Gustavo in memoriam
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- Paulo Metri
- 19/06/2012
Descrevo três acontecimentos ocorridos em datas bem próximas. O primeiro é relacionado a Gustavo, de dois anos. Seus pais o levam a um posto médico na Baixada fluminense, onde moram, pois tinha sintomas que exigiam o apoio médico. É diagnosticado como algo irrelevante, de forma que a criança é mandada de volta para casa. Ao retornar, os sintomas pioram e os pais aflitos passam por verdadeira via crucis, mendigando por atendimento médico na região. Um hospital aceita interná-lo, mas avisa que o caso é grave, eles não têm UTI infantil e era impossível transportá-lo para outro hospital, pois estão todos sem vaga. A família se desdobra em solidariedade e consegue uma liminar com um juiz, que obriga a transferência de Gustavo para um hospital com UTI infantil. Muitos outros sofrimentos se sucedem e, no dia 14 de junho passado, Gustavo morre de meningite. O real atendimento chegou tarde.
Antes de estar passando para o segundo acontecimento, não deixo de constatar, apesar de não ter dados na minha frente, que a incidência de casos de meningite seguidos de morte na Inglaterra, no Canadá ou em Cuba, países com medicina socializada e levada a sério, proporcionalmente deve ser mínima. Notar que Cuba passa, há 50 anos, por bloqueio econômico desumano, com enorme restrição de recursos, e mesmo assim a incidência de mortes por meningite por 1.000 habitantes deve ser bem menor que a média dos países em desenvolvimento.
No mesmo dia, os jornais falam sobre a CPI do Cachoeira, em possíveis desvios de dinheiro público na casa de milhões de reais. Vem à mente uma imagem ligada à mesma CPI. São homens públicos mesclados com empreiteiro, em luxuoso restaurante de Paris, com alegria estampada em fotos com guardanapos na cabeça, esbanjando recursos que a racionalidade não consegue explicá-los com salários de servidores públicos.
Assim, chego a primeira razão que me leva a escrever este texto As pessoas em geral não fazem a ligação de que os Gustavos morrem por causa da usurpação de recursos públicos. Desvio de dinheiro público irá sempre representar diminuição de atendimento público, chegando a mortes futuras, quando há diminuição de recursos para o sistema de saúde dos pobres. Esta ligação de fatos deve ser lembrada, com grande relevância, nos momentos do voto. O povo, principalmente o mais carente, não pode votar nos futuros assassinos dos seus filhos.
Terceiro acontecimento. Como estamos em época de Rio+20, leio um artigo de Katu Arkonada, boliviano, que diz: “São muitos os temas a desenvolver na Rio+20 (...), mas o tema central da conferência será como construir uma visão de desenvolvimento não-baseada no capitalismo, que vá além dos parâmetros de crescimento deste sistema”. A verdade é que Arkonada expressa um desejo seu, que é este tema central para a Rio+20.
Contudo, o grande capital, através dos países desenvolvidos, com seu imenso poder de recuperação, recém criou o discurso da economia verde para poder continuar acumulando riqueza e usando o planeta, agora com danos eventualmente mitigados. Uma das mais de 800 pendências da negociação, existente em determinada fase das discussões, revela o real interesse do grande capital. A pendência: os Estados Unidos aceitam a meta de erradicação da pobreza extrema, mas não da pobreza, que é reivindicada por países em desenvolvimento.
No discurso no plenário da Rio 92, o líder cubano, Fidel Castro, estava inspirado quando proferiu as seguintes afirmações: “Se se quer salvar a humanidade desta autodestruição, é preciso distribuir melhor as riquezas e tecnologias disponíveis no planeta. Menos luxo e menos desperdício em poucos países, para que haja menos pobreza e menos fome em grande parte do planeta. Não mais transferências, ao terceiro mundo, de estilos de vida e hábitos de consumo que arruínam o meio ambiente. Façamos mais racional a vida humana. Construamos uma ordem econômica internacional justa. Utilizemos toda a ciência necessária para um desenvolvimento sustentado, sem contaminação. Paguemos a dívida ecológica, e não a dívida externa. Que desapareça a fome – não o homem”.
A segunda e última razão para escrever este texto. Os Gustavos do mundo, que sucumbiram durante séculos graças à ganância humana, esperam que seus sacrifícios involuntários possam, pelo menos, servir de instrumentos de conscientização para construção de um mundo melhor, em que seus sucessores sejam poupados da meningite, de outras doenças da pobreza e da fome.
Finalizando, a morte de alguém distante contada em uma tela fria de televisão nunca me emocionou tanto quanto agora, que conheço os familiares do Gustavo. Casos como o dele, infelizmente, são corriqueiros na nossa sociedade. Tenho vergonha pela minha insensibilidade, pois este artigo só foi escrito agora.
Paulo Metri é conselheiro da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros e do Clube de Engenharia.