quadro de  Diretores Executivos ou aos países que eles representam. O Banco Mundial não garante a exatidão dos dados incluídos nesta publicação e não se responsabiliza de nenhuma forma pelas consequências de seu uso”, é mais que evidente que a sua publicação representa uma forma de influenciar as políticas internas dos diversos países, sobretudo aqueles considerados “em desenvolvimento”, até porque o próprio prefaciador se revela quando diz ao final: “Esperamos que o presente trabalho auxilie governos, pesquisadores, meio jurídico e o staff do Banco Mundial no desenvolvimento de futuros programas de reforma do judiciário”.

 

4. Novos ataques aos direitos trabalhistas no início dos anos 2000


Na década seguinte, a saga persiste com o advento da Lei n. 10.101/00, que regulou a participação nos lucros e nos resultados, recusando a natureza salarial do montante pago a tal título e prevendo a instituição de mediação ou de arbitragem de ofertas finais para a solução das controvérsias decorrentes da aplicação da lei, de modo a dar impulso ao projeto já iniciado, em 12 de janeiro de 2010, com a edição das Leis ns. 9.957/00 (sumaríssimo) e 9.958/00 (comissões de conciliação prévia), no sentido da integração de modos extrajudiciais de solução de conflitos às relações de trabalho, contribuindo, assim, para o esvaziamento da participação da Justiça do Trabalho. Na sequência, adveio a Lei n. 10.243/01, que, alterando o art. 458, da CLT, afastou a natureza salarial de diversas parcelas recebidas pelo trabalhador em contraprestação ao trabalho prestado.

 

No apagar das luzes do governo FHC, mais precisamente no dia 05/10/01, foi enviado, pelo próprio Executivo, ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.483, que alterava o artigo 618 da CLT, visando a institucionalizar o negociado sobre o legislado. O projeto entrou com regime de urgência e tramitou a passos largos, tendo sido levado a plenária no dia 26/11/01 e posto em discussão nos dias 27 e 28/11/01, até que, em 04/12/01, foi aprovado e enviado, no dia 6 de dezembro, ao Senado Federal.

 

Em março de 2002, o projeto deveria ter sido votado, mas negociações para a aprovação da CPMF fizeram com que o regime de urgência fosse cancelado e depois novos ajustes e a proximidade com a eleição mantiveram o projeto sem tramitação.

 

O ano de 2002 acabou sendo um marco da desaceleração desse processo, o que pode ser creditado, por certo, ao avanço da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, que deu força para os atos de resistência à derrocada de direitos, especialmente no âmbito acadêmico, com reflexos na Justiça do Trabalho.

 

Do ponto de vista legislativo, no entanto, ainda que com menor intensidade, em 2003 mantém-se a lógica anterior.

 

O Ministério do Trabalho inaugurou, em fevereiro de 2004, um movimento de “faxina” da CLT, como se a CLT contivesse disposições que seriam autênticos lixos. Criou-se um Conselho responsável por colocar em discussão a legislação social, o que, por si, permitiu que a legislação trabalhista fosse, mais uma vez, alvo de muitos ataques. Pautou-se uma reforma sindical, que, partindo do pressuposto de que a reforma fortaleceria os sindicatos, retomava a ideia do negociado sobre o legislado.

 

No mesmo ano de 2004, após a edição da Emenda Constitucional n. 41/03, que aumentou o tempo para a aposentadoria, substituindo o requisito do tempo de serviço para tempo de contribuição, o governo federal utilizou todas as suas armas para influenciar decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade de taxação dos inativos, o que se concretizou, em 18 de agosto de 2004, no julgamento das ADIs 3105 e 3128, prevalecendo, por 7 a 4, o voto do Min. Cezar Peluso.

 

Cumpre relembrar que a EC 41 (que trazia também a implementação imediata do teto remuneratório criado pela EC 19/98 e a implementação da contribuição previdenciária dos servidores públicos inativos) estava inserida no contexto de uma Reforma do Estado iniciada em 1998, com a EC n. 19/1998, seguida da EC 20/1998 (esta com foco na Previdência). A Reforma do Estado buscava atrair para os entes administrativos a lógica de mercado. A EC 19/98 encampou expressamente o princípio da eficiência no caput do art. 37 e admitiu a possibilidade de servidores estáveis perderem o cargo por insuficiência de desempenho e por excesso de gastos da Administração Pública, consolidando a ideia de subsidiariedade do Estado, que foi iniciada em 1995 com a criação do MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Na ocasião, o então Ministro Bresser Pereira criou uma cartilha neoliberal de enxugamento da Administração Pública, da qual adveio a intensa – e inconstitucional – utilização da terceirização no serviço público.

 

Ainda na linha do resgate histórico da EC 41, vale lembrar que foi nesse período que se deu impulso pesado para as terceirizações, principalmente com a criação do Ministério da Administração e da Reforma do Aparelho do Estado, embora as Leis 8.031/90 e 9.491/97 já tivessem se referido a respeito. A pressão pela contenção dos gastos com pessoal imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) também estimulou a terceirização, pois ainda que equiparasse terceirização de mão de obra a gastos com pessoal, a terceirização por meio da contratação de serviços sempre foi deixada de fora do limite orçamentário pelos Tribunais de Contas.

 

Voltando aos anos 2000, em 2005, adveio um dos maiores baques dos direitos trabalhistas, a Lei n. 11.101, da recuperação judicial, que retirou do crédito trabalhista (superior a 150 salários mínimos) o caráter privilegiado com relação a outros créditos, buscou eliminar a sucessão trabalhista e tem servido até hoje como forma de institucionalização do “calote” trabalhista.

 

Em março de 2007, chegou a ser aprovado no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLC n. 7.272/05), que criou a denominada “Super Receita”. No bojo dessa lei se inseriu, pela Emenda aditiva (n. 3), de autoria do Senador Ney Suassuna, apelidada de Emenda 3, a retirada do poder de fiscalização dos fiscais do trabalho.

 

Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.

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